por Francina
Sousa
Em
tempos de capitalismo apressado, escrever sobre um filme “antigo”
como Anti Cristo de Lars Von Trier pode parecer
antiquado. Ressalva sem sentido para o inconsciente, já que ali o
tempo não caminha ano após ano, dia após dia, hora após hora...
Confesso que demorei certo tempo para ter coragem de ver o filme. O
pano de fundo, um casal que perde seu filho pequeno, e que se isola
em uma cabana no meio da mata, parecia assustador e familiar demais
pro meu gosto. Só que esqueceram de me avisar que a cena em que o
garotinho parece saltar alegremente para a morte era o que havia de
menos perturbador no filme.
Entendo
que buscar um sentido pleno ao filme seria incorrer no mesmo erro do terapeuta que, ao lado da mulher, protagoniza o filme.
Faço apenas algumas observações. Frente ao real da perda de um
filho, o "arrogante" terapeuta considera-se apto a tratar o luto
prolongado de sua mulher, e para isso recorre a uma "técnica" cognitivo-comportamental: confrontá-la com aquilo que lhe
causa medo, no caso, uma cabana horrorosa no meio da mata, Éden. Mas
não é de Éden, como ele a forçou a concluir, que ela tem medo, e
sim da selvageria e obscenidade abafados nos porões do eu. Não à
toa ela lhe adverte: “Você é tão arrogante. Mas isso pode não
durar, sabia?”
Ao
quebrar uma lei (a mulher o lembra de que não é prudente tratar
alguém tão próxima, porém ele argumenta que ninguém a conhece
mais do que ele, numa patética onipotência narcísica da qual a
queda será inevitável), ele abre caminho para que a Lei simbólica
seja ultrapassada. E paga caro por isso: a mulher literalmente
atravessa a arrogância do marido e, em uma das cenas mais fortes,
imprime no real a falta que ele luta tanto para escamotear. Em
Éden, o caos reina.
O
filme faz pensar naquilo que está além do princípio de prazer, o
gozo em seu limite, no limite da aniquilação... Nos lembra de que
aquilo que foi recalcado permanece indestrutível no inconsciente ou,
nas palavras do poeta: E o que desapareceu,/ converte-se para
mim em/ realidade (Goethe).
Trier coloca em cena o erotismo e a agressividade da qual o humano não cessa de abrir mão em nome da segurança, da sobrevivência, da civilização. Mas aquilo que é banido não se conforma: insiste em retornar e algumas vezes de forma nefasta, o dia-a-dia nos prova isso.
Já foi dito que nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie, foi cantado que o homem criava e também destruia...
Trier coloca em cena o erotismo e a agressividade da qual o humano não cessa de abrir mão em nome da segurança, da sobrevivência, da civilização. Mas aquilo que é banido não se conforma: insiste em retornar e algumas vezes de forma nefasta, o dia-a-dia nos prova isso.
Já foi dito que nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie, foi cantado que o homem criava e também destruia...
Quando
se trata do humano, o buraco, esse vazio ao qual tentamos
insistentemente preencher de sentido, é mais embaixo. E é passível
de explodir em non sense. Dostoiévski já nos alertara, com
seu homem do subsolo, de que dois e dois nem sempre são quatro, e
Éden parece trazer à tona o “Real em sua violência
extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas
enganadoras da realidade” (Zizek).
No
filme tive a impressão de que justamente quando o homem começa a
desconfiar de que não tem o controle sobre si e muito menos da
situação e diz para sua mulher que anda tendo uns sonhos estranhos,
esta ironicamente age como ele até então: fecha a questão
afirmando que “os sonhos não significam mais nada para a
psicologia moderna, afinal, Freud está morto, não?” Assim ela
obstrui o caminho que poderia levá-lo a abandonar a posição
iludida de senhor de si mesmo.
Lembrei-me de algo que li: “O
desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo
recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para
se fazer escutar. O que pode você ver de ‘prometeico’ nisso?”
