de Christian
Ingo Lenz Dunker
The
Fall: A Queda
The
Fall (2008), dirigido por Tarsem Singh e inspirado na peça de Yo
Ho Ho de Valery Petrof é um exemplo contemporâneo de como o cinema
consegue apresentar o problema da co-presença de perspectivas.
“Dublê de Anjo”, segundo a versão nacional, é inteiramente
inspirado naquilo que, sendo condição de possibilidade prática
para a realização do cinema de aventura, não deveria ser percebido
como fazendo parte dele, ou seja: a figura do dublê. Lembremos que a
ideia de um ator que substitui outro, sendo o truque desapercebido ao
público aparece de modo contundente em momentos estratégicos na
história do cinema, como em Um Corpo que Cai (Vertigo)
de Hitchcock ou Aconteceu naquela Noite (Blow up) de
Antonioni. Filmado em mais de 18 países trata-se de uma produção
da Googli Film. Googli é uma expressão neológica, quiçá
alusiva a esta nova forma-saber chamada Google, representado no
próprio filme como “a coisa” da qual Alexandra, a menina
protagonista, tem medo e horror, o Googli-Googli. Alusão ao
terrível e impossível encontro entre a criatura e seu criador.
A
atriz mirim romena (Catinca Untaru) é levada a acreditar, durante a
filmagem, que o ator principal (Lee Pace), que interpreta um
paraplégico, é de fato paraplégico. Temos então expressa uma
intenção realista extrema de fazer coincidir a representação dos
personagens com a crença dos atores. Como ela diz: “A história
é só um truque para você fazer um favor para mim”.
O
enredo apresenta uma menina de sete anos que perdeu o pai e trabalha
com a mãe em uma plantação de laranjas na Califórnia dos anos
1920. Depois de um acidente [Fall] Alexandra encontra com um
ator dublê, acidentado e envolvido em profunda melancolia. Ele ama a
mulher que pertence ao herói galã, de quem ele é o dublê em um
filme de Faroeste nos tempos da aurora holiwoodiana. Alexandra e
nosso dublê tem algo em comum: ambos perderam um objeto de amor e
sofreram eles mesmos uma queda real, a menina está com o braço e
ele com a perna quebrada. Estão às voltas tanto com a elaboração
de um trauma quanto com o concomitante trabalho de luto.
Estão
ambos em um hospital povoado por figuras mitológicas como a
enfermeira Evelyn, que poderia substituir o amor perdido pelo dublê,
o médico caridoso, que poderia ser o dublê do pai perdido por
Alexandra, e o terrível minotauro mascarado, o homem do Raio X, o
homem sem rosto destruidor de amores, fonte indutora da
indeterminação entre familiar e estrangeiro (Unheimlich), de
angústia (Angst) e de pavor (Schreck).
A
relação entre Alexandra e o dublê se estreita porque estão ambos
em convalescença por causa de uma queda (Fall): cair de amor,
cair das folhas de outono, cair e quebrar o corpo, fall in love,
tombeaux amroreause. É também por meio de um truque, de uma
“manipulação” que o dublê faz a menina encontrar e trazer o
remédio [pharmakon] com o qual ele tenta se matar, ou se
curar.
Neste
ponto de cruzamento de duas perspectivas a história se dobra em uma
outra história. História que o dublê inventa e conta
compartilhadamente para Alexandra e cujo adiamente do canclusão,
qual Sherazade, a coloca a “fazer coisas em nome de”. Nesta
história fantástica, dentro da história realística, a Princesa
Evelyn, enfrenta o Bandido Negro (Black Bandit) e o
Governador Odious em uma aventura maravilhosa por castelos, mares,
desertos e jardins distantes. São as aventuras de cinco
heróis que tentam libertar a princesa do jugo de um vilão. No
trajeto há a inclusão de dois novos personagens Aborígene e a
Alexandria. Alexandria: como não lembrar aqui do Farol que guiava os
antigos navegadores egípcios e onde se localizava a grande
biblioteca, depositária das histórias da antiguidade. A entrada de
Alexandria, na história corresponde a uma nova reversão que nos dá
agora uma história dentro de outra história que inclui o narratário
a quem a história se destina. Uma vez incluída a pequena
protagonista descobre que ela mesma pode ingerir em certas partes dos
acontecimentos, reduzindo impasses e “curando” o seu antes
solitário e soberano narrador. Temos então um estado de coisas que
introduz uma quarta perspectiva, meio joyceana: de narratária ela
passa a co-autora e co-narradora.
