Parasita,
do ponto de vista da biologia, significa um organismo que se associa
a outros para deles obter alimento ou algo que garanta a ele a
sobrevivência, causando, na maior parte das vezes, grandes danos aos
hospedeiros. Parasitismo é o nome dado a essa relação. Carrapatos,
pulgas, vermes, e outros seres, são largamente conhecidos por suas
características parasitárias.
Ocorre
que o termo passou a ser empregado pelos seres humanos, para designar
o indivíduo ou grupo que se aproveita de outras pessoas para
explorar, abusar, manipular e viver às custas de suas riquezas e
esforços. E é exatamente isso que o filme de Bong Joon Ho, cineasta
coreano, tenta explicitar no filme, cujo nome, Parasita, retrata uma
família em situação de grande precariedade, morando nos porões de
um bairro pobre, atravessando um momento de extrema dificuldade
financeira.
O
filme começa com essa família praticamente sem recursos, que perde
o sinal de wi-fi “parasitado” de outro lugar próximo de onde
moram. Com isso, pode-se perceber o quanto o contato com o mundo
virtual anestesia ou mesmo suprime a percepção do mundo que os
rodeia, escape de uma realidade dolorida e portanto, desagradável e
indesejada. Freud nos contava que as experiências incômodas e de
ordem traumática, habitam os porões do inconsciente, sendo
reveladas ou revividas através do que ele chamou de “o retorno do
recalcado”. Este retorno se dá pelos chistes, sonhos, lapsos e
atos falhos e também pela fantasia.
Não
fica claro o histórico psíquico da família que aparece no início
do filme, mas pode-se inferir que as ferramentas psíquicas
utilizadas para lidar com os conflitos sociais, estão a serviço do
trauma, uma vez que a repetição de posturas e soluções para lidar
com a pobreza, passeiam pelos chistes e fantasias.
Mas
quando o filho de Ki-taek recebe um convite para dar aulas de inglês
a uma moça de uma família rica, todo um rol
de estratégias de infiltração, falsificação e parasitismo social
são utilizadas pelos familiares de Ki-taek, com o intuito de
explorar a boa fé dos ricos contratantes. A partir dessa premissa, o
embuste, a mentira, a perversidade tornam-se elementos necessários
para efetivar o plano parasitário. À medida que o processo de
simbiose vai acontecendo, as famílias vão perigosamente se
aproximando e segredos terríveis são revelados, culminando num
desfecho trágico e violento.
Parasita
é um filme que joga na nossa cara a falência das classes sociais, a
tragédia da vida cotidiana e a psique absolutamente comprometida a
qual estamos à mercê. Metáfora do inconsciente e de suas vicissitudes,
o roteiro prende e não solta nunca mais. Sem dúvida há uma
exacerbação desta metáfora, retratada pelos porões e segredos
entre as famílias, que resultam na expressão da pulsão de
agressividade, elevada ao seu grau extremo, que rompe todas as
barreiras egóicas e triunfa tragicamente, como uma advertência da
insolubilidade a qual estamos mergulhados no momento social e
político atuais.
Após
um dramático final, a redenção dos personagens demonstra uma
tentativa de reordenar e deslocar as pulsões que ainda restam.
Diante de uma grande descarga de tendências psicopáticas que se
materializaram, o gozo se transforma em poesia e o caminho para uma
improvável sublimação se desenha a partir da figura totêmica do
pai.
Embora
traga o parasitismo como um mecanismo usado pelas classes sociais,
como se fossem as responsáveis diretas deste fenômeno, o filme
destaca nas entrelinhas, o verdadeiro e cruel parasita de nossos
tempos, não como um indivíduo, mas como um sistema: o capitalismo e
suas diversas expressões parasitárias, entre elas o neoliberalismo.
Apresentando
situações completamente absurdas, mas ao mesmo tempo, perfeitamente
plausíveis, Parasita, ao meu ver, fecha o ciclo de filmes que
escancaram as chagas sociais e psicológicas da sociedade atual,
iniciado com Bacurau e seguido por Coringa.
Bacurau (2019),
de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles pode ser visto como um filme
previsível sobre a violência, particularmente no Brasil profundo do
sertão onde o Estado só chega em nome da corrupção.
Um nordeastern que
reforça o preconceito de que nosso inimigo fala inglês, que o sul
usa o nordeste para empreender sua miséria em estrutura de vídeo
game, que a pobreza traz necessariamente violência e que todos os
políticos são corruptos. Um filme que usa a paratopia, baseada no
fato de que o enredo se passa no futuro, apenas para mostrar como o
tempo não passa e que no fundo repetimos padrões do cangaço, da
ditadura militar, da escravidão e do colonialismo. Resultado: em vez
de recriar um presente a partir da sua exageração no futuro, como
em Terra
em Transe,
por exemplo, estamos apenas mitificando o presente a partir da
alegorização do passado.
