de Christian Dunker
O Real como Ato
A abertura do
filme é comandada pelo deslocamento de uma pergunta feita ao nosso
protagonista. Anderson, é nos apresentado como um funcionário de uma empresa de
software – Metacortex -, que durante a noite incursiona redes de
computador como hacker (Neo). O tema é clássico, o dia e a noite como
duas injunções de um mesmo personagem: o público e o privado, o pacato cidadão
e o super herói, ou ainda o fiel cumpridor da lei e da ordem e o cruel
assassino noturno. Aqui se poderia perguntar, qual dois é mais real ? Qual das
duas esferas de existência realiza de fato o ser deste sujeito ?
Mas
o filme situa bem melhor uma primeira variante do que Lacan chamou de Real,
isto é algo não representável, difuso, que ronda a existência do sujeito,
sugerindo aqui e ali que as coisas não são exatamente como são; ou como parecem
ser. Nosso herói, é exposto a uma
seqüência de perguntas que situam este real, que o localizam:
-
“Você já sentiu como se não soubesse se está acordado ou sonhando ?”
É
o que nosso herói pergunta o líder da gangue do coelhinho branco, recebendo
como resposta uma outra pergunta:
-
“É sua escolha sair ou não.”
O
diálogo seguinte com Trynity reproduz esta mesma questão. “Eu sei qual é a sua
pergunta (O que é a Matrix ?)”. Coloca-se de novo uma espécie de alternativa:
você realmente deseja saber ? Tal como Édipo em sua procura pela verdade. Não
há como saber de antemão os riscos desta investigação. Ao mesmo tempo esta
investigação só ocorrerá se o desejo do autor estiver empenhado. Ou seja Neo
está confrontado com uma escolha onde o ato da escolha participa ativamente do
sentido da escolha. O ato de escolher transforma aquilo que é escolhido. Em
outras palavras aqui o sujeito está diante de uma escolha real.
De
forma oposta encontramos na cena seguinte uma interpelação onde o ato da
escolha não muda o que é escolhido:
“- Você deve estar na sua mesa na hora
certa ou então procurar outro emprego. Você escolhe.”
O discurso do chefe é na verdade uma
ameaça: esteja no seu posto caso contrário será despedido. É um discurso que
pressupõe que Anderson deseja seu emprego, que ele não quer abrir mão dele. A
mesma chave é utilizada às avessas por Morpheus no telefonema:
“- Só há duas maneiras de sair do prédio:
com eles ou pelo andaime. Você escolhe.”
Aqui, como nas cenas anteriores,
Anderson/Neo hesita. Ele diz que não entende por que aquilo está acontecendo
com ele, que ele não é nada. Esta suspensão do ato redunda na vacilação em que
ele deixa cair o telefone e se deixa pegar pelos Agentes da Matrix e cai na
cena do interrogatório. Nova questão:
-
“ Você leva uma vida dupla. Quer recomeçar ? Você escolhe.”
A
seqüência é mostra uma alteração da posição de Neo. Em vez de hesitar, vacilar
ou não entender ele se recusa a participar deste tipo de escolha, este tipo
de escolha forçada. Ele quer um
telefonema. Mas, suprema metáfora do filme: O que adianta um telefone se você
não tem boca ? De que serve a vida sem isto que a faz livre ? De que serve
existir se esta existência não é ?
A
resposta vem nos termos da questão inicial. Será real o sonho ou a vida
acordada ? Neo acorda em sua cama
achando que aquilo foi um sonho. Mas como ele mesmo disse anteriormente: não
sei distinguir bem sonho e realidade. Agora com um transmissor inoculado em seu
umbigo Neo recebe o seu ... telefonema. Seria este telefone que ele pedira
antes ? Seria isto uma forma de voltar a seu instante de hesitação no alto do
edifício e dizer: sim acredito em você Morpheus. O diálogo segue esta mesma
lógica da inversão:
-
“Você acha que está procurando por mim a muito tempo, mas eu estou procurando
por você a vida toda.”