A
saga épica termina em um romance que conclui-se com a união entre a
Princesa Alexandria e o Bandido Mascarado. Mas há ainda um ponto de
convergência entre as quatro perspectivas: da história vivida no
hospital (entre médicos e enfermeiras), da história das quedas
lembradas (perda do pai e da amante), da história das aventuras
futuras (o romance imaginado) e da história da cura cruzada operada
entre o dublê e a menina, que é também a perspectiva da realização
do filme de Faroeste que vemos projetado ao final (a indeterminação
narrativa). A passagem entre cada uma destas perspectivas está
marcada por um ponto de angústia, que se liga a procedimentos
formais específicos da linguagem fílmica: repetição (Alexandra =
Alexandria), deformação (o Homem do Raio X = Herói Mascarado) e
subtração (a morte real dos ajudantes = morte possível do dublê)
. Este ponto irrompe violando a realidade diegética de cada uma das
perspectivas ou dos “mundos” que o filme cria e interpenetra. Não
há metalinguagem porque somos todos dublês e todos caídos. Não há
metalinguagem porque a fantasia fracassa e é nestes fracassos que
ela se torna tão mais útil do que em seus sucessos.
Há,
portanto, e ainda uma quinta realidade em jogo. A do filme real que
está sendo produzido, no qual nosso protagonista, dublê e herói.
Uma história que é a um tempo lírica, dramática, épica e
trágica. Se estamos aqui também na história das origens do cinema,
uma quinta “realidade” que só pode ser unida ou cruzada
(Verschränckung) a partir de uma posição que permanece
estruturalmente recalcada e que não é a apenas a dublê, mas a de
nós mesmos participando desta história quando vamos ao cinema
assistir “Dublê de Anjo”.
Temos
então cinco planos ou perspectivas nas quais se desenrola a ação
do filme. O filme é um quebra-cabeças narrativo, pois cada um
destes cinco planos possui índices que representam um novo sujeito
para cada uma das quatro perspectivas restantes. Por exemplo, na
perspectiva da aventura maravilhosa, nós temos cinco personagens,
cada qual referido a uma dimensão: (1) o Indiano, referência
à narrativa maravilhosa e seu cenário oriental, é o único
personagem que representa o próprio plano ao qual ele pertence, (2)
o ex- Escravo, referência a narrativa do faroeste e ao gênero do
filme de aventura, (3) o Perito em Explosivos, referência à
narrativa de produção fílmica e a trucagem, na qual se inclui o
dublê (4) Charles Darwin, referência à narrativa
médico-hospitalar e ao naturalismo expressivo (5) o Bandido
Mascarado, o personagem que representa a história “real”
exterior a este parênteses representado pelo hospital, ele tem que
ser mascarado porque deve ocultar sua identidade de tal forma que a
ocultação seja apresentada (máscara).
A Fantasia como Perspectiva
Talvez
o cinema possa vir em nosso auxílio para nos ajudar a entender o
problema psicanalítico representado pela fantasia, ou seja, como é
possível o funcionamento articulado de diferentes perspectivas no
interior de uma mesma experiência?
Se
Lacan afirmava que a fantasia se estrutura como uma tela, podemos
desdobrar a tese para a ideia de que se apreende melhor a estrutura
da fantasia como um filme. O enquadre da fantasia se altera um pouco
quando pensamos a função da tela, de pintura ou de projeção, como
objeto e suporte de nossa ficção, ou como ponto de articulação
entre a verdade e o Real. Examinando alguns efeitos ópticos (como a
paralaxe e a câmara clara) e algumas teses psicanalíticas, pode-se
mostrar como a sustentação da construção da realidade depende de
certas deformações, repetições e subtrações de objetos na tela.
