de Andréa Brunetto
Ida,
filme polonês de 2013, dirigido por Pawel Pawlikowski, ganhou o Oscar de Filme
estrangeiro desse ano. Já tinha ganhado ano passado dois prêmios, mas teve sua
fama estendida após o Oscar e suscitou acaloradas polêmicas em seu país. Os
poloneses não gostaram muito de se ver nele, e que seu país fosse exposto no
mundo inteiro pela questão judaica. Nele, cristãos mostram-se indiferentes ao
destino dos judeus e um deles mata a machadadas uma mulher e uma criança judias
só para ficar com a casa delas. Essa cena não é mostrada, ela faz parte da
história a ser resgatada no tempo atual em que a ação se desenrola. O filme se
passa na década de 60 do século XX, mais de uma década depois de terminada a II
Guerra Mundial.
Antes
de entrar no debate sobre o filme, faço algumas considerações sobre o país. Uma
cena sobre a Polônia que li e me marcou: o jornalista polonês Ryszard
Kapuscinski, que viveu décadas de sua vida como correspondente na África, conta
em seu livro “Ébano, minha vida na África” que uma vez um africano disse para
ele que ele, homem branco, não sabe o que é ser escravizado por outro povo. Ele
respondeu: sei sim, meu povo já foi oprimido por três outros povos. O africano
teve descrédito e desconfiança com o que ele tinha dito, não achava que um povo
branco pudesse ser tão oprimido. Mas podem, e esses são os poloneses, que já
estiveram sob o jugo dos austro-húngaros, dos russos e dos alemães; que já
tiveram seu território retalhado e distribuído a bel prazer dos conquistadores
algumas vezes; que após o fim da Segunda Guerra estiveram sob o domínio da
Rússia por muito tempo. E que tiveram uma posição estratégica bem ruim durante
a guerra, no meio do fogo cruzado entre russos e alemães. E eles têm tragédias
muito grandes durante essa guerra, como o massacre de Katyn, por exemplo.
Então,
não se prestam muito bem a serem considerados pró-nazistas ou algozes. Mas que
os cristãos lá, bem como em outros países europeus, fizeram vista grossa ao que
acontecia aos seus vizinhos judeus, fizeram. Há relatos em vários livros que li
sobre a conivência dos cristãos poloneses com o destino dos judeus. O livro de
Claude Lanzman dá vários exemplos. Esse autor fez uma grande pesquisa nas
pequenas cidades polonesas para seu filme Shoah. Boa parte dessas histórias de
segregações dos cristãos poloneses eu li antes de estar na Polônia. E foi muito
chocante quando estive lá - andei pelo país em 2011, fui a Auschwitz - pois em
contraposição a isso, nunca conheci um povo tão acolhedor, tão simples, tão
simpático como esse. E tão cristão. Sobretudo na Cracóvia, de João Paulo
II. Deixando essa questão de lado, entro no filme.
Anna,
uma jovem às vésperas de fazer seus votos e tornar-se freira, é instada pela
madre superiora a procurar sua tia, única parente viva, a conversar com ela e
só depois, confirmar sua vocação. Sai à procura da tia e com isso descobre que
seu nome é Ida Lebenstein, uma judia, filha da irmã dessa tia, Wanda. A tia é
uma magistrada, alcóolatra, aparentemente faz parte do partido comunista que
conduz o país após o final da Segunda Guerra. Essa camarada está desiludida com
os rumos do país, e culpada por ter deixado seu filho com a irmã e sua própria
filha ainda bebê, para lutar na resistência. O filho de Wanda e a irmã foram
mortos a machadadas pelos vizinhos cristãos que ficaram com a casa deles.
Quando o homem que os matou, mostra onde estão as ossadas, ele dentro da cova
que abriu, Ida pergunta a ele: por que eu não estou aí com eles? Ele responde:
você era tão pequena, passava bem por cristã. O menino não, era moreno e
circuncidado. Ser branca a salvou da morte. Assim Ida sobreviveu, porque
passaria por cristã. É isso Anna\Ida: uma judia que se passa por cristã, uma
indiferente a tudo o que vê, que não se envolve, se passando por doce e
bondosa.