O
ponto mais inaceitável de Bacurau é
que ele consagra a moral da vingança e do ressentimento como única
alternativa contra um estado de opressão e anomia, onde a vida vale
pouco e a morte se contabiliza em gotas de gozo. Violência contra
violência gera mais violência, mais polarização e no fundo
sanciona a lei do mais forte, que supostamente queríamos reverter.
Há uma teoria da transformação em jogo aqui: eu “viro” meu
inimigo ao agir como ele age. Assim fazendo, perco toda a razão pois
sanciono a lei proposta por ele, a lei da guerra. O inimigo vence
quando me faz trair a razão emancipatória, baseada na organização
do conflito pela palavra e pelas instituições civilizatórias de
educação, urbanidade e civilidade. Por isso o filme repete o que há
de pior na trilogia da qual faz parte. Tal como em O
som ao redor (2013),
em Bacurau nos
sentimos presos às estruturas latifundiárias e sua retórica da
transgressão libertadora. Tal como em Aquarius (2016),
aqui nos percebemos imersos em um sistema da favorecimentos encoberto
pelo governo onde a única saída é a sobrevalorização defensiva
dos particulares: meu corpo, minha casa, minha família, minha história.
Tudo
verdade… mas nem toda verdade.
Tudo
realidade… mas com um traço de Real.
A
chave para uma segunda leitura de Bacurau se
encontrará na peça Casa
Submersa,
dirigida por Kiko Marques, com a Velha Companhia, em cartaz no Sesc
Pompéia em São Paulo. Também aqui encontramos o fechamento de uma
trilogia. Iniciada com Cais
ou Da indiferença das embarcações (2012),
que trata do amor interrompido pela emergência do Estado Novo, e
seguida por Sinthia (2016)
que trata do retorno do filho para a casa onde, para uma mãe que
sempre quis ter uma menina agora encontrará seu filho tornado
mulher. A trilogia realiza uma tematização transversal da política,
primeiro com a intrusão de Vargas atrapalhando o grande amor de um
casal, depois com a Ditadura Militar oprimindo o amor de um filho por
sua mãe e agora, em Casa
Submersa (2019),
com a degradação de uma família à partir do assassinato do pai no
contexto da corrupção política emergente. A protagonista Maíra
vive um conjunto de efeitos pós-traumáticos, composto por
dissociações, rupturas de memória, despersonalizações e
desintegração de experiências de satisfação corporal, que é
remetido ao passado violento de sua própria família – um passado
que não cessa de não passar e que se reatualiza nas diversas
figuras da incompreensão de si mesma. Tudo acontece como se essas
irrupções sintomáticas, inclusive agressões e autoagressões,
fossem uma espécie de patologia da memória, símbolos que
esqueceram sua função rememorativa e sobretudo angústias que assim
colocadas possuem pequena força transformativa.
Registro
de Casa
Submersa,
nova montagem da Velha Companhia, dirigida por Kiko Marques (Nelson
Kao/Divulgação).
Aqui
nos lembramos das teses de Moisés
e a religião monoteísta1,
onde Freud postula que o trauma gera dois tipos de consequências.
Os efeitos positivos são aqueles nos quais repetimos o evento
traumático, fragmentando e retendo suas imagens e afetos coligados.
Surgem pesadelos, acessos de angústia, bloqueios de memória e
intrusão de imagens violentas, que, em seu conjunto, são
reatualizações do ocorrido. Já os efeitos negativos do trauma são
mais perigosos justamente porque mais difíceis de localizar. Eles
aparecem como irrupções inexplicáveis de ódio e violência,
reações de evitação e indiferença, que efetivam uma espécie de
esterilização da palavra, trazendo desalento, desesperança e
suspensão do laço com o outro. Se os efeitos positivos prolongam o
trauma criando monumentos desconhecidos, os efeitos negativos
transmitem-se pelo silêncio, como que a reproduzir um ato que nunca
se realizou. As duas propriedades do trauma frequentemente se juntam
para efetivar o que se poderia chamar de potência trágica da
experiência traumática. Ou seja, ao negar e ao fugir do trauma
fazemos acontecer de novo aquilo que mais queríamos evitar, assim
como o jovem Édipo que foge de Corinto para proteger seus pais
(adotivos) e acaba encontrando e matando seu pai (biológico, Laio),
na encruzilhada de três fronteiras.
Casa
Submersa é
parte de uma grande alegoria da água, que aparece como metáfora
para o esquecimento, para a desaparição dos corpos e para o desejo
desesperado de escapar da asfixia e encontrar ar para respirar. Aqui
está o escafandrista que passa, como o coro nas tragédias antigas,
murmurando, sofregamente, a verdade que não conseguimos apreender.
