quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

QUE HORAS ELA VOLTA?

de Isloany Machado
**Alerta de spoiler**
Quantas pessoas precisaram me dizer para assistir esse filme antes que eu pudesse fazê-lo? Em uma escolha (quase) ao acaso, Que horas ela volta? me fez chorar. 
Em essência, o filme diz sobre o não-lugar, o não-pertencer, conta sobre as diferenças estabelecidas entre as classes sociais. Regina Casé (sim, aquela do Esquenta!) faz a personagem principal, uma empregada doméstica que deixou o nordeste e foi para São Paulo ganhar a vida, trabalhar para sustentar a filha de dez anos que deixou por lá, sob os cuidados de outra pessoa. Mora num quartinho na casa dos patrões, faz trabalhos domésticos e cuida de Fabinho, da mesma idade de sua filha. 
Empregada não come à mesa junto com os patrões, não usa a piscina, mesmo sendo "quase da família", como diz Dona Bárbara, a patroa. A paz de todos é abalada quando Jéssica, a filha da empregada, decide ir para São Paulo para prestar o vestibular de arquitetura na FAU-USP. O que a mãe tem de subserviente, a filha tem de corajosa, dedicada e estudiosa. Além disso, Jéssica não se coloca em momento algum como inferior às pessoas da casa, o que faz com que sua mãe a tome por "sem-noção", abusada. Ela conversa com os patrões de sua mãe em pé de igualdade, fala de arte e arquitetura. Questiona a subserviência da mãe, se exaspera quando descobre que ela nunca entrou na piscina. 
A patroa, Bárbara, passa a não suportar sua presença, e o ápice do mal-estar é representado pelo pedido dela de que a piscina fosse esvaziada após Jéssica ter entrado junto com seu filho, o Fabinho, com a desculpa de que "um rato" havia sido encontrado. É, sim, para os burgueses é melhor uma piscina vazia do que "cheia de ratos". Jéssica vai embora depois que a patroa da mãe proíbe sua livre circulação pela casa. Até que consigam um lugar para morar juntas, Val permanece na casa dos patrões. Jéssica passa na primeira fase do vestibular, Fabinho não. Pela primeira vez, tomada de alegria e orgulho da filha, Val entra na piscina (cuja água está pelo joelho), num ato de insubordinação, e liga para a moça, dizendo de seu orgulho. A cena é tão linda que me fez chorar.
Para além de uma crítica social das diferenças de classes, o que mais me tocou foi o deslocamento das maternidades. Val deixa a filha pequena no nordeste, nas mãos de outra pessoa. Bárbara, a patroa sempre ausente, deixa Fabinho nas mãos de Val e ambos estabelecem de fato uma relação mãe-filho. Val somente consegue se desvincular dele e de seu emprego quando, fracassado no vestibular, Fabinho vai para um intercâmbio na Austrália. Ao mesmo tempo, descobre que Jéssica tem também um filho que deixou no nordeste (haja repetição), Jorge (elas não se falavam há mais de três anos, por isso não sabia). Assim, Val, que só pôde ser mãe de Fabinho, ou seria seu Falinho(?), o substitui por Jorge, o neto. Não são abandonos maternos, mas deslocamentos.
O que me doeu pessoalmente foi a impossibilidade dessa mulher em ser mãe da menina, mas isso é problema meu (haja divã). Que horas ela volta? Talvez não volte porque não possa, talvez porque não queira. O desejo sempre está em outro lugar.
Isloany Machado, 12.02.2019

Isloany Machado é psicóloga clínica, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Dispensadora da ciência e costuradora de palavras por opção. Autora dos livros “Costurando Palavras: contos e crônicas” (2012), “Em defesa dos avessos humanos” e do romance “Nau dos amoucos” (2017). Mãe do Adriano. 
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Um comentário:

Mariana Pavani disse...

Muito bom texto. esse filme é um prato cheio para a psicanalise atual, pensando na ascenção das classes e no quão incomodo isso pode ser a alguns. a historia da repetição me marcou também. a filha me pareceu alguém alheio a esse coluio de não-lugar da mãe, chegou querendo usar a piscina, questionando tudo e rompendo com aquelas relações de lugares tão rigidos, isso causou mal-estar e muitos sentimentos vieram a tona. Vale a pena ver e rever!