Embora tenha sido concebido
pelo diretor norte-americano John Huston como um filme popular de
suspense psicológico, “Freud, Além da Alma” (Freud: the Secret
Passion), de 1962, tinha representações diferentes para os demais
responsáveis por sua realização: Sartre, roteirista original,
idealizou uma obra de arte voltada para um público erudito;
Montgomery Clift via no papel de Freud um resgate de sua carreira; os
estúdios da Universal esperavam um misto de sucesso comercial com
prestígio de crítica. Submetida às fantasias de cada um,
depositária de desejos divergentes e lidando com os temas polêmicos
da psicanálise, a produção americana de “Freud” foi como que
tomada pela “peste” anunciada pelo biografado ao visitar os
Estados Unidos, trazendo consequências inesperadas para aqueles que
dela participaram.
Com base em depoimentos
deixados pelos principais envolvidos na produção do filme, esta
resenha em três partes propõe-se a refletir sobre os desafios da
proposta psicanalítica e a forma como é apropriada por aqueles que
dela se aproximam.
Freud, além da alma- parte 1: procurar neste blog pela data 12 de janeiro de 2013
Freud, além da alma- parte 2: procurar pela data 27 de janeiro de 2013
Freud no cinema americano: a peste que insiste em incomodar
Capítulo
Final: Freud, além da alma
deixa marcas na equipe de produção. Repercussões do filme e
reflexões finais.
Clift caracterizado de Freud |
Na
biografia que Robert LaGuardia escreveu sobre Montgomery Clift, um
capítulo inteiro é dedicado a Freud.
Embora grande parte do texto esteja focada nos conflitos
intermináveis entre John Huston e o ator – e LaGuardia pareça
carregar com tintas fortes e amargas esse embate – o biógrafo
admite que Huston nutria grande ambição pelo filme. “Ele tinha
entrado no projeto com a intenção de fazer um filme importante, um
extraordinário filme. Percorreu um longo caminho para contratar
psiquiatras, hipnólogos, pacientes; insistiu em filmar de forma
cronológica, para que os atores pudessem sentir a intensidade da
construção mental de Freud; planejou as cenas meticulosamente em
longas tomadas, de forma que o público pudesse entrar na mente dos
personagens sem distrair-se com cortes”(2).
Huston foi além: para garantir realismo na cena em que Charcot
apresenta seus pacientes para os alunos, contratou e trouxe para as
locações na Alemanha o Dr. Steven Black, especialista em hipnose de
Londres, e alguns de seus pacientes reais. O Dr. Black condicionou
seus pacientes, através da hipnose, para que, ao contato com a voz
do ator que interpretava Charcot, entrassem em transe hipnótico e
agissem conforme ele comandasse durante as gravações.
Freud trata Cecily |
As filmagens
dessa cena duraram dias, foram exaustivas, exigiram troca de
“pacientes” que não funcionaram como o esperado, gastaram uma
boa parte do orçamento do filme. Por outro lado, foram responsáveis
pelo que é considerado por muitos como uma das cenas mais
impressionantes do filme - e ao mesmo tempo evidenciam as altas
expectativas de Huston com a produção. Entretanto, ao longo do
desastroso processo de materialização da saga freudiana, Huston
perderia completamente seu entusiasmo e seu gosto pelo trabalho.
“Prefiro mil vezes refilmar As
Raízes do Céu
[um dos fracassos de sua carreira], com tudo o que teria que
enfrentar de novo. (...) Se o filme foi um inferno para Monty, para
mim também se constituiu numa experiência medonha”, admitiu (3).
A
verdade é que Freud
teve repercussões – em variados graus de importância - na vida de
quem participou de sua produção. A começar por Sartre. Roudinesco
observa com bom humor a saia justa em que o filósofo francês havia
se metido: “Ele, que havia desde sempre negado a existência do
inconsciente, estava agora lidando intimamente com seu inventor –
uma situação sartreana por excelência”
(4).
Ela pondera que esse relacionamento não o deixou sair ileso do
desafio: “Pode-se colocar as questões dessa forma: através de um
Freud mais freudiano que o original, Sartre em parte renuncia à sua
posição filosófica anti-freudiana de sua obra inicial”
(5).
