“O coração é um músculo muito elástico”, diz Mickey, personagem de Woody Allen em Hannah e suas Irmãs (1986). Essa emblemática frase ajuda não apenas a compreender um dos temas recorrentes do autor, como também serve de chave de leitura para a inquietação e a agitação que dão vida aos seus tantos personagens.
Elliot
(Michael Caine), bem sucedido contador, é casado com Hannah (Mia
Farrow), mas deseja Lee (Barbara Hershey), sua cunhada. Ao longo do
filme, ele faz movimentos que só o desejo pode ensejar: segue Lee
nas ruas, adianta-se algumas quadras e pára numa esquina, até que
ela, “casualmente”, se depara com ele em seu caminho até um
grupo de Alcoólicos Anônimos. Ao saber para onde ela se dirige, sua
reação é patética: “Alcoólicos
Anônimos? Deve ser interessante. Gostaria de um dia ir também”.
Lee é a obsessão de Elliot, que pensa nela em cada livro que
folheia, em cada poema que lê.
(Realmente
não sei o que há em você que fecha/ e abre; somente algo em mim
compreende/que a voz dos seus olhos é mais profunda que todas as
rosas)/ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas,
é a poesia de E. E. Cummings da qual ele faz uso para expor seus
sentimentos. E dá certo. Lee sente-se curiosamente atraída por
Elliot e viram amantes. Falam em separar-se de seus respectivos
cônjuges para ficar juntos, ela o faz de imediato e ele… não. Ao
longo de um ano inteiro, Elliot, antes tão obsessivamente desejante,
ficará dividido entre Lee e Hannah. O desejo, que antes motivava
todos os seus comportamentos, não mobiliza mais ações ou
pensamentos. Lee, por sua vez, vai perdendo o encanto pelo amante
hesitante e começa a sair com um professor de literatura. Um ano
depois de o fogoso Elliot ter declarado a si mesmo o quanto estava
apaixonado por ela, só lhe resta admitir que não compreende mais o
que o deixara tão fora de si por aquela mulher comum.
Na
galeria de personagens allenianos, Elliot não está só. A
volatilidade do desejo encontra eco em personagens de outros filmes,
que mobilizados pelo desejo, trocam de parceiro amoroso como se
fossem guiados por uma compulsão, feito vítimas de uma atração,
que une, e da vida real, que desune. De Winona Ryder
em Celebridades (1998)
a Christina Ricci em Igual
a tudo na Vida (2003),
todos estão permanentemente tentados à infidelidade conjugal ou sem
controle diante do desinteresse amoroso em relação ao seu par.
Todos parecem concordar com uma premissa psicanalítica: “estar
diante da possibilidade de realização de um desejo é motivo de
maior alegria do que tê-lo realizado”
(Kehl).
Desejo/realização
do desejo/ “ainda não era isso”, é a fórmula que perpassa a
existência dos personagens do universo alleniano. Frequentador dos
consultórios psicanalíticos há décadas, é de se esperar que
Woody Allen conheça bem a premissa psicanalítica do desejo
escorregadio, aqui explicada pelo filósofo Dany Robert-Dufour: “O
sujeito, tendo buscado no objeto a satisfação de seu desejo, pode
apenas descobrir, sendo dada a natureza da pulsão, que ‘ainda não
era isso’, que a falta que havia suscitado o desejo persiste. (…)
Se ‘não era isso’, então se é conduzido a voltar a demandar”
(Dufour). Seguindo a premissa lacaniana de que ali onde se conhece não se
deseja, e ali onde se deseja não se conhece, o Elliot deHannah
e suas Irmãs fez
o único movimento que poderia destruir seu desejo: conseguiu
realizá-lo junto a Lee e, assim o fazendo, perdeu-o. Um chiste,
formulado por Allen em Memórias (1980)
apresenta uma variação dessa tese: “Certo
médico, apaixonado por duas mulheres, resolveu juntar o corpo de uma
e o cérebro da outra numa só e com isso produzir a mulher perfeita.
Para sua surpresa, apaixonou-se pela outra, feita com os restos…”
A
ciranda do obscuro objeto de desejo é cantada e contada em vários
filmes do autor, feito uma verdadeira compulsão à repetição. Vicky
Cristina Barcelona (2008)
é, talvez, um dos melhores exemplos. Aqui e ali, aparece ou volta à
cena a insatisfação desejante de seus personagens: Cristina
(Scarlett Johansson) encontra uma forma de expressar-se através da
fotografia e sente-se acolhida no amor por Juan Antonio (Javier
Bardem) e Maria Elena (Penelope Cruz), mas semanas depois sente-se
incomodada por um vazio inexplicável e volta para os Estados Unidos
tão insatisfeita quanto estava ao sair de lá; Vicky (Rebecca Hall)
tem uma perspectiva de carreira e um casamento tão planejados quanto
pode, mas sente-se abalada pelo desejo que sente por Juan Antonio,
até descobrir que esse desejo não é compatível com a vida
organizada e planejada que aspira para si. Mesmo Judy (Patricia
Clarkson), a parenta que acolhe as moças em Barcelona, mulher madura
e aparentemente realizada, de vida movimentada, luxuosa e fascinante,
quer sair de seu casamento, embora ache tarde demais para isso.
Conclusão desse filme: ninguém está onde deseja estar, e mesmo
quando acha que está, sente-se atraído por algo ou alguém que não
está ali. Poucos anos depois, Allen insinuará que a questão é
mais complexa: em Meia
noite em Paris (2011),
mostrará que vivemos insatisfeitos onde estivermos, e isso inclui o
tempo no qual se vive. O personagem Gil Pender (Owen Wilson) não
apenas gostaria de deixar os Estados Unidos e viver na França, mas
viver na Paris dos anos 1920; a mulher por quem está apaixonado,
Adriana (Marion Cotillard) já vive em Paris, mas gostaria de viver
na Renascença. A década de 2000 é sem atrativos para ele, os anos
1920 não a satisfazem.