É
por isso que na seqüência seguinte Neo volta ao ponto de sua escolha anterior.
Trynity retoma a questão do chefe:
“Agora
é do nosso jeito ou caia fora.”
Neo
quase abandona o carro, mas volta em seguida, agora contendo este momento de
hesitação no interior de seu ato. Ele escolhe ficar, mas quase se foi. Uma
escolha que agora inclui dentro de si uma hesitação. Quando escolhe ficar ele
fica sabendo que não se tratava de um sonho.
Havia realmente um transmissor embutido
dentro de seu corpo, que é então extraído. Vê se assim como o filme vai
traçando um percurso de constituição do Real, mais além da realidade. A
inversão opositiva entre realidade e sonho, entre vida e noite, entre ilusão e real cede lugar à uma situação onde
o sujeito progressivamente vai realizando o real na medida de seu ato. Na
medida em que seu ato o ultrapassa e o nega ele é capaz localizar a ordem entre
realidade e sonho. O ato permite que ele se desloque desta alternativa. Um ato
que contém dentro de si sua própria negação (hesitação) e vacilação
(incerteza).
Vemos aqui como a assunção da
ignorância torna a equivocação da verdade o motor de um processo de experiência
subjetiva. Claramente havia ali a saída pelo amor e a saída pelo ódio, mas elas
seriam inoperantes para o processo em questão. É a paixão da ignorância,
representada pela indagação “O que é a Matrix ?” que franqueia esta passagem do
simbólico ao real.
O Real como Experiência da Verdade
Estamos
agora em outro ponto das relações do sujeito com o real. É isso que abre o
momento seguinte do filme. Morpheus e Neo conversam. Neo revela que ele sente
que há algo de errado com o mundo, uma espécie de zunido na cabeça. É este
pequeno pedaço do real que encontra-se fora do lugar que é posto em questão. O
que é a Matrix ?
A
dificuldade de Neo diz respeito à localização da Matrix. Ela está em todo
lugar. Ela está à sua volta agora.
“-
Um mundo posto diante dos seus olhos para que você não veja a verdade.
- Qual verdade ?
- Que você é um escravo.”
Aqui
Morpheus inicia uma nova posição de indagação frente ao Real. O real não é o
que você vê diante dos seus olhos, simples impulsos eletromagnéticos do seu
cérebro, mas é uma realidade justamente
o que você vê, e tem que ver, e só pode ver, para não enxergar. Aqui real e
realidade se separam, em perfeito acordo com a tese de Lacan. A realidade é
aquilo que a Matrix produz. Um sistema de significações, uma ideologia, uma
visão de mundo, que o organiza de forma a velar o Real. A realidade humana,
neste sentido, é sempre experimentada como uma mistura entre o Imaginário e o
Simbólico. Ilusão e verdade, era essa a oposição inicial do filme. Oposição que
deixava de fora a possibilidade de que pode haver algo que não seja nem
realidade nem ilusão. Iu melhor que não dialetiza a realidade da ilusão com a
ilusão da realidade. O Real é o impossível de aparecer nesta dupla conjunção.
Ele é impossível de ser simbolizado, mas também, impossível de ser
imaginarizado. Como a alucinação do sujeito psicótico ou o núcleo do sintoma
neurótico. É por isso que Morpheus afirma que ele não pode dizer o que é
a Matrix. Só se pode ver a Matrix por si mesmo. Mas ver não indica aqui
a ação sensível do olhar. Trata-se da experiência, não do conceito, nem da
intuição.
O Real só é acessível por uma
experiência que reúna sob si o mostrar e o demonstrar, o conceito e a intuição.
Sabendo disso Neo é então exposto novamente à mesma alternativa:
(1) Pílula azul: você acorda na cama acreditando
no que você quiser acreditar.
(2)
Pílula vermelha: fica no País das Maravilhas (Wonderland) e verá até
onde vai a toca do coelho.
A
alternativa é irônica e nesta ironia se faz a experiência da verdade em ato. O
tema está em Hegel e Kierkgaard. Acordar na sua cama é escolher a alienação,
escolher não saber, escolher dormir. Mas por outro lado se você quer realmente
saber é justamente de uma história infantil, que não é infantil, que se trata.
