de
Henrique Senhorini
Eu
não sei ao certo o que me levou assistir novamente o belo filme O
Solista do
diretor Joe Wright. Talvez, motivado pelo interessantíssimo texto da
colega Isloany Machado sobre o filme “Garota Ideal” ou talvez
pelo clima outonal deste mês de abril ou, simplesmente, para
confirmar que pouca coisa, que quase nada mudou no mundo dos normais
em
relação aos
chamados loucos da nossa sociedade, desde então. Não importa o que
me fez assisti-lo mais uma vez, pois sei que algo fez.
Trata-se
da história de Nathaniel Anthony Ayers Jr., apresentada como
verídica, contada através de Steve Lopez - jornalista e colunista
do Los Angeles Times - e roteirizada para o cinema.
Ayers
é um sem-teto, morador de rua, exímio músico, apaixonado por
Beethoven, com passagem numa conceituada escola de música e
apresentado com diagnóstico de esquizofrenia. Já o outro
protagonista, Steve Lopez, é um jornalista/colunista que se encontra
em plena crise, talvez não só dele mas de todas redações de
jornais tradicionais de sua época, promovida, de certo modo, pelo
medo oriundo das demissões e falências causados pelo avanço da
internet concomitante a falta de interesse dos jovens por este velho
hábito. Em luta, ele - Steve Lopez - procura uma grande história
para se manter vivo no emprego e também manter vivo o hábito de se
ler jornais. Talvez, procurasse um mais além do que isso.
E
em sua busca - já no filme - Lopez escuta, no parque Pershing, o som
de um violino sobressaindo dos barulhos tradicionais de uma grande
cidade. Reconhecendo o som como música clássica, levanta-se do
banquinho da praça e aos pés de uma estátua de Beethoven encontra
um morador de rua tocando seu violino. Lopez se aproxima e vendo as
inscrições no boné do músico pergunta: “Fã de Stveie Wonder?”.
O sem-teto responde: “Ma
Cherie Amour,
é a canção da minha vida”. Assim se apresentam e iniciam uma
conversa sobre violinos. Nathaniel Ayers fala do seu instrumento com
somente duas cordas, fala de onde veio - Cleveland - enquanto Lopez
diz do seu trabalho. O músico, por sua vez, continua sua fala, só
que cada vez mais acelerada, quase sem pontuações, num fluxo
palavroso com frases sem sentido, que se mostra - não só para Lopez
- como uma verborreia, apresentada desta maneira:
“Há
muitas estátuas militares em Cleveland. Em Los Angeles tem a polícia
e o Los Angeles Times. Vocês tem o L.A. Lakers. Esses são os
exércitos também. A regimentação, experimentação. Telhado
romano, catolicismo romano, o coronel Sanders, o condutor da
orquestra. O violoncelo pode apoiá-lo, mas não pode ser
condutor...”
abro
um parênteses aqui
Neste
instante, a fala de Ayers remeteu-me novamente a uma frase - é de
Leclaire? - ligada à época na qual trabalhei em um hospital
psiquiátrico e também com moradores de rua. A frase que se fez
presente é a seguinte: o psicótico faz
amor com as palavras.
E o por quê desta lembrança? É que nesta época minha escuta
estava mais sensível para a clínica da psicose e esta fala do
Nathaniel - no filme - é um belo exemplo. É uma fala de um sujeito
absorto a algo parecido a uma associação livre sem fim, como um
discurso ininterrupto. Um sem fim da cadeia significante que por
falta do significante mestre (S¹) – Nome-do-Pai, enquanto função
paterna – “as frases não possuem a representação meta que
permitiria precipitar uma significação”, como nos diz Quinet
(2006) em seu livro “Psicose e Laço Social”. Pois o Nome-do-Pai
(pai como termo referencial), que para nós neuróticos é o nosso
ponto de ancoragem, além de ter a função de amarração da cadeia
de significantes com a dos significados, exerce também o ponto de
basta (estabilização do significante e do significado através da
metáfora paterna) que daria um fim ao sem fim destas associações,
um basta na cadeia de significantes. Também é bom lembrar que o
significante mestre, Nome-do-Pai, é um significante de comando que
não necessita estar encarnado pelo pai real, observando que, segundo
Quinet, o real para Lacan em 1956 correspondia à realidade e em 1970
ao impossível, sendo o pai, “no primeiro, o pai do desejo, o totem
da lei”. No segundo, já em 1970, o pai gozador, impossível de
suportar, que condena “todo sujeito a ter apenas restos de gozo”.