Já Bacurau é
parte da alegoria da seca. Metonímia do pequeno Brasil, formado por
comunidades isoladas, natural e artificialmente: sem internet, sem
lugar no mapa, sem a proteção o Estado, sem água, que tem que vir
de fora. Aqui surge Lunga, o protagonista paratópico, meio curinga
meio trickster,
meio homem meio mulher, meio criança meio adulto, parte da
comunidade, mas que vive fora dela.
Walter
Benjamin definia a alegoria como a “facies hipocrática
da protopaisagem da história”2. Facies
hipocrática é
uma expressão que encontramos na medicina de Hipócrates para
designar a cara típica que um paciente faz de tal maneira que, a
partir de então, sabemos que não há mais cura possível e que a
morte virá inexoravelmente. É como se alegoria nos permitisse ver,
ainda que por um instante determinado, a paisagem completa da
história, nos conferindo o distanciamento necessário para
aprendê-la, do ponto de vista da totalidade, como uma unidade, mas
ao preço de nada podermos fazer para mudá-la. Ora, esse instante é
uma espécie de tratamento para o trauma. Ele permite realizar a
perda, abrindo ao processo de luto, nos fazendo reconhecer o que
realmente aconteceu e autorizando a experiência do acontecido. Ao
mesmo tempo, permite introduzir a resposta que faltou ao trauma no
momento de seu ocorrido, ainda que, e principalmente como uma
resposta ficcional. Ou seja, é na conjectura criada por uma nova
forma de linguagem, neste caso o cinema e o teatro, que podemos
inventar o
que poderia ter sido para
que hoje não continuarmos a ser obrigatoriamente
o que somos.
Chegamos
assim ao momento em que Freud e Benjamin se encontram para enfrentar
o nosso problema brasileiro de última hora: como enfrentar a
violência sem gerar mais violência? Como retratar e nomear a
violência sem usar a linguagem reificada e consagrada da
estetização a violência. Como não repetir com a estética da
violência o que um dia fizemos com a estética da fome? A questão
se desdobra para todas nossas maiores contradições sociais:
pobreza, racismo, opressão de gênero, segregação cultural e
social. A teoria freudiana do trauma é enunciada em um texto
conhecido por realizar uma inversão fundamental na teoria
psicanalítica da identidade: não é a família que vem primeiro e
depois aparecem os estrangeiros. No início está o estrangeiro,
o Unheimlich3,
o corpo estranho, o infamiliar. A família é a sutura para essa
indeterminação primária. A tese de que Moisés era egípcio e não
judeu sintetiza essa teoria.
A
teoria benjaminiana da alegoria se dá no contexto de uma pesquisa
sobre a violência. Há a violência da transgressão das leis (o
crime por exemplo), mas há também a violência daqueles que
instituem, aplicam e manipulam as leis administrando suas exceções.
Podemos caracterizar essa segunda forma de violência como uma
alternância calculada entre, por um lado, a mão pesada que pune,
mata e destrói em nome da lei entendida como purificação e ordem,
e por outro, a mão que oculta, protege e prestidigita, tipicamente
em favor dos poderosos. Por isso Benjamin se pergunta se não
haveria uma terceira forma de violência, capaz de suspender a
inversão simples entre violência
de Estado e violência
contra o Estado.
Esse terceiro tipo de violência ele nomeia violência
divina.
Nela uma margem não se conecta com a outra e a divisão entre
familiar e estrangeiro é suspensa, ainda que por um instante. Para
entender a violência divina é preciso conectá-la com a teoria da
alegoria. Ou seja, ela é uma violência posta em estrutura de
ficção, não é uma violência na realidade, muito menos a
legitimação da violência realística que já está em curso.
Trata-se uma violência Real, em sentido lacaniano, que permite
destruir e negar produtivamente os dualismos que operam na
constituição simbólico-imaginária de nossa realidade. A
violência Real não é traumática no mesmo sentido da violência
que viola corpos e famílias, que impõe rupturas e supressões na
história. Ela é a violência que advém da descoberta do
estrangeiro dentro de si mesmo. Ela perturba a identidade entre o
trauma e seu retorno convidando à inserção de um fragmento de
reparação ou de suplemento na experiência. Por isso seu traço
semiológico de reconhecimento sinaliza a insegurança ontológica
na identidade dos egos e a indeterminação na relação de
propriedade dos entes. O que o trauma da morte violenta de alguém
cria é a identidade entre as duas coisas, forçando a identificação
entre o trauma realístico e o trauma Real. Por isso sua cura
depende de como conseguimos separar as duas coisas que estão
soldadas, por exemplo, na mesma imagem. Inversamente, isso nos abre
para essa pesquisa sobre a verdade e o real, também chamada luto.
