de
Henrique
Senhorini
“...certas
dívidas, especificamente simbólicas,
excluem
a chance de um acerto de contas completo, sem resto.” Oscar Cesarotto
Mas afinal, a nossa vida não é um documentário ficcional? A nossa própria história “verídica” também não é uma ficção, visto que sua tessitura é permeada pela fantasia?
E
este excelente filme bem demonstra o lugar de importância que a
fantasia ocupa em nossas vidas. Trata-se de um lugar que tenta nos
fazer esquecer a máxima de Hélio Pellegrino: “a condição humana
não tem cura”. Pois, a fantasia consegue, de acordo com o
enunciado freudiano, produzir uma satisfação que é negada pela
realidade. Pensando com Coutinho Jorge, a fantasia é uma solução
para nós sub-existirmos com um minguado de satisfação que podemos
retirar da realidade. Contudo, não é propriamente da fantasia que
vou tratar aqui, mas, sim, recortar um afeto tão presente no filme e
caríssimo para os neuróticos (no mínimo, somos neuróticos): a
culpa.
Bem,
como já disse, o filme é baseado na história real de Philomena
Lee, uma senhora irlandesa que teve seu filho de três anos de idade,
Anthony, “adotado” em 1955 por uma família organizada de acordo
com os padrões de sua igreja. E por saber que se tratava de uma
história verídica e, concomitante, não pertencente exclusivamente
à personagem que dá nome ao filme “Philomena”, causou em mim
uma indignação tamanha, que só escrevendo sobre para, quiçá,
elaborar melhor. E o filme tem muito disso, luto e elaboração, luto
e elaboração, luto e elaboração...
Porém,
confesso que não foi nada fácil digerir que o acontecido não foi
na idade média, mas na metade do século passado. Porém, pior é
saber que em pleno século XXI, ainda acontece esse tipo de barbárie.
E minha indignação –
raiva e repulsa – aumentou mais além, quando fiquei sabendo,
diga-se de passagem, que mais
de duas mil (2.200 mulheres/mães, segundo a Folha de S.Paulo)
conterrâneas de Philomena – irlandesas como ela – tiveram a sua
mesma má sorte, a de vivenciarem a adoção forçada pela igreja
católica irlandesa - na realidade, vendidos - de seus filhos por
pais norte-americanos endinheirados.
Após
este meu desabafo (eu precisava disso), vamos ao filme...
Mas,
antes de adentrarmos na história apresentada, só um
lembrete que considero importante mencionar: vamos tratar aqui da história retratada no filme, somente dele.
Bem,
dito isso, a primeira cena com a protagonista mostra Philomena -
idosa e nos dias atuais - numa igreja acendendo uma vela e
respondendo ao padre que era para alguém especial. Em seguida, o
diretor mostra-a sentada em um banco eclesial relembrando um grande
acontecimento de sua vida. Via flashback,
ela
se vê vivenciando um momento raro seu de intensa felicidade, que a
marcou para sempre e de várias maneiras. Um rapaz galanteador que
conhecera momentos antes, no parque de diversão nos anos 50, no qual
se encontrava, a corteja. Philomena, uma feliz menina moça do
após-guerra, experiencia pela primeira vez um romance tórrido,
abrasador e -
talvez por isso mesmo -
fugaz. A sua maçã de amor mordida é destacada ao cair no chão.
Igreja + padre (pai) + maçã = Eva + pecado original? Temos aí uma
intenção do diretor?
Stephen
Frears, o diretor, avança nas lembranças e nos mostra Philomena, já
grávida, sendo inquirida pela madre superior do mosteiro, a Abadia
Roscrea. Um local religioso que recebia futuras mães solteiras,
levadas por suas famílias envergonhadas. E, logo no início da
inquirição, a tal madre dirige esta pergunta a Philomena: “Você
gostou de seu pecado?”
um
pequeno parênteses aqui
Interessante
a palavra pecado (pe-cado): pé caído; pecar: dar um passo em falso,
palavras que fizeram, segundo Geraldino Alves Ferreira Netto, surgir as expressões “queda original” e “cair em pecado”. Geraldino
ainda nos lembra de Édipo, “pé inchado”, pois seus pés foram
amarrados “para não pisar em falso, cair em pecado, em erro de
julgamento, em incesto”. Porém, o pé inchado o fez mancar.
Continuando
na Inquisição, êpa, na inquirição, Philomena tenta se defender,
já quase em prantos: “Nunca me ensinaram sobre [fazer] bebês”.
Defesa esta que faz a madre, de bate-pronto e com língua
incendiária, culminar: “Não ouse culpar as irmãs (sic). Você é
a causa desta vergonha. Você e sua indecência.”.