E os psicóticos, diferentes dos chamados normais (das normas) - os
neuróticos das normas do pai - possuem o Nome-do-Pai foracluído,
que seria a não inclusão na norma edipiana. Porém, o excluído
pelo sujeito psicótico retorna como delírios e alucinações do
lado de fora. E “quando falamos de volta no Real do que está
forcluído, estamos falando de volta no Real de um lugar e de uma
função que não fazem parte da organização psicótica do
sujeito.”, de acordo com Calligaris (1989) no seu clássico
“Introdução a uma clínica diferencial das psicoses”.
fecho
parênteses
Bem...
voltando ao filme, Nathaniel continua seu desfile... “O
comandante é Itzhack Perlman, Jascha Heifetz... Não se pode tocar
no inverno em Cleveland por causa do gelo e neve. É por isso que eu
prefiro L.A., cidade de Beethoven, porque nunca chove no sul da
Califórnia e se chove basta entrar no túnel e posso tocar o quanto
quiser. Esta estátua me assusta, não te assusta? Ela me encanta,
realmente me encanta. Como alguém como Beethoven era o líder de Los
Angeles?”
Lopez,
ouvindo todo o isso a céu aberto, faz cara de interrogação e se
vira, dando de ombros, para uma rápida e estratégica retirada, do
tipo... deixa
eu ir embora que esse cara é maluco.
Mas ao virar-se vê três nomes esculpidos numa árvore próxima.
Pergunta quem são e obtém de Nathaniel a resposta que foram seus
colegas da Juilliard (escola de artes de Nova York, criadora de
talentos mundialmente famosos). O jornalista colunista cresce os
olhos... estaria aí sua grande matéria, um maluco sem-teto músico
da Juilliard Scholl ?
Em
função disso, da coluna para o L.A.Times, Lopez faz ligações.
Primeiro para Juilliard, buscando confirmação da presença do
músico naquela instituição, depois para a irmã de Ayers, obtendo
mais informações sobre o irmão músico. Decide, então, escrever
sua coluna contando a história de Nathaniel Anthony Ayers, Jr..
Resultado: Sucesso!!!
Uma
leitora sensibilizada doa, ao músico sem-teto, seu antigo
instrumento de cordas esfregadas, cujo tipo fez Ayers se introduzir
na arte da música, um violoncelo. Aquele instrumento que apoia mas
não conduz, nas palavras dele, que tem que ser tratado como uma
criança. O mesmo tipo de instrumento que, na sua infância, o fez
conhecer, apaixonar e idolatrar Beethoven. Que também o fez, anos a
fio obsessivamente, se dedicar integralmente à música, a viver para
ela, pois, através dela - talvez movido pela profecia materna e
também de seu professor - o mundo se abriria para ele.
Obsessivamente a ponto de marcar as posições das cordas do
violoncelo no próprio braço para treinar a noite, em sua cama, até
adormecer. Estaria Nathaniel, sem querer querendo e sem saber
sabendo, envolto numa construção sintomática, de tipo obsessiva,
para tentar reparar a foraclusão do Nome-do-Pai? Colette Soler
(2007), no livro “O inconsciente a céu aberto da psicose”, nos
lembra que Lacan mostrou que esse tipo de construção pode funcionar
como “forma de equilibração de uma psicose latente” que ele,
Lacan, “a trouxe [a forma de equilibração] à luz no caso de
Joyce, no qual ela é um efeito da arte”. Seria o mesmo com Ayers?
É possível.