Mais
do que a regressão da biopolítica para a necropolítica e do
círculo fechado e inversivo entre soberania e violência, o
que Bacurau,
lido junto com Casa
Submersa,
propõe é uma oniropolítica, ou seja, a restauração de nossa
capacidade de sonhar, de olhar para o lado e de coabitar várias
temporalidades contraditórias. Uma oniropolítica, como redefinição
de nossas formas de desejar, vem se insinuando no trabalho
dramatúrgico recente de Denise Fraga, em Eu
de Você,
no recente livro de Vera Iaconelli4,
nos estudos anteriores de Tales Ab’Saber5,
no último livro de Vladimir Safatle6 e
nas pesquisas recentes do grupo de Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski
na clínica do traumático, ou de Jaime Guinsburg na crítica
literária.
O
resgate da língua do pai negro comida pelos peixes, em Casa
Submersa,
ou o retorno de Teresa para o funeral de sua avó (assim como o
anúncio da retomada dos enforcamentos públicos no Vale do
Anhangabaú), em Bacurau,
devem ser lidos como uma alegoria cuja potência reside justamente na
indeterminação da identidade e do sentido da mensagem. Seriam uma
alusão ao assassinato da língua do pretês, como queria Lélia
Gonzalez? Seria Teresa uma versão rediviva de Marielle Franco? Os
enforcamentos e as desaparições estão acontecendo novamente, mas
seriam eles os mesmos? Daí a importância de analisar tais produções
como sonhos e não por seu valor prescritivo, em chave literal.
Enquanto as imagens oníricas forem memes de repetição da miséria
da violência permaneceremos submetidos ao empuxo para contemplá-las
em posição de obediência, como se fossem uma nomenclatura que
teríamos que repetir em nome da vida ou da morte, da paz ou da
guerra.
É
justamente por não sabemos se as pílulas tomadas pelos moradores de
Bacurau são de anestesia ou de coragem, se são para acordar ou para
dormir, que encontramos um novo caminho em formação na nossa
relação com as imagens. Por isso, ainda que as armas estejam nos
museus, nas escolas e nas igrejas desertas (e ainda que suas portas
se encontrem abertas), não sabemos mais como usá-las em nosso
próprio tempo. Os sonhos possuem essa propriedade reparadora de
alterar nossa relação com o tempo. Eles nos fazem perguntar como o
hoje, o ontem e o amanhã habitam a construção da mesma imagem. Com
isso, demandam um trabalho de leitura e construção que chamamos
desejo. Afinal, as imagens não são apenas imaginárias, mas também
simbólicas, quando nos permitem reencontrar a história de nossos
desejos, e ainda, quando bem postas e bem lidas, capazes de indicar o
lugar do real. É exatamente o contrário não simétrico dessa
relação pedagógica e ortopédica com as imagens, com as palavras e
com o tempo, que encontramos nas atitudes de estupidez calculada de
Bolsonaro ou no discurso tosco que o subvenciona no varejo. Não
importa o olhar, não importa o lugar de onde se vê, não importam
as vozes que falam, múltiplas em uma narrativa… tudo o que
interessa são objetos malévolos, imagens de poder e glória
cooptadas pelos inimigos naturais.
É
muito importante lembrar que Bacurau e Casa
Submersa foram
pensados antes da
emergência deste encolhimento democrático que vivemos. Filme e peça
foram precedidos primeiro em 2013 e depois em 2016 pela construção
de uma série sobre violência e história. Se ambos parecem
proféticos e ilustrativos para 2019 é porque fecham um ciclo que já
estava anunciado por nossas práticas de esquecimento e negação da
história. É porque a repetição do trauma se anunciava mais forte
do que a reparação. Eles surgem como uma facies
hipocrática do
presente pois foram capazes de pensar o presente antes que ele fosse
presente. E só o fizeram porque nos trazem uma teoria do tempo
subversiva e uma nova relação com a imagem que é crítica… se
não divina.
Notas
1 Sigmund
Freud, “Moisés y la religión monoteísta” [1939],Obras
completas de Sigmund Freud,
Vol. XXIV (Buenos Aires, Amorrortu). 2 Walter
Benjamin, Origem
do drama barroco alemão (tradução,
apresentação e notas de Sérgio Paulo Roanet, São Paulo,
Brasiliense, 1984), p. 188. 3 Sigmund
Freud, O
Infamiliar [1919] (trad.
Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, Belo Horizonte, Autêntica,
2019). 4 Vera
Iaconelli, Como
criar filhos no século XXI (São
Paulo, Contexto, 2019). 5 Tales
Ab’Saber, O
sonhar restaurado (Campinas,
Editora 34, 2005). 6 Vladimir
Safatle, Dar
corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor
Adorno (Belo
Horizonte, Autêntica, 2019).
Christian
Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.)
do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria
Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura
e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume,
2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e
Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala
Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua
superação (Boitempo,
2015). Seu livro mais recente é Mal-estar,
sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre
muros (Boitempo,
2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia
e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e
Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias
do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora
com o Blog
da Boitempo mensalmente,
às quartas.
