de Olivan
Liger
O
filme do diretor John Wells teve duas indicações ao Oscar, Meryl
Streep como melhor atriz e Julia Roberts como melhor atriz
coadjuvante.
O
cenário são as pradarias do condado de Osage em Oklahoma, Estados
Unidos. Superfícies planas e secas. Agosto: condado de Osage é o
título do filme. Um filme duro, seco e quente como um verão nas
pradarias de Oklahoma, onde se confirma a natureza destrutiva do ser
humano e através dessa natureza destrutiva e auto-destrutiva,
histórias se constroem, vínculos se perpetuam.
Como
o título em português, o filme vai nos revelando os traços, a
história construída e segredos da família, como se folheássemos
um álbum onde cada foto nos revela a história da construção dos
vínculos que (des)unem os personagens desse filme.
-”A
vida é muito longa” (T. S. Eliot) é a frase que Beverly, o
patriarca, fala no início do filme e começa a narrar a sua
história. Pouco a pouco, vamos entendendo que a vida é muito longa,
quando se abre mão do desejo. Bev é casado com Violet, um casamento
que segundo Bev - “Foi nosso acordo; um parágrafo do contrato
matrimonial. O fato é que minha esposa toma pílulas e eu bebo”,
ou um casamento de sintomas mediado pela predominância da escolha
narcísica de objeto em ambos. Ainda na narrativa inicial, Bev fala
para a empregada, Johnna, que está contratando para tomar conta de
Violet: - “Os livros como meu último refúgio”. Abrir mão do
desejo implica na impossibilidade do investimento libidinal nos
objetos e confronto com o indizível do real, a falta. A bebida e
escrever poesias são aquilo que condensou tudo o que restou do
desejo e encobriu a falta em Bev.
Violet
ingere todo tipo de pílulas e no decorrer do filme, fica claro a sua
dependência química instalada há anos. Tem um câncer de boca que
curiosamente nos sugere a ligação com o oral, com a fala e a
palavra. Fala para a filha mais nova Ivy: - “Minha boca está
ardendo para caramba, minha língua está em chamas”- significantes
que traduzem o seu veneno e o quanto vai tentando destruir cada um a
sua volta, de forma ferina e cruel, como um dragão que cospe fogo e
destrói tudo ao seu redor, mas ao destruir o outro, se destrói.
O
casal tem três filhas, a mais nova Ivy, a filha do meio Karen e a
mais velha Bárbara. Cada uma das filhas usou de defesas próprias
contra a disfuncionalidade da própria família onde encontramos um
homem/pai depressivo, alcoólatra e desistente da vida e uma mulher
fálica, controladora, viciada em medicamentos e dominada pela pulsão
de morte, evidenciada na sua agressividade contra si mesmo e
principalmente contra todos à sua volta. Ivy é a filha que vive e
cuida dos pais, na tentativa de ser reconhecida e amada, de deixar de
ser o lixo da mãe. Karen, uma mulher madura porém regredida que se
comporta como uma adolescente todo o tempo e que encontra no perverso
Steve, 10 anos mais velho, a idealização do homem perfeito que
casará e passará a lua-de-mel em Belize, seu único objetivo de
vida. - “Eu vivo o agora”, este é o mote de Karen, como uma
adolescente perdida e apaixonada. Bárbara, segundo a descrição do
marido que a traiu com uma mulher bem mais jovem, razão de estar
separada desde então: - “Você é tão moralista, você é
atenciosa, mas não é acessível. Você é ardente, mas é dura”,
é a filha que foi favorita do pai e que “bate de frente” com a
mãe. O significante “bate de frente” faz jus ao ataque à mãe
durante o jantar do funeral de Bev, o qual planeja e cumpre o
suicídio. Bárbara tem uma filha adolescente que fuma maconha e que
reproduz na sua relação com a mãe, a relação de Barb com Violet.
Outros
personagens rodeiam a família nuclear do filme, a irmã de Violet,
Mattie Fae, seu marido Charlie e o filho Little Charlie. Esta família
imita a família nuclear. Uma mulher fálica que inferioriza o filho
todo o tempo, tratando o como um deficiente. Little Charlie tem algo
em comum com Ivy, tenta todo o tempo ser perfeito para responder a
demanda da mãe e assim ser reconhecido, se identifica com o pai
afetivo, mas sem força de lei.
Assim,
Violet, Barb e Mattie Fae são desenhadas como mulheres duras e
fálicas.
O
jantar do funeral é um dos pontos cruciais do filme. Violet, sob
efeito de medicação, faz todo tipo de ataque violento a cada um dos
membros da família. Fala da infância difícil dela e do marido: -
“Este é o nosso problema. Tivemos uma vida difícil demais”.
Sugere que o mundo lhe deve algo, lhe deve honras pela história
difícil, lhe deve reconhecimento, lhe deve autoridade. Escancara-se
nesse momento a luta pelo poder, pelo falo entre ela e a filha Barb.
Não é uma mãe, exceto pela condição biológica, é uma
competidora a quem a filha se identificou. Barb a ataca fisicamente
para tomar-lhe as pílulas e diz - “Eu é que mando agora”.
Violet nos reporta ao mito de Chronos, que nunca deixa seus filhos
assumir o trono. Quando estão prontos para assumir o trono do rei,
este os devora para nunca permitir a circulação do falo.