E
diante da boa repercussão da coluna do L.A.Times, Steve volta a
procurar Nathaniel para que, talvez, possa dar continuidade na sua
história e consequentemente maior visibilidade na sua coluna do
jornal, pois encontrara aí, quem sabe, seu veio de ouro. Até então,
para ele, o maluco nada mais era que um músico com uma história
interessante para ser contada. Lopez o encontra entre carros, quase
sendo atropelado, tentando retirar a sujeira das ruas (uma bituca de
cigarro) pois não tolera a degradação da cidade causada por
aqueles que “não respeitam Beethoven”. Neste encontro, o
jornalista entrega o violoncelo doado e o diretor do filme, Joe
Wright, nos brinda com a mais bela cena do filme, na minha opinião,
embalada pelos acordes do violoncelo na mãos de Ayers. Nesse momento
majestoso, parece que Nathaniel, para Steve, se transforma em algo
maior que uma simples história de coluna de jornal. Um laço social
começa a se formar?
Lopez,
preocupado com a integridade física do músico, tenta convencê-lo
ir a um abrigo, para que este se afaste dos perigos eminentes das
ruas, condicionando (palavra feia, né?) a sua ida à Lamp Community
ao violoncelo. Porém, Nathaniel reluta em sair das ruas - via régia
do inconsciente para os sujeitos psicóticos - dizendo, em vão, que
não é assim que se começa uma relação. Mas, depois de alguns
dias cede à exigência.
outro
parênteses aqui
A
Lamp Community (http://lampcommunity.org/)
é uma instituição sem fins lucrativos, vive de doações, não é governamental e está estrategicamente inserida numa espécie de
cracolândia paulistana deles. Enfim, é uma casa que recebe e
auxilia, sem exigências prévias, as pessoas mais vulneráveis -
mais de 9.000 moradores de rua em Los Angeles - como se definem,
oferecendo até habitação para quem queira.
fecho
parênteses
Nesta
comunidade, Steve encontra várias pessoas ditas loucas, entra em
contato com elas, conversa, interage, ouve suas queixas, vê a
importância delas terem seus espaços para falarem o que der na
veneta e principalmente ter alguém disposto a escutá-las. Acredita
que está no caminho certo. Porém, como muitos de nós, cai na
armadilha que detém um saber sobre o outro. O “eu sei que é
melhor para você” é tão comum entre nós, que isso se dá até -
e principalmente - nas relações mais íntimas, começando nos laços
familiares. Muitos apelam dizendo que fazem isso em nome do amor,
esquecendo que com isso retira a competência desse outro de
aprender, cuidar e viver a própria vida. Chama o outro, mesmo que
indiretamente, de incompetente. Ceder a esta tentação, a tentação
de ocupar este lugar de saber, entendemos
que não é nada fácil, pois acontece até com quem não deveria
deixar acontecer. No caso, talvez por culpa da formação, muitos
psicólogos e alguns psicanalistas que se esquecem da advertência
lacaniana, que em relação ao outro somos ignorantes. Doutos, porém
ignorantes.
Lopez
crê, como muitos, que somente através de um diagnóstico
psiquiátrico (tipo DSM/CID) e da medicamentação, compulsória se
preciso, estaria prestando uma grande ajuda ao músico, pois este
ficaria (na fantasia de Lopez) dentro da “realidade”,
esquecendo-se que cada um - mesmo os neuróticos - tem
a sua versão e ou perdas e alterações fragmentadas da mesma
realidade compartilhada. E em busca de aliados da sua verdade,
aproxima-se de David (tipo coordenador da Lamp) para que este
providencie a satisfação de seu desejo. Porém recebe, a
contra-gosto, a resposta que este, o coordenador da Lamp, não se
interessa muito por diagnósticos. Sem entender e indignado, Lopez
retruca: “como pode ajudar alguém se não se sabe o que ele tem?”.
“Olhe para estas pessoas”, tenta explicar David, “todas foram
diagnosticadas mais do que pode imaginar. Pelo que eu vejo, não fez
bem a ninguém.”. Lopez insiste: “mas ele precisa de medicação”.
“O que ele não precisa é de mais uma pessoa dizendo-lhe que
precisa”, finaliza David.