Pontalis também identifica uma mudança de Sartre em relação a
Freud: “A ideia que Sartre fizera de Freud anteriormente – a de
um chefe de escola doutrinário e meio limitado, de um filósofo
medíocre, nenhum de cujos conceitos resistia a um exame (...), essa
ideia já não se sustentava. (...) A intransigência de Freud, o
que havia nele de intratável quando a questão era ceder quanto ao
exigido pela verdade, sua oposição tenaz à medicina e à
psiquiatria reinantes, no que elas só faziam ostentar seus títulos,
o anti-semitismo dissimulado de que ele foi alvo, sua solidão, ou
melhor, o que ele teve que viver como solidão, e ainda sua pobreza e
seu longo desdém pelas honrarias: é muito pouco dizer que todos
esses traços seduziram Sartre. Por um lado, ele se reconheceu neles.
(...) Sem querer exagerar, pode-se também elaborar a hipótese de
que o roteiro sobre Freud foi também para Sartre um roteiro de
Freud
em que ele representou um papel; de que, no começo encarado como um
divertimento em relação ao trabalho a que iria se consagrar
inteiramente, o roteiro o fez divertir-se com o seu próprio
programa. Talvez, por um tempo, ele tenha consentido, mas rindo às
escondidas, em aceitar-se, como todos nós, filho de Freud”
(6).
Breuer e Cecily |
Pontalis
argumenta que o tema do filme também teve seu efeito na equipe de
produção, “mais ainda durante a filmagem, a julgar pela descrição
detalhada que dela faz Robert LaGuardia em sua biografia de
Montgomery Clift”(7).
LaGuardia,
que teve o mérito de entrevistar testemunhas da produção de Freud,
incluindo o roteirista Wolfgang Reinhardt e a atriz Susannah York,
reconstituiu os contratempos da filmagem que, na sua opinião,
“destruiu o que quer que ainda houvesse na vida de Monty. Quando os
cinco meses de filmagem acabaram, Monty era um cadáver andante”
(8).
Ele
conta que Montgomery Clift encontrava-se com a carreira instável e
ameaçada por seus graves problemas com alcoolismo, e vislumbrara na
possibilidade de representar Freud uma chance que não poderia ser
perdida. Haviam muitas evidências de que Monty não estaria em
condições de enfrentar um papel de protagonista e cheio de desafios
como seria o de Freud. Em 1961, Marilyn Monroe – que havia
protagonizado com Clift o filme “Os Desajustados” (The
Misfits, 1961), de John Huston, e que morreria vítima de overdose de
medicamentos naquele mesmo ano, descreveria Monty como “a única
pessoa que eu conheço que está num estado pior que o meu” (9).
Por
outro lado,
exatamente
pelo tamanho do desafio, aquele poderia ser o filme que o redimiria
perante Hollywood e, quiçá, perante si mesmo. Clift, conhecedor do
processo analítico e das teorias freudianas, considerou a proposta
irrecusável, embora, ao receber o roteiro já reescrito por Huston,
tenha considerado os diálogos ruins, algumas falas vulgares e certas
frases de difícil compreensão. Tranquilizou-se diante das alegações
de Huston de que tratava-se de um roteiro provisório que seria
totalmente reescrito, e assinou o contrato.
La
Guardia atribui muito dos conflitos entre Monty Clift e Huston ao
desequilíbrio emocional em que o primeiro se encontrava, mas Huston,
por sua vez, em nada facilitou. Às vésperas do início das
filmagens, ao tomar conhecimento do homossexualismo de Monty (segundo
LaGuardia, Huston teria surpreendido o ator na cama com um namorado
quando hospedados em sua residência), o diretor considerou a
situação inaceitável, chamou Clift para uma conversa em particular
e fez uma série de exigências, nas quais “Monty não deveria se
comportar de forma homossexual ou ter qualquer relacionamento
homossexual enquanto trabalhasse no filme. Deveria se comportar de
uma forma normal. Não deveria beber ou tomar pílulas” (10).