Uma aventura pelo país da contradição. A Wonderland de Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carol é uma alusão ao saber que se sabe equivocado. Nesta
equivocação está a sua verdade. Não sem antes reafirmar a precisão do que está
sendo oferecido.
-
“Lembre-se ... o que eu ofereço é a verdade e nada mais. Você escolhe.”
Após
escolher a pílula da verdade, amarga como sempre, ocorre uma curiosa constrição
ou retração do imaginário representando por um de suas alegorias mais eficazes:
o espelho. Neo toca o espelho mas é o espelho quem toca e devora Neo.
A
verdade é que você está em uma bolha, uma banheira de realidade, uma cápsula de
ilusões. A verdade é que você tem olhos que nunca viram, que você tem um corpo
que nunca experimentou e que serve como fonte de energia para um outro regime
de funcionamento: a máquina. Dialética: a máquina que nos serve se torna nosso
senhor. O tempo em que o sujeito está é um falso tempo, não 1999, mas algo em
torno de 2109. Aqui, portanto, o real se revela como história, como núcleo
impossível da história.
Esta é a experiência de extimidade, de
exteriorização a que Neo é submetido. Resgatado pela nave submarina
Nabucodonosor, dividindo um espaço degradado. Assim como em Blade Runner, o
futuro em Matrix é barbárie. Mas seria então
o real este futuro anterior que revela ao sujeito a equivocação na qual
este se encontra?
A genialidade do filme está em não se
contentar com esta solução fácil. Neo agora sabe a verdade, mas a verdade que
se converte em saber não é mais verdade. O real do encontro com Nabucodonosor
torna-se apenas outra face da realidade, com os mesmos dramas da realidade
anterior: dominador e dominados, senhor e escravos, ilusão e verdade. A vida
dentro deste submarino errante é miserável,
crua e incerta. O que a legitima é a utopia de libertação. Ou seja, a
primeira volta da verdade é insuficiente, ela realiza subjetiva o desejo,
mostra seu núcleo traumático, revira a história, no entanto abre como questão o
Outro e com isso A Resistência.
O Real como Resíduo
Portanto
temos aqui que admitir, freudianamente, que a fantasia é uma faceta da
realidade, ou com Lacan que a fantasia é o que organiza a realidade para um
dado sujeito. Uma tela de onde o sujeito vê o mundo e de onde o mundo se torna
possível. Todavia o Real não está nem do lado de lá: a ilusão produzida pela
Matrix, nem do lado de cá: o cyberuniverso dominado pelas máquinas: o Real está
na travessia, na passagem ou na relação entre um e outro. Esta passagem é o
fantasma.
A
primeira coisa da qual Neo é informado, quando reingressa na Matrix - agora
sabendo do que ela se trata que - é existe uma “autoimagem residual”. A
existência de um mundo da neurosimulação, não apenas conjecturado mas efeito de
uma experiência de verdade. O narcisismo
é reconstituído, sua geometria se estabiliza, recoloca-se a questão: onde está
o Real, agora ?
O
primeiro movimento é lembrar que o Real não pode ser a experiência dos
sentidos, o que se pode sentir, ver e provar. Mas também o real não está “fora”
desta experiência e da linguagem que comanda sua apreensão. O Real, deste ponto de vista é um deserto:
“-
Bem vindo ao deserto do real.”
É
a frase de Morpheus, o senhor dos sonhos, mas também da forma. Depois disso o
que vem é uma nova versão da história: não nascemos, somos cultivados. Vivemos
inertes e adormecidos em casulos de onde a energia de nossos corpos é retirada
para alimentar a Matrix e o exército de Robôs que tomou conta do planeta. A
vida é um sonho. Os mortos são liquefeitos para alimentar os vivos. A guerra
permanente e a dominação pelas máquinas, essa é a realidade de onde se torna
necessário algo como a Matrix – na verdade um sistema de simulação neuronal
capaz de produzir a ilusão de uma vida, a nossa vida, que como tal é apenas um
artifício de imagens. Matrix pode então ser definida como um gerador de falsas
experiências.