Todos os que acompanham minhas resenhas de filme sabem que não está
entre minhas preferências os de super-heróis. Primeiro por sempre
ser algo muito surreal, segundo, e por isso mesmo, meu raciocínio
não conseguir acompanhar todo o enredo, terceiro porque, não
acompanhando, minha memória não funciona para que eu possa assistir
as continuações. Pois bem, já assisti vários do Batman e sabia da
existência do Coringa, mas então hoje fui ao cinema pela segunda
vez assistir sobre sua história (eu nunca fui ao cinema duas vezes
para ver o mesmo filme).
Logo
no começo, primeira cena, Arthur Fleck está se pintando de palhaço,
um sorriso forjado com os dedos e uma lágrima descendo pelo rosto.
Não se trata daquela famosa lágrima desenhada, é uma real, que
desce discretamente. Ele trabalha para uma empresa que “fornece"
palhaços para eventos em geral. São tempos de violência gratuita,
da banalidade do mal (salve Hannah Arendt), e Arthur é espancado por
um grupo de meninos na rua. O motivo: porque querem lhe roubar a
placa(?); porque só querem sacaneá-lo mesmo(?); sabe-se lá o que
explica o prazer em causar dano gratuitamente ao outro. Ele leva uma
bronca do patrão porque o cliente se queixou de seu sumiço, ao
passo que ganha uma 38 do colega de trabalho.
Corta
para a conversa com a assistente social que o "atende", e a
pergunta de Arthur é: "É impressão minha ou o mundo está
ficando mais maluco?”.
Arthur
veio ao mundo sob a seguinte sentença: "aquele que nasceu para
fazer rir e trazer alegria”. Sua mãe o chama de "Feliz”. O
local onde trabalha se chama Haha’s e seu slogan é "coloque
um sorriso nessa cara”. Há um imperativo à felicidade, à
alegria, ao riso indispensável, a que Arthur obedece, tanto se
tornando palhaço, como sonhando em ser comediante, mas, sobretudo,
colocando o imperativo no real com seus ataques de riso a que ele
chama de distúrbio neurológico. E todos perguntam, quando acontece:
“do que você está rindo, idiota? Não tem graça". São
tentativas de cumprir o destino do dizer da mãe, agora uma senhora
que é cuidada (alimentação, banho, etc) por Arthur, desde cedo “o
homem da casa”. Ambos vivem uma loucura a dois, para ficar mais
chique, folie à deux. A mãe vive repetidamente questionando por que
Thomas Wayne não responde suas cartas. Ele, um homem importante,
quer se candidatar a prefeito (sim! o pai do Batman!), ela, uma
mulher que trabalhou na casa dos Wayne há trinta anos.
Vamos
para o segundo momento em que Arthur está de novo como um objeto a
ser batido, espancado, gratuitamente. Ele acaba de ser demitido
porque a arma cai de sua perna no meio de uma apresentação num
hospital infantil. "É um adereço, faz parte do show", mas
seu chefe não acredita e o demite aos berros, por telefone. No
metrô, três babacas, os típicos cidadãos de bem de Gotham (nada
que lembre nossos cidadãos de bem por aqui) estão assediando uma
moça e Arthur começa a gargalhar. Não tem graça, nunca tem. Os
três homens começam a espancá-lo e ele reage matando os três a
tiros. É difícil admitir isso, mas a gente torce e sente um alívio
quando ele consegue se levantar do espancamento brutal e mata os
três. Talvez isso seja material para a polêmica em torno do filme,
de que incitaria à violência. Mas me parece que a arte imita a vida
mais do que o contrário, e se sentimos um certo gozo na cena, é
porque podemos fantasiar ao invés de ir ao ato (salve a arte!).
Depois disso, ele corre, aturdido e entra num banheiro público. Lá
se desenrola uma dança que parece quase involuntária, quase tanto
quanto seu riso. Uma cena que me fez arrepiar inteira e eu queria
abraçar aquele ator por ter escolhido ser ator e fazer aquilo tão
bem. O assassinato no metrô causa rebuliço em Gotham e o candidato
a prefeito e empresário Wayne (o entojado) diz: “o problema dessas
pessoas que fazem esse tipo de coisa é que não suportam as pessoas
bem-sucedidas como nós, já que eles continuam sendo meros
palhaços”. Arthur ouve esta fala que está sendo transmitida na
televisão. Wayne é chamado a dizer algo, pois os três rapazes eram
funcionários de sua empresa.