Numa
conversa entre irmãs, vai se desvendando segredos como a
histerectomia de Ivy devido a um câncer e sua relação afetiva com
Little Charlie. Ivy é o bode expiatório da família, o lado frágil
que não conseguiu deixar o ninho, o sintoma familiar, e sonha
abandonar tudo aquilo em troca de uma vida de amor com Little Charlie
em Nova York. Ninguém quer a responsabilidade de cuidar da mãe
tirana e cruel e nessa conversa, se referindo ao vínculo com as
irmãs, Ivy diz: - “Não sinto que seja uma ligação muito forte.”
Um engano do sentir... uma verdade se idealizarmos relações
amorosas e suaves como única forma de criar vínculos, mas os
vínculos se fazem de outras formas, com afetos como raiva, medo,
submissão e destrutividade. É uma ligação forte, muito forte que
até então foi regida com maestria por Violet e Bev. Ligação forte
pela competitividade da mãe e filha, pela tirania da mãe sobre as
filhas, pela demanda por um pai ausente e submisso que interdite a
mãe, imponha a lei e faça o falo circular. Ligação que transcende
o espaço e o tempo, pois mesmo distante Karen busca o pai capaz de
valorizá-la em Steve, de quem espera ser a escolhida para o
casamento e uma lua-de-mel em Belize. Presas pela história todos são
regidos pela compulsão à repetição da pulsão de morte.
Numa
cena seguinte, Charlie repreende Mattie Fae pela sua destrutividade
em relação ao filho, única cena que se faz lei. E mais uma parte
da história vai se revelando quando Mattie conta a Barb que Little
Charlie é irmão dela e não pode estar envolvido com Ivy. Little
Charlie é a lembrança viva de um deslize, de uma imperfeição, de
uma traição da mãe, por isto precisa ser combatido, destruído tão
cruelmente. É o rastro de uma falha que precisa ser apagado. É o
obstáculo ao recalque que faz da lembrança, o ato vivo que se
presentifica todo o tempo para Mattie Fae.
Como
uma chama de vela que vai se tornando uma tocha e iluminando toda a
história, os segredos e as patologias de cada um vão aparecendo. Há
uma permanente ameaça a integridade psíquica e física dos membros
dessa família. Jean, 14 anos, filha de Barb fumando maconha e
aceitando o assédio do perverso Steve são testemunhados pela
empregada. Karen, usa da defesa de negação para não desmantelar a
sua idealização de Steve como um homem bom que a escolheu. Prefere
sustentar a ilusão do casamento e a lua-de-mel em Belize a admitir a
estrutura perversa de Steve. É o que lhe resta pois não foi a
favorita do pai e é ignorada todo o tempo pela mãe. Saem assim da
história.
No
momento seguinte, Ivy decide contar para Violet sobre seu namoro com
Little Charlie e Violet lhe diz que são irmãos, que sempre soube
disto. Uma vitória para Violet que se mostra no controle todo o
tempo, nada lhe passa oculto, está sempre um passo adiante de todos.
Parece não perceber o desmoronar da filha frente a verdade de que
seu amado é seu meio irmão. Goza por mostrar seu controle, seu
sintoma, mas se trai ao deixar escapar sobre o bilhete que Bev lhe
deixou antes de morrer, no qual lhe contava o hotel que estava e sua
intenção de suicídio. Violet nada fez para impedir. Primeiro foi
retirar todo o dinheiro do casal no cofre do banco e quando ligou
para o hotel, Bev já tinha partido no seu barco para morrer afogado
no lago. Queria se livrar da presença masculina para que triunfasse
o seu poder feminino? Para Bev, a vida era longa demais. Para Violet,
a vida parecia curta para dominar a todos e a tudo. Tenta
responsabilizar Barb pelo suicídio do pai que ressentido do seu
abandono, abandonou o estatuto de sujeito desejante. Era Bev o duplo
do espelho que ameaçava o trono narcísico de Violet? Ou diante de
sua resignação a submissão, deixou de ser importante para desafiar
Violet? E na sua onipotência narcísica, Violet diz - “Quando não
restar mais nada, quando tudo se for e desaparecer, eu estarei aqui.”
E
quando nada mais restou e todos se foram, Violet estava lá para se
render nos braços acolhedores da empregada Johnna, com quem não
precisa competir, com quem não se sente ameaçada e desafiada a
mostrar seu controle e poder, para quem a sua fragilidade e solidão
não são armas usadas contra si.
Poderíamos
entender a necessidade de controle e poder de Violet como a defesa ao
delírio persecutório decorrente de anos de dependência de
medicamentos ou ainda refletir acerca de uma forma de assegurar o não
retorno a uma história de vida miserável e cheia de sofrimentos.
Assim
é um álbum de família, onde registros indeléveis das mazelas de
cada um aparecem nas fotos envelhecidas e desvanecidas pelo tempo e a
história vai se construindo a cada foto/cena e mostrando a condição
humana de destrutividade e angústia como elementos estruturantes e
vigentes.
trailer oficial
Olivan Liger, psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ.
Um comentário:
Muito boa a sua resenha colegão, só sendo um pouco chato... Karen não usou a negação, acho que usou a distorção da realidade e um pouco de anulação.
Acabei de ver o filme e vim ver uma visão analítica do filme,(além da minha)que é muito bom!
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