Em
seguida, outro corte e o diretor avança mais um pouco na linha do
tempo mostrando a cena do parto. Parto este - pélvico e sem
anestesia - sendo realizado pelas próprias freiras. Mas, diante da
constatação que o bebê de Philomena - aos berros pela dor - se
encontrava em posição invertida, uma das freiras, acho que a
parteira principal, sugere para a madre superior chamar um médico.
Porém, ela recusa a proposta dizendo: “Está nas mãos de Deus
agora. A dor é a penitência dela”. Crime e castigo? Sim !!! Philomena foi considerada culpada pela madre superior e o parto
doloroso era somente o inicio de sua pena.
outro parênteses aqui...
Ceder
ou não ao desejo? Talvez este seja o ponto fulcral das divergências
entre a psicanálise e a religião, como nos lembra Geraldino Netto,
visto que - generalizando - para as religiões a culpa é
decorrência de ceder ao próprio desejo, enquanto a psicanálise, através de Lacan, nos
ensina o contrário: “a única
coisa da qual o sujeito pode ser culpado é de ter cedido de seu
desejo”, em A Ética da Psicanálise.
Mais
um corte do diretor proporciona o retorno de Philomena ao sofrimento
atualizado pelas lembranças. Era o dia no qual seu filho Anthony
completava 50 anos que provocava tamanha dor. E ela carregava o
segredo de ter tido este filho por todo esse longo tempo, mais o fato
dele ter sido “doado” contra a sua vontade. Sim, de ter tido o
filho e não dito ao mundo sobre sua existência, a de Anthony, mais
a tentativa, via resignação, de aplacar sua dor, mais o fato
não ter ido procurá-lo, de nada saber e ou não querer/poder saber sobre
o filho, era o seu martírio (em botânica, flor-da-paixão). Essa
era a pena a cumprir. Mas, o que fazer? Afinal, a sentença da
madre superior fora dada e Philomena não sabia como pensar e fazer
diferente, principalmente diante do mundo no qual
vivia.
Até se deixou convencer de sua culpa, assinando um documento padrão
- produzido pelas freiras para as mães solteiras - desistindo da
guarda de seu filho. O mesmo serviria posteriormente para impedir
essas mães a voltarem atrás de suas decisões e, ao mesmo tempo,
protegeria as “irmãs” de seus atos criminosos.
Só
que meio século depois ela cansou de pagar esta dívida impagável,
imposta pelas normas sociais e religiosas de sua época. E, talvez,
por viver agora no presente, numa sociedade um pouco mais branda em
relação ao seu pecado, mãe solteira, lhe tenha dado a coragem
necessária de, enfim, lutar a favor de seu desejo.
um
aparte...
Aqui
tem um fato indicando que a culpa pressupõe um Outro. Não um outro
qualquer, mas um grande Outro. Lembramos que geralmente a mãe é
nosso primeiro de muitos Outros (mãe, pai, tio, professor, padre,
igreja, Deus, empresa, sociedade, capital, etc...), em termos de
importância para cada um de nós. De acordo com Colette Soler, “há
uma culpa em relação às normas do Outro” e esta, a culpa, “se
desloca quando as normas mudam”. Portanto, podemos pensar que a
culpa tem íntima ligação com o Outro, com suas normas e ideais.
Culpa,
dívida? Shuld, na língua do pai da
psicanálise, a língua alemã. E as línguas
germânicas permitem a uma única palavra fazer uma sobreposição de significados. Esta sobreposição encontra na
formulação da metapsicologia freudiana sua parente, a angústia.
Mas não qualquer angústia e sim um tipo especial, a produzida pelo
supereu (superego).
Em
“Declinações da Angústia”, Soler nos diz que esses afetos, a
culpa e a angústia, mesmo sendo diferentes são irmãos, pois se
avizinham, seguem-se e se combinam particularmente “nos sujeitos
que são fortemente submetidos à voz do supereu”. E com este “não
há perdão, não há circunstância atenuantes: não se escapa da
prisão com o supereu!”. Ainda com a autora, a diferença entre os
afetos superegoicos é que a culpa engana, não produz certezas, já
a angústia produz. E as angústias do supereu são as mais
ferrenhas e talvez, também, as mais “devastadoras” e
“aberrantes”. Entretanto, a culpa, como a psicanálise nos ensina, é fundante da subjetividade e o seu fundamento não está ligado ao fato de gozar e sim ligado ao fato - Lacan em "Subversão do sujeito", segundo Colette Soler - que o gozo é sempre perdido, parcial, limitado e insuficiente. Ligado "a falta do gozo", a falta.
E nós, neuróticos, privilegiamos "as
formas de gozo que participam da privação: o gozo da falta de
gozar". Isso significa que nos é impossível evitar a culpa? Essa é nossa pena? A pena de existir ?
S.Paulo, maio de 2014
S.Paulo, maio de 2014
Trailer do filme
Um comentário:
Olá de uma olhadinha no meu blog
http://amordetodasformas.blogspot.com/
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