Em
seu caderninho de piadas para o show de stand-up comedy que está
preparando, escreve: "A pior parte de ter uma doença mental é
que as pessoas esperam que você aja como se não tivesse uma”. Na
conversa com a assistente social, ela sempre lhe faz as mesmas
perguntas e ele diz: “Você não escuta o que eu digo. Sempre
pergunta como eu me sinto, se tenho pensamentos ruins. Eu sempre
tenho pensamentos ruins. Sempre me senti como se não existisse. Você
não me ouve". E parece que não ouve mesmo. Ao fim deste
encontro, ela lhe dá a notícia de que a verba do programa de saúde
foi cortado e, portanto, é o último atendimento. “E como vou
conseguir meus remédios?". A pergunta cai no vazio.
A
mãe de Arthur pede a ele que poste mais uma carta para Wayne. Ele
decide abrir a maldita carta para saber o que tanto esta mulher tem a
dizer. Ela pede ajuda: “somente você pode ajudar a mim e a seu
filho". Estarrecido, aos berros, Arthur quer saber se aquilo é
verdade. A mãe diz que na juventude, quando ela trabalhava na casa
dele, se apaixonaram, mas ele achou melhor não ficarem juntos por
questões sociais e que a fez assinar uns papéis. E nós ficamos sem
saber se é delírio (eu ia dizer “se é verdade ou delírio”,
mas um delírio não é uma verdade?). Pois Arthur vai até Wayne,
que nega a paternidade e ainda diz que sua mãe é uma louca, que o
adotou quando ainda trabalhava para sua família, mas que foi
internada num sanatório depois. Decidido a saber de sua verdade
(tanto quanto o pobre Édipo que acaba vendo justo aquilo que mais
temia enxergar), vai ao sanatório e descobre que sua mãe foi
diagnosticada como psicótica, que tinha um filho adotivo (ele) a
quem deixava sofrer maus tratos por parte de seus namorados. Nessa
cena, tudo acontece muito rápido e as questões que ficam são: a
mulher era realmente louca? Ela adotou mesmo o menino ou foi obrigada
a assinar papéis falsos segundo a versão da poderosa família
Wayne? Se acaso não era louca, ela ficou a partir dali, a ponto de
permitir que seu filho sofresse abusos físicos: “Eu nunca o ouvi
chorar, ele sempre foi um garotinho tão feliz".
Ser
feliz é o imperativo do Outro materno a quem Arthur está
absolutamente alienado, sem corte, sem castração, foracluído. Uma
psicose não tem como causa as mazelas sociais, ainda que a maneira
como a loucura é tratada (ainda) seja um grave problema social, sim.
Estando fora do discurso, Arthur se coloca fora da lei e, para romper
com o imperativo da mãe, precisa matá-la no real. Enquanto um
“neurotiquinho" qualquer passaria anos em análise, deitado no
divã, matando o Outro aos poucos, Arthur faz uma passagem ao ato e
diz, enquanto a sufoca com o travesseiro: “É muito difícil tentar
ser feliz o tempo inteiro. Eu nunca fui feliz nesta minha vida
desgraçada. Lembra quando você dizia que meu riso era um distúrbio?
Eu descobri que não é, eu sou assim mesmo". Édipo mata o pai
sem saber que é seu pai. Arthur mata a mãe porque sabe (o saber
psicótico é intransitivo).
Para
saber o desfecho (mais do que já abri meu bocão) vocês precisarão
ir ao cinema, até porque minhas palavras não conseguem transmitir o
impacto que o filme causa. Não relatam sobre a atuação do Joaquin
Phoenix (CASA COMIGO, JOAQUIN??). Tenho para mim que ele ganhará o
Oscar de melhor ator.
Isloany Machadoé psicóloga clínica, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Dispensadora da ciência e costuradora de palavras por opção. Autora dos livros “Costurando Palavras: contos e crônicas crônicas” (2012); “Em defesa dos avessos humanos” e do romance “Nau dos amoucos” (2017). É a mãe do Adriano.
Um
amigo*me
recomendou o filme Um homem de sorte (disponível na Netflix,
dirigido por Bille August) e eu, vasculhando minhas anotações,
resolvi que assistiria ontem. Baseado no livro “Lykke-Per”, do
autor dinamarquês Henrik Pontoppidan, o filme conta a história de
Peter Andreas Sidenius, um jovem de família cristã, que decide
romper com a linhagem clerical e seguir seu sonho de ir para
Copenhague cursar engenharia. A primeira cena do filme mostra Peter
recebendo a notícia de sua aprovação na faculdade. Em seguida,
frustrado com a escolha do filho, o pai faz uma oração em família
pedindo a deus que mantenha o rapaz perto de seus ensinamentos, uma
fala toda baseada na culpa e ameaça da fúria divina. Mas quem está
furioso é Peter, que quer se libertar de sua origem religiosa tão
pobre e austera. Numa discussão, o pai o amaldiçoa após o rapaz
dizer que sempre se sentiu um "exilado e sem-teto" naquela
casa: "Exilado seja aquele que desafia o Senhor!”. É uma cena
carregada de muito ódio entre pai e filho.