A verdade se torna então “óbvia”, mas
curiosamente ela não é dita por Morpheus, mas mostrada: somos uma
bateria, diz seu gesto ao segurar uma pilha comum em suas mãos. Diante disso
Neo desfalece, recua, não acredita. A verdade não é uma experiência fácil,
mesmo sendo óbvia.
A
próxima cena mostra Neo, novamente acordando.
“-
Não posso voltar ?
- Não, mas se fosse possível você iria querer
? “
Esta
interpretação de Trynity inaugura um novo passo nas relações de Neo com o Real.
O passo que Édipo dá em seu movimento rumo ao deserto, acompanhado por
Antígona, carregando seus próprios olhos. Ele diz: “Seria melhor não ter
nascido.” Seria melhor não saber. Ressurge então a questão da escolha e da
verdade. No primeiro passo o real é a escolha sem sujeito (ato), no segundo é
sujeito sem escolha (verdade). Aqui a questão gira em torno do valor de objeto
que o sujeito deve assumir ao assumir seu destino. Um resto que fica na
passagem do mundo provido pela Matrix ao mundo organizado pela Resistência. A
Resistência é este grupo de errantes que lutam contra os Robôs. Entrando e
saindo da Matrix a Resistência é uma minoria que tenta desestabilizar o
sistema, ao mesmo tempo é a própria razão de ser do sistema: destruir e dominar
os humanos.
Há algo residual entre um e outro: é a
figura do Escolhido (The One). Curioso termo, apesar de incorretamente
traduzido. Neo de escolhedor ele passa a escolhido. Tha One é também
simplesmente e alusivamente aquele, que poderá inverter a relação de
forças entre os Robôs e a Resistência.
O oráculo previu, desde muito, a volta do
Libertador. Aquele que pode mudar tudo, aquele que primeiro se libertou, capaz
de combater o mundo da máquina, destruir a Matrix e por fim a guerra. Ele está
no fim da história, fim da dominação,
fim da ilusão. Eis o ponto de estimidade do Escolhido: interno e externo a um
estado de coisas. Resíduo da incompletude de dois universos.
O Real como Furo no Saber: o Sujeito
Aqui
vale destacar um dos primorosos diálogos do filme. Neo encontra-se com o
Oráculo. O Oráculo é uma velha senhora em seu decrépito apartamento suburbano,
repleto de crianças candidatas a messias. A pressuposição estruturante da
situação é: o Oráculo sabe. Não há saber que lhe escape. Uma conjectura
filosoficamente trivial. Exatamente por saber, e apenas saber, que o diálogo
com o Oráculo deixa aparecer a dimensão da verdade como resíduo do saber. O que
é impossível no real é que ele não reúna saber e verdade. Mas, saber e verdade
não fazem um todo. Este todo é impossível. O diálogo com Oráculo é a
experiência, em ato, desta impossibilidade.
“-
Não se preocupe com o vaso”. Diz a anciã
assim que Neo entra no recinto.
“- Qual vaso ?” Ao procurar o objeto Neo vira-se abruptamente
e derruba a mesa sobre a qual está o referido vaso. “
“-
Como você sabia ?
-
Que pergunta tola. A questão é: será você teria quebrado se eu não tivesse dito
? ”
Nesta
passagem vemos o real em ação como um encontro sobredeterminado pela
contingência. As afirmações do Oráculo são perguntas e as perguntas são
afirmações. É esta regra que ela aplica na seqüência:
“-
Você é bonito por isso ela gosta de você. “
-
Quem ?
-
Mas não é muito inteligente.”
Ou
seja, Neo não foi suficientemente astucioso para perceber o interesse de
Trynity por ele mesmo. Trynity é uma mulher que trabalha na Resistência e,
desde a cena inicial, exerce uma estranha atração sobre Neo. Mais tarde veremos como aqui já está a chave
do enigma. O oráculo havia profetizado que aquele por quem Trynity se
apaixonará é o Escolhido. Se Trynity se apaixonou por ele então ele é o
escolhido. Mas nem ela nem ele sabem disso.