Filmes da aurora do cinema (Méliès, Buñuel) bem como filmes
contemporâneos (Matrix, Mais Estranho que a Ficção,
Closer), se utilizam dessa homologia entre o conceito e a prática
visual da perspectiva para produzir efeitos construtivos e
desconstrutivos sobre a fantasia. Isso acontece porque a própria
fantasia se “estrutura como uma janela”. E isso já havia sido
percebido na história das artes plásticas, principalmente nos
“mestres ópticos”, ou seja, naqueles pintores, como Van Eick,
Holbein e Lotto que incorporavam, dentro de suas próprias telas,
índices e rastros de sua própria construção como ilusão. Até a
invenção da fotografia, em 1840, boa parte da pintura dependia da
projeção de imagens reais e eventualmente de sua deformação
calculada. É com a chegada desta reversão da projeção, que é a
fotografia, que impressionismo, expressionismo e as vanguardas em
geral, reformularam a pintura como uma arte da experiência do olhar
e não mais como representação pictográfica do mundo.
O
conceito de fantasia em psicanálise possui uma extensão muito
grande de conotações. Freud falava da fantasia para designar o
processo de produção de imagens, tanto por meio da fabricação de
um objeto pictórico (Einbildung) quanto por meio de uma
animação de imagens (Phantasieren). As fantasias
exteriorizadas em objetos colocam um problema, pois elas são ao
mesmo tempo parte do mundo real e expressão de um mundo imaginado.
Seria falso, portanto, pensar que a imaginação cria um mundo que se
opõe bipolarmente ao mundo real. O ideal faz parte do real. Entram
nessa acepção as noções de ilusão e de realidade psíquica. Esta
função da fantasia parece ser importante para estabilizar a
experiência do sujeito, introduzindo sentido e significação ali
onde a realidade oferece obstáculos para ser representada, figurada
ou mesmo imaginada. A característica marcante desta acepção de
fantasia é que ela aparece como uma espécie de realidade subjetiva
complementar, ou de síntese de representações, necessária para
resolver uma contradição real ou uma irrepresentabilidade da Coisa.
Temos aqui o circuito que liga o filme, como objeto da indústria
cultural, produzido e vendido como peça de entretenimento, e o filme
como apoio para nossa faculdade de negação, capaz de nos tirar de
nós mesmos e imaginar “outros mundos”.
A
segunda acepção de fantasia a entende como uma espécie de mediador
psíquico da relação com o mundo. A fantasia se “infiltra” em
acontecimentos reais, sendo expressa, por deformações de memória
(lembranças encobridoras), por deformações de percepção
(alucinações, sonhos) e deformações da própria experiência
corporal (protofantasias). Neste sentido se pode falar em fantasias
de sedução, da cena primária ou da castração, das fantasias
bissexuais da histeria, ou das fantasias fálicas das crianças. Aqui
a fantasia funciona como um léxico capaz de nomear as variedades de
exigência pulsional, de relação ao corpo e de interpretação da
diferença sexual. Neste caso uma fantasia pode ser pensada como uma
“estrutura de ficção” no interior da qual relações téticas e
funcional veritativas podem ser construídas, derrogadas ou postas à
“prova de realidade”. Neste caso a fantasia se posiciona entre o
trauma e o luto, como dispositivos mais simples, que ela acaba por
articular para que o sujeito possa tornar compatível lei e desejo,
princípio de prazer e princípio de realidade. Temos aqui o efeito
que o cinema é capaz de extrair e produzir afetos, lembranças e
pequenos fragmentos “reais” de sentido e contra-sentido.
Uma
terceira maneira de pensar as fantasias é dividindo-as em fantasias
pré-conscientes (sonhos diurnos), conscientes (devaneios) ou
inconscientes (recalcadas). Neste caso a fantasia possui uma
estrutura similar ao sintoma, envolvendo deslocamento, condensação
e a combinação entre processos primários e secundários na
realização do desejo. Lacan pensou desta maneira ao valorizar a
noção de fantasia fundamental, como polo de convergência das
fantasias a uma espécie de frase fundamental, monótona e repetitiva
na vida pulsional do sujeito, ao modo de uma “síncope do
significante”. Talvez esta seja a fórmula mágica para a criação
de universos paralelos, desdobramento de mundos e transformações
entre planos de ação, que caracterizam a construção da “realidade
maravilhosa” no filme de Tarsem Singh.