Na partida, o vento
da liberdade lhe tocando o rosto durante a viagem de trem (é um
filme de época). Na faculdade, uma ideia obstinada: encontrar outras
formas de obter energia elétrica (recursos naturais: água e vento)
que não dependam do uso do carvão. Uma constante: o ódio a tudo
que remete ao pai e ao cristianismo. Peter, que é muito pobre,
conhece uma família de ricos judeus, fica de olho na filha mais
nova, mas acaba flertando com a mais velha depois que ouve o irmão
dela dizer que, por ser primogênita, a herança é maior. Isso nos
dá uma visão do quanto Peter, ou Per, como passam a chamá-lo, é
um homem ambicioso.
Jakobe, a filha mais velha da família
judia, é muito inteligente e está noiva, mas se apaixona pelo jovem
gênio e rompe o noivado. Quando ele passa um tempo na Áustria, ela
lhe escreve cartas apaixonadas, às quais ele não responde. A moça
chega a ir encontrá-lo e passam uns dias juntos, tempos depois ele
regressa e oficializam o noivado (Jakobe está grávida, mas não diz
nada a ele porque quer lhe fazer uma surpresa). Nesse meio tempo, o
pai de Per morre, e a mãe vem morar na mesma cidade que ele
(Copenhague) porque quer ficar perto do filho mais velho, irmão de
Per que também é clérigo, como o pai.
O futuro sogro
tem bons contatos e coloca Per para falar diretamente com um homem do
governo, um ministro, que poderia autorizar a execução de seu
projeto de energia hidrelétrica e eólica, mas quando este homem, um
ex-militar de idade avançada, corrige sua postura: “Endireite as
costas!", o ódio flui na expressão facial de Per e tudo está
Per-dido. Ambos se insultam, o jovem o chama de velho louco e mais.
Um tempo depois, o sogro organiza um consórcio de pessoas ricas que
estão a fim de financiar a execução do projeto, mas ainda assim
dependeriam da aprovação do tal ministro. Per recusa-se,
cara-a-cara com o homem, a pedir perdão a ele por tê-lo insultado,
e diz que quem lhe deve pedido de desculpa é o ministro. Mais uma
vez: tudo Per-dido.
A mãe de Per morre e seu corpo será
transladado de navio para o interior, de onde vieram. O irmão não
poderá acompanhar o féretro (ó, falei difícil!) por motivos de
trabalhos oficiais e pede a Per que o faça. Ele se recusa, mas, de
última hora, decide ir. Reencontrar-se com suas “raízes", o
lugar onde sempre morou e que o remetia a toda culpa cristã, à
austeridade do pai, etc, logo depois de ter fracassado em seu projeto
de vida, faz uma reviravolta na cabeça de Per. Chega a ter uma
terrível crise de angústia e questiona o vigário que enterrou sua
mãe: "será que é por causa da maldição de meu pai?".
Volta para Copenhague, rompe o noivado com Jakobe que, devastada, faz
um aborto discretamente em outra cidade. Tempos depois ela decide
abrir uma escola para crianças carentes, longe da lógica cristã da
culpabilização e do ódio, pois diz ter visto de perto o que a
austeridade é capaz de fazer com uma pessoa.
Completamente
perturbado e em dívidas com a família dela, volta para o interior,
se casa com a filha do vigário e tem com ela três filhos. Anos
depois está abençoando o filho mais velho, conferindo se as orelhas
estão limpas, mandando que endireite as costas. A esposa lhe pede:
“não seja tão duro com ele". Na comemoração de aniversário
desse filho, Per se vê como sempre: um exilado. E então foge também
dessa mulher e, inclusive de sua posição de pai, para viver sozinho
no meio do nada, onde reencontrou-se com suas raízes a partir da
própria solidão.
O filme não é uma lição de moral
sobre a importância da humildade, como o pai de Per tanto queria
fazê-lo engolir goela abaixo. É sobre a quase impossibilidade que
temos de romper com aquilo que somos, com a alienação ao Outro. A
obstinação e genialidade de Per o levam para longe do pai, mas as
raízes do ódio estão tão fincadas nele que o fazem perder
qualquer chance de realizar seu sonho. Por ódio ele se move para
longe do pai e pelo mesmo ódio, torna-se algo bem parecido com ele.
Os caminhos da pulsão nos levam a percorrer sempre as mesmas veredas
em busca de um objeto que não existe. E sobre o amor, Per foi amado
pelas mulheres, mas não sei se amou alguma delas. Ele, que se movia
pelo ódio, talvez não soubesse o que era o amor, talvez não
soubesse uma forma diferente de amar que não fosse odiando.
Extra
1: O nome do filme, "Um homem de sorte”, tem a ver com os
ricos judeus dizerem que Per era um homem afortunado por sua
genialidade.