Encontrei esta frase logo no início da Interpretação
dos Sonhos e
não pude deixar de pensar no quanto esta assertiva sobre os sonhos
condensa uma série de noções em
psicanálise. É fantástico
que Freud tenha, em plena modernidade cartesiana, se valido dos
momentos em que o
homem era onde não se pensava, percebido
nas cotidianas formações do inconsciente (sonhos, chistes e atos
falhos) aquilo que aparece quando o Eu cochila. E o que podemos ver
de prometeico nisso?
Penso que, assim como Prometeu, que acorrentado
e agonizante não deixa de gritar o seu destino, o que é recalcado
(condenado, banido) não deixa de se agitar e procura de toda forma
fazer-se ouvir. Por menos que o Eu queira saber d’Isso! Por outro
lado, o ato de roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens
marca um antes e um depois: depois do ato, um saber inédito que muda
o destino da humanidade. E o que pode você ver
de "freudiano" nisso?
Freud
pode estar morto, mas suas ideias "acorrentadas" (pelo
apagamento do sujeito do inconsciente por aquele tal discurso do
capitalista, pelas neurociências ou pela tal "psicologia
moderna"...), agitam o submundo humano e até hoje, por menos
que se queira, o eco de sua descoberta faz-se presente, e tanto nosso
cotidiano quanto a tempestade pulsional que o personagem enfrentará
em sua mulher no filme não nega isso.
Anticristo - trailer oficial
Francina
Sousa é Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato
Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano, psicóloga da
Universidade Federal da Grande Dourados / UFGD.
2 comentários:
Francina,
Achei muito interessante sua interpretação à resposta da mulher relativo aos sonhos estranhos que o homem disse que andava tendo. Fiquei pensando, em cima disso: o próprio ponto final que ela pôs no assunto é uma manifestação do inconsciente "autonegando-se", como forma de prevalecer, como se lutasse pela sua sobrevivência? Admiro Freud e seu trabalho, pois chegou à essência daquilo que deseja se manter alheio à consciência.
Se há algo "freudiano" nisso, é entregar-nos o fogo dos deuses? Assim sendo, o que há de "zeusístico" é a censura do Superego quando deixamos de observar e contemplar o fogo divino e passamos a desejá-lo numa atitude narcisista de onipotência?
Victor.
Olá Victor, tudo bem?
Levei certo tempo para saber de teu comentário, e outro ruminando sobre ele e não posso afirmar estar segura de uma resposta. Seria possível ao inconsciente “autonegar-se”? Ou esta façanha (de negar o inconsciente) seria prerrogativa do Eu, este que pouco ou nada quer saber do desejo inconsciente que nos agita? Tua primeira questão me fez lembrar um texto de Freud, “A negativa”, que Lacan comenta no Seminário 1 ( e nos Escritos tem um comentário de Jean Hyppolite sobre este texto)e no qual Freud fala de como é possível a um pensamento recalcado tornar-se consciente desde que de forma negativa, e nos dá um exemplo clínico: “’Você pergunta quem pode ser esta pessoa no sonho. Minha mãe não é.’ Corrigimos: então é a mãe.” Tá aí um clássico exemplo de como o Eu pode lidar com aquilo que está inconsciente: trazendo-o à tona de forma racionalizada e negativa (o desejo em si permanece não reconhecido pelo eu).
Não sei dizer se a censura do superego seria “zeuística”, afinal ele é tão inconsciente quanto o id... Penso que é justo adjetivar a descoberta freudiana como prometeica. Lacan o faz em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanalise”, o cito: “tamanho é o pavor que se apodera do homem ao descobrir a imagem de seu poder que ele dela se desvia na ação mesma que lhe é própria, quando essa ação a mostra nua. É o caso da psicanálise. A descoberta – prometeica – de Freud foi uma ação desse tipo; sua obra no-lo atesta...” Lembremos que se Prometeu é acorrentado por ordem de Zeus, é seu filho, Hércules, quem o liberta. Penso que a coisa seja bem dialética e polivalente...
Obrigada pelo comentário!
Francina.
Postar um comentário