Uma
quarta maneira de agrupar a fantasia é considerar que ela é uma
espécie de gramática fundamental do desejo pela qual ela se
expressa preferencialmente em relações de identificação, projeção
ou introjeção que organizam a relação do sujeito ao objeto ou a
sua falta. Aqui a fantasia comanda as relações de crença,
convicção, recuo ou exclusão em relação à realidade que se lhe
apresenta. Lacan pensou esta variante da fantasia ao falar na afânise
do sujeito, quando descreve sua posição intervalar na cadeira
significante ou quando aponta para suas relações alternadas de
inclusão e exclusão no campo do Outro. Neste caso a fantasia
estabelece ordem e continuidade na realidade, ao modo de um
encobrimento do Real. Ora, este re-encobrimento do Real, ocorre por
meio de operações de duplicação imaginário do eu do sujeito, mas
também por esta espécie de confusão calculada por meio da qual, no
filme, Alexandria conta e é contada pela história, cura e é curada
pelo dublê, lembra e é lembrada em seu próprio luto.
Finalmente,
uma quinta forma de considerar a fantasia é pensá-la por sua
relação com a angústia, e, portanto, como um dispositivo
defensivo. Falamos aqui de processos como o retorno à própria
pessoa (narcisismo), inversão da pulsão ao contrário
(masoquismo-sadismo), negação ou sublimação. Este parece ser um
caso composto por elementos das acepções anteriores, concentrando
sobre si as propriedades de unidade, coerência e consistência da
realidade.
Podemos
dizer que em cada um dos casos acima tentamos definir um sentido de
fantasia que acaba compreendendo um modo de articulação da
realidade: como oposição ao ideal, como condição de possibilidade
subjetiva de apreensão libidinal de objetos, como hierarquia ou
englobamento de sentidos, como gramática de inclusão, exclusão ou
implicação do sujeito e finalmente como unidade da experiência. Em
cada caso a fantasia ao mesmo tempo organiza certo regime de
realidade e localiza um furo, uma inconsistência, um ex-sistência
ou uma contradição no interior desta realidade, que é o que Lacan
chamou e Real. Ora, manejar clínica e conceitualmente tal variedade
de entendimentos sobre a fantasia é uma dificuldade para o clínico
e para o estudioso da psicanálise. Ainda mais porque as acepções
aqui elencadas se entrecruzam e se combinam de maneira não
excludente.
Uma
tentativa de síntese pode ser tentada a partir da tese proposta por
Lacan de que a fantasia funciona como uma janela pela qual
estruturamos a realidade. Mas, podemos acrescentar com a
linguagem fílmica, a fantasia também é o lugar no qual a
realidade fracassa, dando ensejo a aparição temporal do Real.
Esta tese pode adquirir valor integrativo, em relação à
diversidade de acepções antes sugeridas, se entendemos que o que
está em jogo na noção de “janela” é, no fundo, o conceito
mesmo de perspectiva. Não é apenas que a fantasia crie
perspectivas, ou “pontos de vista” sobre o mundo, mas a fantasia
é esta perspectiva ela mesma. Se isso é verdade cada acepção
diferencial de fantasia é no fundo um tipo de perspectiva. E estas
perspectivas se articulam ao modo de superfícies mais ou menos
compostas.
O Cruzamento de Perspectivas
A
perspectiva é um método pelo qual se pode representar objetos
tridimensionais em uma superfície bidimensional. Toma-se um objeto e
se o projeta a partir de um ponto (ponto de fuga), que se encontra
sobre o eixo ótico. Todas as linhas de projeção da pintura
convergem para este ponto de fuga. Uma mesma projeção pode
corresponder a diversos objetos diferentes.
A
experiência de Bruneleschi (1377-1446) mostra como a perspectiva
depende de que se assuma um ponto de vista (uma janela), da qual será
possível estabelecer projeções regulares dos objetos
tridimensionais em superfícies bidimensionais. Todas as linhas de
fuga (perpendiculares) encontram-se no ponto de vista. Mas o quadro
não pode prescrever o lugar no qual o olho do espectador deve se
instalar. O lugar de onde devemos olhar o quadro não é mostrado no
próprio quadro.