Wanda e
Anna\Ida viajam ao interior, a cidade onde tudo isso se passou, conversam com
as pessoas. Todos os cristãos tem um segredo a esconder, são resistentes, não
querem tocar nessa história do extermínio dos judeus; estão bem acomodados na
casa que agora é deles, que foi tomada com sangue e assassinato. Quando Wanda
investiga, quando é dura com os assassinos cristãos, Ida se afasta, não quer
ouvir, sai da casa. Ida não quer participar do resgate dessa história. Ela está
bem certa de que é cristã, que será freira. Sua tia culpada, atormentada,
deprimida, ensaiando uma posição de objeto a ser descartado, caminha para um
suicídio que se concretizará ao final do filme, jogando-se pela janela, e
Anna\Ida não diz nada, não ora por ela, não a acalma. Ela está sempre numa
vacuidade. Nunca está onde aparentemente está. Ela parece indiferente a tudo.
Por isso tenho dificuldade em dizer que ela é Ida. Ela renega suas raízes
judias, ela é Anna. Ela só sai da indiferença quando surge o desejo por um
homem.
No
começo da busca delas pela verdade, Wanda dirigindo, diz a Anna que ela vai
deixar os homens loucos e pergunta se ela tem maus pensamentos com os homens.
Ela responde que não. Pois devia, senão que sacrifício terá nesses votos
que vai fazer? Mas depois darão carona a um músico, um belo rapaz, que vai
despertar-lhe o desejo, e aí os “maus pensamentos” vem. Ele lhe diz: você não
tem ideia do efeito que causa. Ela não diz nada, mas vai para o quarto e tira o
véu, fica se olhando. A partir do desejo dele, que a torna desejável, vê-se
como uma mulher no espelho. E após o suicídio da tia, liga para ele,
encontram-se, vão para cama e ela descobre o sexo. Acordam, ele faz planos,
terão uma casa, um casamento, viagens a trabalho para ele tocar e ela o
acompanhando. Ela volta a sua indiferença de antes, não diz nada. Ele dorme,
ela faz a mala e volta para o convento.
O filme
tem cenas belíssimas, com neve que não acaba mais, e estradas brancas e árvores
secas. E é esta a cena final: ela chegando, à pé no meio da neve, sozinha, para
seu sacrifício dos votos. Viveu o desejo que sentiu, virou as costas sem dizer
nada ao homem. Ele fica lá, dormindo ainda, sem saber que foi usado como objeto
sexual. Nenhuma palavra lhe será dita para explicar nada, sem a casa, sem o
casamento. Sem nada. Ele e Wanda são os objetos a serem defenestrados. Assim
como em outro tempo foram Roza e o menino. Os cristãos, sejam aqueles durante a
guerra, seja Anna, são indiferentes à dor do outro. O retrato que o filme trata
dos cristãos é bem triste. Retrato ruim de ver, e creio que foi isso que esse
país tão cristão não gostou de ver.
A grande personagem do filme é Wanda. Ética, culpada,
buscando a verdade, desorientada, pois perdeu seus ideais. A que se sacrifica é
ela. Anna só se sacrifica por si mesma. Anna é uma raposa-indiferente em pele
de cordeiro. Sua pele\pêlo é a beleza branquinha. Ouvi dias atrás um ditado
pela primeira vez: uma raposa perde o pêlo, mas não perde o vício. Anna é isso,
uma raposa. No filme, todos os cristãos o são.
Trailer do filme
Andréa Brunetto é Psicóloga e Psicanalista, membro (AME) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, fundadora do Ágora Instituto Lacaniano, de Campo Grande. Autora de Psicanálise e educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos dias de hoje (UFMS, 2008). Escreve, publica e apresenta trabalhos na interface da psicanálise com outros saberes. Fundadora do blog http://andreabrunetto.blogspot.com.br/
3 comentários:
Parabéns!
Vi o filme e adorei, Parabéns pela sua resenha.
Fiz uma resenha no meu blog, não tão completa quanto a sua. Muito bom ver mais nas entrelinhas, não tinha conhecimento sobre a história da Polônia, amei seu post!
http://www.umavidaemandamento.blogspot.com/
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