de Isloany Machado
Dias
atrás, por indicação de uma amiga, assisti um documentário
chamado Traja Branca. Mais uns dias depois, assisti de
novo. É um documentário que a gente mal termina de ver e já quer
ver de novo. Esquisito isso, mas foi exatamente o que senti. É
porque Tarja Branca fala sobre a infância e sempre
me bate uma nostalgia desse lugar. Não é bem uma vontade de voltar,
até porque isso seria impossível, a não ser na ficção
científica, quando assistimos De volta para o futuro ou
ainda O exterminador do futuro. Esses dois filmes têm o
futuro no nome, mas tratam mesmo é da volta pro passado.
Voltar
ao passado, exceto nos exemplos de filmes citados, só é possível,
em minha opinião, quando deitamos num divã de analista. Obviamente
que qualquer vivente pode voltar ao passado quando acessa suas
lembranças dos anos iniciais, mas remexer nelas, encostar o dedo e
até mesmo cutucar as feridas da infância é um trabalho para a
psicanálise. No Tarja Branca, são muitas as
“personagens” que falam sobre a importância do brincar, mesmo
que já se tenha passado do peso e da idade. Uma senhora nordestina
bem engraçada diz: “Quando eu era criança, pulava corda. Parei,
fiquei gorda!”. Mesmo assim, em seu trabalho de feirante, ela
continua brincando, com os colegas, com os clientes.
O
mais importante é não parar de brincar. Mas como isso seria
possível? Ora, fazendo aquilo que a gente mais ama. Quando estamos
de acordo com nossos desejos, o trabalho, por mais sério que seja,
não passa de uma brincadeira porque sentimos um prazer tão grande
que não dá vontade de parar. Outras “personagens” do filme,
como por exemplo o escritor Marcelino Freire, dizem que de vez em
quando é preciso parar e perguntar para aquela criança que fomos um
dia: “E aí, como estou me saindo?”. Muito parecida com a
pergunta da psicanálise: “Agiste conforme teu desejo?”.
Poderíamos fundir uma coisa na outra e dizer: “Agiste conforme a
criança que te habita?”.
Por
algum motivo, ou algunS motivoS, nós às vezes nos separamos ou nos
esquecemos da criança que fomos. Mas ela fica em algum canto
escondidinha, esperando pra dar o bote. Esta criança grita junto com
os sintomas, junto com as desmesuradas depressões de que os
trabalhadores tanto se queixam e que os incapacitam para o trabalho.
Parece chavão psicanalítico, mas é necessário que se diga que a
melhor saída ainda é bancar o próprio desejo. Por mais caro que
custe, por mais que implique em declinar de muitas coisas, recuar,
enfrentar fúrias (de pais e familiares), ainda custa menos do que
não ser sincero consigo mesmo sore aquilo que se deseja.
No Tarja
Branca, um psicanalista diz: “ É preciso ter colhões para
bancar aquilo que se quer”. Isso me emocionou. Porque exatamente no
momento em que ele disse isso, o assunto era a escrita. Marcelino
Freire dizia que descobrira cedo que queria ser um Poeta menor, como
na poesia de Manuel Bandeira. E o psicanalista diz, em seguida, para
a câmera: “Você tem que se perguntar todos os dias ‘eu poderia
não escrever?’, se a resposta for sim, então abandona essa
porcaria e vai fazer qualquer outra coisa, mas se a resposta for não,
então faça o melhor que puder, com toda a sua vontade”. Isso é
muito parecido com o que Rilke escreve em suas Cartas a um
jovem poeta.
Toda
essa coisa moveu mais ainda do lugar minha criança interior. Dias
atrás remexi em papéis antigos e achei um diário da infância no
qual eu dizia “Quero escrever um livro”. Não me lembrava mais
disso, mas de alguma forma essa criança se fez ouvir. Precisei de
muitos anos de análise para ajudar no processo todo, mas nos
reencontramos. Agora a porra ficou séria! Decidi escrever um
romance, o que antes me parecia impossível. O mais esquisito é, às
vezes, sentir culpa por fazer as coisas que se gosta, porque é
notável que há um incômodo na forma como algumas pessoas tratam
isso. Mas eu quero que se dane. É o que eu quero.
Tarja
Branca é
o tratamento sugerido por uma das “personagens”, que passou 25
anos carimbando cheque de pessoas que não conhecia, num emprego de
Banco, até que um dia descobriu que podia sair do Banco. Ele tinha
feito Economia, então, juntou Economia e Arte, deu miniatura. Faz
miniaturas lindas. Tarja
Branca é
um remédio que se pinga no ouvido, à base de palavras. “Muitas
pessoas já usam”, diz ele. Sou imensamente feliz por trabalhar com
remédios tarja branca, ouvindo pessoas em meu ofício de
psicanalista, “receitando” palavras; e também escrevendo,
juntando palavras que podem não curar ninguém além de mim, mas me
fazem estar em paz com a criança que me habita. E isso é a melhor
coisa que pode existir. Assistam Tarja
Branca.
Isloany
Machado, 02/02/2015
Trailer do filme
Isloany Machado é Psicanalista, Escritora e Professora. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora dos livros “Costurando Palavras” (ed. Life, 2012) e "Em Defesa dos Avessos Humanos" (ed. Life, 2014). Fundadora do blog www.costurandopalavras.com.br
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