O
quadro, como disse Albert Dürer, é uma janela atravessada pelo
olhar. Ou seja, o lugar do pintor deve permanecer como um lugar
invisível. Há um equivalente disso no cinema. O espectador não
pode ser situado no próprio filme, pois o próprio efeito fílmico
depende deste ocultamento. Há alguns truques para ultrapassar este
ponto. No filme de Woody Allen (Whatever Works, 2009), um
grupo de aposentados conversa sobre uma história, quando Woody Allen
dirige-se para o espectador e faz uma exposição sobre a ilusão ao
qual ele está submetido. Outra forma de “devolver” a posição
do olhar ao espectador é a anamorfose. Em Os Embaixadores
(Holbein, 1502) é a caveira em anamorfose quem olha para o
espectador. Mas ela só pode ser reconhecida como caveira por uma
mudança de ponto de vista (lateral e não mais frontal), antes disso
ela é percebida como uma mancha. Desta forma, como argumentou Lacan,
o quadro é uma espécie de “descanso” para o olhar, e uma
“armadilha” para o olho.
A
engenhosidade do filme de Tarsem Singh é que ele desenvolve estas
cinco perspectivas retomando as cinco estratégias históricas de
compor “perspectivas ópticas”.
Há,
primeiro, a perspectiva hierárquica (medieval) pela qual a
perspectiva é uma construção simbólica que instrumentaliza a
apreensão do espaço. A perspectiva constrói uma narrativa: o que é
mais importante é representado como maior, e assim por diante. Como
a criança, observada por Vigotsky, que ao representar o fogão a
lenha desenha o fósforo gigante dada a sua importância para o
funcionamento do dispositivo. Esta perspectiva é discutida por
Diderot em sua Carta aos Cegos para Uso dos que Vêem e
corresponde ao tema clássico da inclusão do pintor no quadro por
meio de sua própria imagem ali pintada, como Signorelli no Afresco
da Catedral de Orvietto, discutido por Freud em sua Psicopatologia
da Vida Cotidiana. Em vez do nome a imagem do pintor. Essa é a
perspectiva usada para filmar as figuras gigantes e ameaçadoras no
hospital, criando um mundo de “realismo fantástico” a partir de
operações de aumento e diminuição de proporção entre elementos.
O que lhe é característico formalmente são as operações de
duplicação ou de dualização da realidade.
A
segunda perspectiva é chamada também de linear (naturalis).
Aqui o olhar pode ser incluído no quadro a partir do trompe
l´oeil, ou seja, pequenas alterações de perspectiva que criam
proporções não consoantes com o “espaço real”. Esse é o
recurso pelo qual o pintor pode ser incluir no quadro por meio do
espelho que reflete sua imagem, como em O Casal Arnolfini, de
Jean Van Eick, ou em As Meninas de Velásquez. Aqui a
realidade diegética é formada pelo campo da representação, tal
como vemos nos processos de lembrança e rememoração, que
Alexandria passa ao longo do filme ao recuperar as cenas traumáticas
nas quais o pai é retirado de casa e morto por bandidos, na frente
de seus olhos. Mas convém lembrar que a “lembrança naturalista”
é antecedida pela “deformação imaginada”.
A
terceira perspectiva é a perspectiva geométrica (artificialis).
Ela supõe um ponto de vista único no qual o espectador deve se
colocar para ver o quadro. Este é o ponto de vista cuja
projeção no quadro é o ponto de fuga. “Para a
qualidade da imagem ser mais fiel, e representar melhor um objeto,
eles não devem se assemelhar a ele”. (Descartes, R. –
Dióptrica). Aqui encontramos a demarcação da visão-espaço,
mas não do olhar (que depende da luz). A imagem é um
mediador entre o sujeito e o objeto definindo um campo da visão
a partir de um plano geometral (Imaginário-Simbólico). Agora não é
caricatura do pintor nem a posição do olhar da criança que lembra,
mas o olhar incluído no quadro por meio da anamorfose, como
Holbein em Os Embaixadores, ou nos paradoxos visuais de
Escher, ou seja, deformações cônicas ou piramidais que alteram a
projeção da imagem segundo regras constantes e que cruzam
perspectivas distintas sob o mesmo plano de projeção. Encontramos
esta perspectiva na maneira como são filmadas as aventuras dos cinco
heróis em seu “mundo mágico”. Esta é a perspectiva do dublê,
o contador (manipulador) de histórias.