Freud e Cecily |
Foi o início
desastroso de uma relação profissional que se transformaria num
relacionamento marcado por contornos patológicos. Segundo
testemunhos apresentados a LaGuardia por integrantes da equipe,
Huston passou a tratar Monty com rispidez, desconsideração e a
submetê-lo a humilhações. Se nas primeiras semanas de filmagem o
ator apresentava algumas dificuldades em decorar suas falas, nas
semanas seguintes já não conseguia memorizar uma única frase
inteira e era obrigado a ler partes do roteiro em pequenos papéis
colados na mobília do set.
Na
famosa cena em que Freud, em sonho, escala uma montanha segurando uma
corda, escorrega um pouco e depois chega ao topo, o conflito parece
ter chegado ao seu ápice. LaGuardia conta que as palmas das mãos de
Monty, muito sensíveis devido a um acidente automobilístico do
passado, machucaram-se ao contato com a corda durante as filmagens.
“Era óbvio que Monty estava sentindo dor e exausto, mas Huston
mandou cortar e refazer a cena. O sangue saia das mãos de Monty.
Alguém contou a Huston; alguém também perguntou a Monty se ele não
queria descansar. Huston insistiu que prosseguissem; Monty recusou-se
a parar. (...) Pela sétima ou oitava tomada, suas mãos eram uma
massa sangrenta, e o sangue escorria pela corda. Mais uma vez Huston
mandou refazer, e novamente Monty recusou-se a descansar” (11).
Breuer e Freud |
LaGuardia
fala de um ambiente progressivamente tenso, com rompantes de choro de
Susannah York diante do embate entre Huston e Clift, cenas refilmadas
interminavelmente, atrasos no cronograma e uma produção fora de
controle. Por conta das constantes desavenças - Huston à deriva na
direção e Monty Clift cada vez mais inseguro e incapaz de
representar -, um clima sombrio e um sentimento de estranhamento
tomavam toda a produção. Comenta LaGuardia: “Naturamente, nessa
ocasião, nessa atmosfera pesada, (...) membros do elenco e da
produção teorizavam. Era John Huston um homossexual enrustido? Era
Monty um masoquista que amava secretamente John, ou vice-versa, sendo
John um sádico? (...) Um a um, os homens e mulheres envolvidos com a
filmagem de Freud,
embrenharam-se numa atmosfera psicológica sufocante. Por meses eles
estavam, literalmente e figurativamente, presos numa sala pequena e
sem ar, forçados a ponderar sobre a verdade acerca de si mesmos e
seus relacionamentos com os outros. O filme tinha uma única locação
principal, numa cidade onde a maior parte do elenco não era familiar
ao idioma local, o que os forçava a se recolherem a si mesmos. Dia e
noite, atores, operadores de câmera, diretor, produtor e equipe
técnica comia, dormia e respirava Freud. (...) Conversas
intermináveis sobre repressão, o inconsciente, Monty e Huston, e
ensaios, enchiam o ar. O espectro de Sigmund Freud assombrava e
permeava tudo ao redor” (12).
Quando foi, enfim,
concluído, Freud,
além da alma
contava com quatro horas de duração. “Dia após dia, Wolfgang
Reinhardt mantinha-se na sala de cortes da Universal enquanto seu
filme de quatro horas era cirurgicamente amputado em pouco mais de
duas horas, e mais tarde, antes da exibição, em hora e meia. Todo o
material com conteúdo sexual foi abandonado” (13).
O
lançamento nos Estados Unidos ocorreu em 12 de dezembro de 1962 -
inicialmente nos cinemas de arte de Nova Iorque, tendo obtido grande
sucesso com lotações esgotadas. Porém, quando foi estendido para o
circuito popular, nos demais estados, passou quase despercebido. “De
modo geral, o público não gostou”, conta Huston. “Os chefões
dos estúdios depositaram grande fé nele, achando que ia ser a
produção mais importante da Universal naquele ano. No fim foi tudo
menos isso, decepcionando profundamente tanto eles quanto eu”(14).