Neo só será o escolhido se, de fato, puder
reconhecer-se sendo reconhecido pelo outro como objeto de seu desejo. Neo está
antes disso. Ele está ás voltas com sua suposição de saber, localizada no
Oráculo. Ele entra na situação com uma única posição, equivocada, qual seja: será que o Oráculo me reconhecerá como O Escolhido? Ou não? Aqui seu ego o atrapalha: terei predicados? Tenho condições para a tarefa?
Neo está alienado no saber do Oráculo. O
Oráculo está às voltas com separá-lo desta alienação. Isso só poderá ser feito:
(1) Em ato, não pela representação de si em
uma posição ou outra diante do saber.
(2) Por um processo, uma experiência,
entendida como uma sucessão de voltas concêntricas onde a verdade surge, a cada
momento, da equivocação.
(3) Com o Outro, segundo uma estrutura cujo
conceito é a a proporia temporalidade desta experiência.
O primeiro passo do Oráculo, assim como seria
o do analista, é remeter a questão ao sujeito:
“-
O que você pensa? Você é o Escolhido?
A
pergunta retoma a chave usada antes por Morpheus: “Eu posso mostrar a porta, você deve atravessa-la”.
“-
Sinceramente não sei.”
O
movimento retoma a hesitação anterior, aceitar ou não o convite, aceitar ou não
a pílula vermelha, quase sair do carro. O Oráculo aponta para o dictum
escrito sobre a porta:
“-
Você sabe o que significa ? Está em latim. Conhece-te a ti mesmo.”
Ou
seja, está em uma linguagem que você não conhece, mas que diz tua própria
verdade. O Oráculo força a subjetivação da questão. Pressiona por um ato
subjetivo. Um ato improvável: impossível saber a verdade. Não posso decidir se
sou ou não o Escolhido.
“-
Ser o Escolhido é como estar apaixonado. Ninguém pode dizer que você está.”
Sim, ninguém
poderá dizer que você está, mas para
estar é preciso o encontro com o outro e a experiência simbólico imaginária do
amor. Novamente “a porta” a via de acesso à verdade do Escolhido é indicada: a
paixão de Trynity. O Oráculo faz então uma última tentativa:
“-
Deixe-me examina-lo. Agora eu deveria dizer: ‘Interessante mas..´‘ .”
O
Oráculo brinca de falso Oráculo (aquele que reúne verdade e saber sobre o
sujeito) para que Neo apreenda o caráter trágico de sua alienação. Aqui ela
aponta o ponto de inserção do sujeito, esta pequena pausa que se segue ao “mas
...”. isto é aqui ele deve-se incluir, ele deve-se contar nesta abertura do
Outro. Em vez disso Neo remete ainda o saber sobre si ao Outro.
“ – Mas o quê
?”
Ao
que o Oráculo repete a estratégia.
“-
Você sabe o que eu vou dizer ...”
“-
Eu não sou o Escolhido.”
Nitidamente por
medo e desejo de ser o Escolhido ele diz que não é o Escolhido. Já que ele tem
dúvida ele não pode sê-lo. Ainda mais o desejo joga sua partida contra o ser. O
ser do sujeito não se realiza. O verdadeiro Escolhido não hesitaria, como ele
hesitou não é. Aqui o Oráculo segue a resposta do sujeito:
“-
Desculpe garoto, você tem o dom, mas ... parece estar esperando algo.
-
O quê ?
-
A próxima vida talvez, quem sabe ... ?
- Morpheu ...
quase me convenceu.”
Aqui
se revela o furo no saber. A realização da posição de Escolhido não pode
decorrer da persuasão do outro. O Escolhido não pode esperar algo do Outro, mas
para isso dever realizar o fato de que há um furo no saber do Outro. Há um furo
real no saber, um furo introduzido pela palavra. Assim como Neo estava alienado na realidade
da Matrix, Morpheu está alienado na crença de que Neo é o Escolhido. Nada que
Neo faça ou deixe de fazer retirará esta crença. Cara eu ganho, coroa você
perde. A transferência entre Neo e Morpheus
continua a cobrar seus efeitos. Entre escravo e mestre a morte é a
báscula central.