A
quarta perspectiva é chamada também de atmosférica (luz e
cor). Aqui se trata de partir de um ponto luminoso, de brilho ou
sombra incoerente, de cor incongruente, de mancha, pelo qual o olhar
pode se incluir no quadro como objeto indeterminado. Como disse
Leonardo Da Vincci: “A pintura compreende duas partes
principais: a primeira é a forma, isto é, a linha que define as
formas dos corpos e seus detalhes; a segunda é a cor, encerrada
dentro dos limites da primeira”. O pintor se inscreve no quadro
por meio de um ponto luminoso, um ponto de cor, brilho ou mancha que
representa o olhar como objeto. Há um ponto que precisa ser barrado
para que a visão se produza, é a tela (écran) ou anteparo.
Foi o que Merleau Ponty discutiu em Visível e Invisível a partir
da experiência de ver e ser visto e a partir do qual ele
introduz a noção de carne. A tela surge aqui como mediador
entre o sujeito e o ponto do olhar (luminoso) formando todo um campo
do olhar. Aqui está o ponto no qual o dublê deve se
indiferenciar do ator que ele substitui. É o ponto no qual o filme é
representado como a luz que se projeta, ofuscando o próprio olhar.
No filme de Singh este ponto pode ser representado pelo nome que dá
unidade ao semblante do filme: a queda. A queda do pai, na cena em
que será morto; a queda do dublê que o leva ao hospital, a queda
ela tem pelo dublê, seu herói redivivo e finalmente a queda mais
importante, a única que de fato exige este tipo de perspectiva, ou
seja, a do próprio espectador que se envolve com o filme. Por isso
esta perspectiva forma a transferência. Nesta perspectiva temos a
aparição dos fenômenos de indeterminação, ou de
inclusão-exlusiva, da narratária no campo do narrador, do dublê no
campo do filme, da cura contada na cura realizada.
Em
quinto e último lugar, encontramos neste filme a perspectiva do
plano projetivo. Ele é produzido pela combinação de
perspectivas anteriores e ao final pela reversão e indeterminação
entre o sujeito vendo o quadro e o sujeito sendo visto vendo o
quadro. As Meninas, de Velásquez (1656), representa o
instante de recuo do pintor em relação a seu ato, por meio do qual
ele olha para o modelo. Ele está na nossa posição, pela qual
podemos nos reconhecer na imagem do casal real presente no espelho
frontal. Somos os “soberanos do quadro” ao mesmo tempo em que
“escravos de sua ilusão óptica” estamos servindo ao instrumento
do artista. Exatamente como na fantasia, senhor e escravo são ambos
seus vassalos.
O
pintor, como dublê, se inscreve no quadro por meio do auto-retrato,
localizado entre o ponto de fuga e o ponto infinito. Ele envolve (1)
um plano sujeito como janela que enquadra a realidade, (2) um
plano quadro como fantasia que recobre a janela ou modo de
ilusão ou “palco do mundo”. No plano- janela o sujeito é o
objeto (a ), no plano-quadro o sujeito encontra sua
fantasia ( a). Há ainda (3) o sujeito que se apoia entre o
quadro-fantasia a janela-subjetiva, um sujeito que apreende uma
diferença entre dois mundos, como divisão ou desaparecimento e (4)
para se apoiar entre a janela e o quadro, e para que o truque produza
uma eficácia real, é preciso produzir uma equivalência entre o
sujeito e o que Lacan chama de objeto a.
A
junção destas quatro perspectivas em um quinto ponto de vista que
permitiria representar a realidade mais além das relações de
interioridade e exterioridade. Ela poderia ser descrita como um
conjunto composto por duas bandas de Moebius, (com torções em
sentido contrário), um círculo de interpenetração (ou de
implicação subjetiva), um círculo de revolução (ou de
indeterminação) e um objeto, (ou objeto a). O conjunto forma o que
os topólogos chamam de garrafa de Klein.
Trailer Oficial
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).
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