Elisabeth Roudinesco fala sobre a repercussão na França: “não
teve nenhum sucesso. Ainda assim, a fotografia em preto e branco de
Douglas Slocombe recaptura de forma soberba o universo barroco do fin
de siécle
de Viena. Quanto a Montgomery Clift, representa um angustiado,
sombrio e frágil Freud, mais próximo do James Dean de ‘Juventude
Transviada’ do que da figura mumificada imposta pelos historiadores
oficiais da psicanálise: um personagem, de todas as formas, mais
sartreano do que jonesiano. A obra foi distribuída nos cinemas de
Paris no início de junho de 1964, duas semanas depois de Lacan ter
fundado a Escola Freudiana de Paris. Passou completamente
despercebido pelos psicanalistas de Paris, que fracassaram em
procurar no filme o herói de sua imaginação”(15).
Alguns
anos antes de morrer em 1987, John Huston reviu seu filme, e
ponderou: “Tem coisas boas. Apesar das dificuldades que tive com
Monty, o gênio dele está bem manifesto no filme e acaba, a meu ver,
dando um desempenho simplesmente extraordinário”(16).
Reconhecimento tardio: Freud
seria o penúltimo papel de Clift, que de tão desacreditado na
indústria levou quatro anos para receber outra proposta comercial –
tendo falecido logo em seguida ao seu último filme, aos 46 anos,
vítima de ataque cardíaco.
Apesar
das polêmicas e tragédias que testemunhou, Freud,
além da alma
continua sendo uma experiência narrrativa estimulante e cheia de
significados, pequena joia pronta para ser redescoberta. Suas outras
cenas
– não as que aparecem no filme ou as que foram cortadas na ilha de
edição - falam da dificuldade da cultura americana em compreender a
centralidade da experiência freudiana, emblematicamente exposta nos
embates conceituais entre o europeu Sartre e o americano Huston. Ao
mesmo tempo, reafirmam o quanto a psicanálise é subversiva ao
colocar a sexualidade como eixo de sua discussão – fato que se
observa não apenas na tesoura censora que cortou cenas inteiras da
produção como no próprio acting-out
de um Huston incapaz de lidar com seus próprios preconceitos e de
aceitar que o protagonista de seu filme fosse homossexual. A
experiência de Freud
denuncia também as inúmeras soluções de compromisso a que a
indústria do cinema se expõe para garantir um sucesso de
bilheteria, ainda que isso implique em falsear a vida. Como disse
LaGuardia, “ironicamente, as pessoas que fizeram Freud, em seu
encontro pessoal e em suas interações com o material do filme,
criaram uma história por trás das câmeras tão dramática, tão
angustiada, que faria o filme parecer patético por comparação”
(17).
Nada mais
psicanalítico que a eloquente batalha que se instaurou nessas
diversas interações. Em meio às falhas do simbólico representado
pelo que deveria ser um simples filme, as questões da psicanálise
ali estão, expostas nas brechas dos bastidores das filmagens que
revelam um material esquisito, cheio de situações bizarras, onde
algo estranho, inconsciente, insiste em vir à tona. Esse
inconsciente, feito peste que insiste em incomodar, repercutiu em
Sartre, e por que não acreditar que também teve influência sobre
um Huston e um Clift, que tiveram abertas questões que preferiam ter
adormecidas?
Assim como a questão
freudiana, Freud, além da alma nos invoca e nos provoca pelo
filme que é e pela tumultuada produção que o construiu - e vale à
pena assistir. Se for competente em nos instigar, certamente nos
levará a outro tesouro – o roteiro de Sartre, experiência
literária inesquecível e extraordinária que, resgatada do
anonimato com sua publicação em 1984, é em si prova de que o
destino de todo recalcado é, inevitavelmente, emergir.
Freud, Além da Alma (Freud: The Secret Passion) : completo
Nilson Perissé é Mestre em Sistemas de Gestão, psicanalista em construção e bacharel em Comunicação Social. É autor da dissertação “A gente já entra se sentindo menor: impactos da terceirização na subjetividade do trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em Woody Allen”. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com
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