Talvez
a melhor metáfora que Woody Allen tenha escolhido para discutir essa
ideia encontre-se na cena inicial de Memórias (1980).
Sandy Bates (Allen) encontra-se num trem em meio a passageiros
tristes e desinteressantes. Quando olha para o trem ao lado, vê que
as pessoas no outro vagão ali estão em festa, divertindo-se,
distraindo-se em conversas empolgantes. Sentindo-se sufocado, ele
tenta, inutilmente, mudar de veículo, mas os trens partem e não é
possível trocar de condução. Com essa simples imagem, o autor nos
leva a nossas mais desconfortáveis experiências. Quem nunca viveu a
sensação de ter sentado na mesa com as pessoas menos interessantes
e de ter, entre os colegas de classe, as crianças mais sem graça?
Quem nunca flagrou-se a contemplar com inveja um grupo do qual não
consegue participar? Allen acena para essa verdade frustrante: a vida
parece pulsar do lado de fora da janela, do outro lado da rua, ou nas
companhias com quem não se está no momento.
Se
esse problema é tão repetido em sua obra, terá o autor descoberto
alguma solução? A julgar por sua produção, não parece terem sido
encontradas respostas, mas talvez pistas. Ele sinaliza, por exemplo,
que a natureza intrínseca do desejo é ser fugaz. No episódio Édipo
Arrasado,
do longa Contos
de Nova York (1989),
a personagem Lisa (Mia Farrow), chega à conclusão de que não quer
mais manter seu relacionamento com Sheldon (Allen). Num bilhete de
despedida, ela reflete com simplicidade: “É
engraçado. Você de repente acorda um dia sem amor. A vida é
estranha”.
Tão
estranha que pode surpreender mesmo quando se pensa que o desejo
acabou. Em Todos
dizem eu te amo (1996),
Joe (Allen), após anos separado de sua primeira esposa (Goldie
Hawn), rouba-lhe um beijo e, com melancolia, deseja que seu casamento
tivesse ido adiante; em Dirigindo
no Escuro (2001),
Val Waxman (Allen) não apenas lamenta ter perdido a esposa, Ellie
(Tea Leoni), como consegue voltar para ela após muitas dificuldades.
O mesmo acontece com Joe (Joe Mantegna) em Simplesmente
Alice (1990),
que após grandes desavenças, e contra todas as previsões, refaz
seu casamento com a ex-esposa. Allen mostra que, mesmo ali, onde se
achava que o desejo havia arrefecido, há uma chama que pode trazer
reviravoltas inesperadas.
Em
consonância com as premissas da psicanálise, ele sinaliza que
desejo e felicidade não costumam ser pares perfeitos. A felicidade,
tal qual se busca, implica em saciedade, conforto e estabilidade,
enquanto que desejo implica em singularidade, tensão e conflito, o
que teria levado Lacan a dizer, no seu seminário sobre Ética (4),
que o neurótico visa a felicidade ao preço de seu desejo e, no
tratamento psicanalítico, ele tem a oportunidade de encontrar o
caminho de seu desejo, ao preço de sua felicidade. Um bom exemplo de
quem não paga o preço do desejo encontra-se no amargo depoimento de
Judy (Patricia Clarkson) emVicky
Cristina Barcelona (2008):
“Meu
psiquiatra diz que estou apavorada demais para agir e que estou
procurando alguma solução mágica, o que é pouco realista. Ter um
caso não é a solução. Mark é maravilhoso. Com certeza qualquer
insatisfação minha é por um problema meu. Eu só não posso
deixá-lo e sei que nunca vou fazer isso. Eu simplesmente não posso.
Tenho muito medo e a hora de fazer isso já passou”.
Tudo
na produção de Woody Allen leva ao confronto eterno do homem com
seu desejo, numa perspectiva em que, mesmo as relações que sugerem
estabilidade, apresentam surpresas. Vemos isso em Hannah
e suas Irmãs (1986),
quando uma sorridente Holly (Diane Wiest) diz que está grávida para
o marido Mickey (Allen), sem saber que ele é estéril…
Mas
nem tudo é pessimismo na articulação entre Woody Allen, e a
premissa lacaniana de que “a
única coisa da qual se possa ser culpado é de ter cedido de seu
desejo”
(Lacan). Os finais de Simplesmente
Alice (1990)
e de Meia
noite em Paris são
otimistas: no primeiro, Alice (Mia Farrow) troca a vida de luxo e
futilidade por uma mais modesta e com privações, porém animada
pelo desejo de servir em trabalhos assistenciais; no segundo, Gil
(Owen Wilson) rompe o noivado com a noiva a quem não amava e com
quem convivia por acomodação, deixa Adriana (Marion Cotillard) no
passado da Belle Époque e volta para a época atual, onde tem um
romance para escrever (seu desejo) e onde encontra, no meio da chuva,
uma mulher que parece encarnar seu ideal amoroso. Com esses incomuns
finais felizes, Woody Allen parece dizer: é possível viver na
própria época e sem nenhum luxo ou glamour, desde que aberto a
fazer da própria história a história de seu desejo.
Nilson
Perissé é Mestre
em Sistemas de Gestão, psicanalista em eterna formação e bacharel
em Comunicação Social. É autor das páginas Filmes
para recordar, repetir e elaborar e Psicodinâmica
do Trabalho no
Facebook.
Um comentário:
Gostei muito do texto. Principalmente do final; sim há saída, só não é nem mágica, nem glamurosa.
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