Extra
2: Já mais velho e adoecido por um câncer, Per faz contato com
Jakobe. Ela vai até ele, que a chamou porque quer lhe dar todo o
dinheiro que conseguiu juntar na vida para que ela aplique na escola.
Ele pergunta: “eu a magoei muito?”, ao que ela responde: “Eu
não mudaria nada na minha vida. Foi por ter conhecido você que pude
ser quem eu sou". Talvez Jakobe tenha amado sozinha, mas, como
disse Lacan, “quem ama nunca está sozinho". Encontros assim
são raros, da ordem do milagre, como também diria Lacan, ou, "são
mais difíceis do que ganhar na mega sena", como diria minha
analista.
(* Fui eu, Henrique, esse amigo...rs.)
Isloany
Machadoé
psicóloga
clínica, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns
do Campo Lacaniano-Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de
textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela
UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em
Psicologia pela UFMS. Dispensadora da ciência e costuradora de
palavras por opção. Autora dos livros “Costurando Palavras:
contos e
crônicas crônicas”
(2012); “Em defesa dos avessos humanos” e do romance “Nau dos
amoucos” (2017). É a mãe
do Adriano.
Quantas
pessoas precisaram me dizer para assistir esse filme antes que eu
pudesse fazê-lo? Em uma escolha (quase) ao acaso, Que horas ela
volta? me fez chorar.
Em
essência, o filme diz sobre o não-lugar, o não-pertencer, conta
sobre as diferenças estabelecidas entre as classes sociais. Regina
Casé (sim, aquela do Esquenta!) faz a personagem principal, uma
empregada doméstica que deixou o nordeste e foi para São Paulo
ganhar a vida, trabalhar para sustentar a filha de dez anos que
deixou por lá, sob os cuidados de outra pessoa. Mora num quartinho
na casa dos patrões, faz trabalhos domésticos e cuida de Fabinho,
da mesma idade de sua filha.
Empregada
não come à mesa junto com os patrões, não usa a piscina, mesmo
sendo "quase da família", como diz Dona Bárbara, a
patroa. A paz de todos é abalada quando Jéssica, a filha da
empregada, decide ir para São Paulo para prestar o vestibular de
arquitetura na FAU-USP. O que a mãe tem de subserviente, a filha tem
de corajosa, dedicada e estudiosa. Além disso, Jéssica não se
coloca em momento algum como inferior às pessoas da casa, o que faz
com que sua mãe a tome por "sem-noção", abusada. Ela
conversa com os patrões de sua mãe em pé de igualdade, fala de
arte e arquitetura. Questiona a subserviência da mãe, se exaspera
quando descobre que ela nunca entrou na piscina.
A
patroa, Bárbara, passa a não suportar sua presença, e o ápice do
mal-estar é representado pelo pedido dela de que a piscina fosse
esvaziada após Jéssica ter entrado junto com seu filho, o Fabinho,
com a desculpa de que "um rato" havia sido encontrado. É,
sim, para os burgueses é melhor uma piscina vazia do que "cheia
de ratos". Jéssica vai embora depois que a patroa da mãe
proíbe sua livre circulação pela casa. Até que consigam um lugar
para morar juntas, Val permanece na casa dos patrões. Jéssica passa
na primeira fase do vestibular, Fabinho não. Pela primeira vez,
tomada de alegria e orgulho da filha, Val entra na piscina (cuja água
está pelo joelho), num ato de insubordinação, e liga para a moça,
dizendo de seu orgulho. A cena é tão linda que me fez chorar.
Para
além de uma crítica social das diferenças de classes, o que mais
me tocou foi o deslocamento das maternidades. Val deixa a filha
pequena no nordeste, nas mãos de outra pessoa. Bárbara, a patroa
sempre ausente, deixa Fabinho nas mãos de Val e ambos estabelecem de
fato uma relação mãe-filho. Val somente consegue se desvincular
dele e de seu emprego quando, fracassado no vestibular, Fabinho vai
para um intercâmbio na Austrália. Ao mesmo tempo, descobre que
Jéssica tem também um filho que deixou no nordeste (haja
repetição), Jorge (elas não se falavam há mais de três anos, por
isso não sabia). Assim, Val, que só pôde ser mãe de Fabinho, ou
seria seu Falinho(?), o substitui por Jorge, o neto. Não são
abandonos maternos, mas deslocamentos.
O
que me doeu pessoalmente foi a impossibilidade dessa mulher em ser
mãe da menina, mas isso é problema meu (haja divã). Que horas ela
volta? Talvez não volte porque não possa, talvez porque não
queira. O desejo sempre está em outro lugar.
Isloany
Machado, 12.02.2019
Isloany Machadoé psicóloga clínica, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Dispensadora da ciência e costuradora de palavras por opção. Autora dos livros “Costurando Palavras: contos e crônicas” (2012), “Em defesa dos avessos humanos” e do romance “Nau dos amoucos” (2017). Mãe do Adriano.