Morpheu acredita tão cegamente que dará a vida
por Neo. Uma vida baseada em uma falsa crença, isso recoloca a trama em sua
posição inicial. É por isso que novamente Neo se confronta com a escolha:
(1)
salvar Morpheu, sacrificando-se por ele, mas ao mesmo tempo destituindo
sua crença fundamental no Escolhido.
(2)
deixar que Morpheu se sacrifique por ele, mantendo sua crença
fundamental no Escolhido.
O Real na Travessia do Fantasma: o
objeto a
A última etapa do filme é uma solução
para o enigma deixado pelo diálogo com o Oráculo. Enigma de duas faces: o
indecidível e o impossível. Colhido pelo Outro nesta posição de escolha o
sujeito fica às voltas com o seu fantasma. Isso implica dizer que o que o
sujeito jamais reconhece é seu lugar como objeto a.
A primeira figura do objeto a aparece quando a Matrix
muda a realidade. Esta mudança deixa uma pequena ranhura, um breve desajuste.
Um gato preto repete por duas vezes o mesmo movimento, como se um problema na
máquina de projeção tivesse passado por duas vezes a mesma seqüência do filme..
Pode-se dizer que o objeto a é isso que aparece nesta repetição. Não o
gato em si, mas isso que permite realizar o fato de que aquele gato é um “falso
gato”.
Outra forma de demonstrar isso é
atentar para o lugar que a Resistência
assume para os Agentes e em especial para o Agente Smith. A Resistência é este
cisco que impede o fechamento da realidade sob si mesma, esta cicatriz que
instabiliza todo o sistema. Como ele chega a afirmar:
“- A primeira Matrix foi um fracasso
pois foi projetada para todos serem felizes. Os humanos parecem definir a
realidade pelo sofrimento e pela desgraça.”
“- Os humanos são a praga, nós a cura.”
A Resistência, e Neo que a simboliza,
representam este resíduo que mantém o Agente Smith atado à sua operação de
purificação e limpeza da realidade. Operação que ele sonha ver concluída. O Um
da totalidade realizado pela eliminação do um em excesso. The One, tem
esta curiosa ambigüidade quando lido á partir da Resistência, e quando lido à
partir da Matrix.
Essa alternativa se coloca exatamente na
mesma proporção para a luta final entre as duas posições. Primeiro Tank tem que
fazer uma escolha: matar Morpheus para salvar os códigos que poderiam destruir
o Sião – um dos nomes para a utopia que move a Resistência. Um homem para
salvar uma idéia. O sacrifício de um para salvar o todo. Neste ponto, em que
Tank e a Resistência aproximam-se da lógica da Matrix, interpõe-se o ato de
Neo.
(1) Ele conclui que não é o Escolhido e
como tal deixa de ser alguém privilegiado e muito bem pode morrer para salvar
seu amigo e, agora revelado, pai.
(2)
Mas ao se reconhecer como um e não como Um, ele se permite
reconhecer na crença de Morpheus.
(3)
Não há mais diferença entre ir e não ir ... e justamente por isso ele decide-se
ao ato de enfrentar a Matrix. Diante do inédito de seu ato ele é indagado:
“-
Ninguém jamais fez algo assim.
- Por isso vai dar certo.”
(4)
Neo reverte a lógica que o dominara no diálogo com o Oráculo: primeiro saber
quem você é, depois decidir o que você deve fazer. Ele introduz em seu ser a
lógica da experiência que o constitui.
“-
Cedo ou tarde você perceberá a diferença entre conhecer o caminho e percorrer o
caminho.”
Publicado variante originalmente em CINEMA e PSICANÁLISE -vol.2 - Ed. nVersos - São Paulo - 2013, p.103-131.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de vários livros, entre eles Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015)
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