Steve
não percebe, não entende ou não quer entender, que ocupar o lugar
de suplente do significante-mestre de referência, como
uma “pseudometáfora paterna” (Calligaris) para o músico tentar
promover um tipo de autofiliação que lhe dê sustentação, “a
cada momento,
com sua certeza”, apenas(?) oferecendo sua amizade para que
Nathaniel tente se enlaçar socialmente a ele, não é pouca coisa.
Não, uma amizade, definitivamente, não é pouca coisa!
Até
então, numa tentativa de dar sentido ao sem-sentido, Beethoven
ocupava este lugar - lugar da foracluída metáfora paterna - através
da construção de uma “metáfora delirante”. Sabemos que, para
Freud, o delírio é uma tentativa de “cura” da psicose, assim
como as tentativas de inserção no laço social, para Lacan. Pois
apesar dos sujeitos psicóticos se encontrarem “fora-do-discurso
[os 4 discursos: do mestre, do universitário, da histérica, do
analista] e, portanto fora do laço social” isto não impede “todas
as suas tentativas de estabelecimento de laço social, na medida em
que está tanto no campo da linguagem quanto no campo do gozo”, nas
palavras de Quinet.
Entretanto,
Lopez insiste e persiste, como que tomado por um furor sanandi,
enquadrar no nosso quadradinho o que é não é quadrado. É difícil
conviver com o diferente, com os que não pensam, não agem, não
seguem as mesmas normas e regras dos considerados normais. Para
alguns, além do impossível da convivência, é muito difícil até
de aceitar que existem pessoas que simplesmente não são como nós,
que não compartilham do nosso modo de ser. E já que não é
possível transformar um psicótico em um neurótico, queremos porque
queremos fazer com que sejam, no mínimo, parecidos com a gente - nem
que for na marra - sob o pretexto que desejamos o melhor para eles.
Ah... Essa hipocrisia, socialmente aceita, nos faz dormir melhor?
E
caso não aceitem e não queiram se enquadrar, nós os varremos do
nosso campo de visão, pois o que não vejo, logo não existe ou,
pelo menos, posso pensar que não, ou ainda tentar esquecer (na maior
parte do tempo) que existe gente assim. É o que acontece desde
sempre, ao longo da história, via hospícios, manicômios (o horror
de Barbacena), extermínios (Hitler), política e polícia repressora
e outras formas de exclusão em nome da higienização. Mas que
higiene é essa? Higiene de quê?
Bem...
daí surgiram expressões como louco “varrido”, por exemplo,
para identificá-los.
Somente
agora - no Brasil após a reforma psiquiátrica e da lei
antimanicomial (LEI
No10.216,
DE 6 DE ABRIL DE 2001)
- podemos enxergar alguma luz no fim do túnel para os sujeitos
psicóticos. Mesmo assim, precisamos de algum esforço para ver esta
luz sem o uso de uma boa luneta, mesmo parecendo ser simples promover
a inclusão do psicótico na sociedade, pois para tanto basta incluir
as diferenças, a diferença do psicótico, pela mesma. Ah...
lembrei de mais uma expressão: lunáticos.
Ao
filme... O jornalista, apesar de todo seu ceticismo, tenta se
convencer das palavras ditas por profissionais da área psi, que a
amizade é o melhor que ele poderia oferecer para o bem do músico,
agora amigo. É o que acontece no fim do filme. Steve Lopez,
quebrando alguns de seus pré-conceitos em relação a loucura,
percebe, enfim, que é possível construir e manter um laço social
viável entre um psicótico e um neurótico, também, pela via da
amizade. Por incrível que pareça, tenho a impressão que a
dificuldade em aceitar esta possibilidade está mais do nosso lado
(dos ditos normais, das normas do Pai) do que do lado deles (dos fora
das nossas normas, do falocentrismo). No final, na cena final,
suscita a última questão: estaria aí nesta nova amizade, para
Lopez, seu mais além do veio de ouro? Quem sabe...
São
Paulo, 27 de abril de 2015.
Trailer do Filme
Um comentário:
Seu belo texto me trouxe outro olhar sobre o filme. !Muito bom! vou rever o filme ....
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