de
Christian Dunker
O filme certamente
não teria o mesmo êxito se fosse exibido na sua versão original.
Nela, está ausente a voz que expressa o pensamento do herói,
quebra-se aquilo que tornava o estilo assimilável. O efeito da
versão original é angustiante. O herói se torna impenetrável, a
suspeita de que ele próprio é um replicante paira sobre o enredo.
Os olhos do espectador hesitam em se reconhecer ou não num possível
andróide. Na versão "amputada", a voz dá suporte para
uma posição que o espectador acompanha. Um ser sem lugar; sem
instituições; sem ideais; liberto da temporalidade que estes
imprimem. É difícil dizer a que espaço pertence este personagem,
talvez à cidade onde lixo e tecnologia se combinam, mas certamente a
nenhum prédio desta cidade. É mais seguro afirmar que ele pertence
à névoa que a envolve.
Do outro lado,
encontramos a tragédia dos replicantes. Obcecados por aquilo que o
herói despreza: o tempo. O tempo absolutamente determinado pela
data de ativação. Sua demanda não é de imortalidade, mas de
indeterminação. Lutam para efetivamente morrer. Sustentam
desesperadamente uma opacidade subjetiva. Não querem ser públicos,
devassáveis, atravessados por um olhar que os determina
integralmente como objetos. Furta-se à condição de uma fotografia
esquadrinhada por um aparato de ampliação. A máquina de detectar
replicantes é uma grande lente que os capta na pupila, que os olha
além do que podem ser olhados , que invade memórias, pondo sob
suspeita sua consistência. Certos pacientes relatam que estão sendo
olhados na alma, que não estão mais opacos ao olhar do outro, que
este lhe sabe os pensamentos. É nesse momento que se dizem mortos,
ou então convertidos em máquinas de transmissão ou retransmissão,
ou, ainda, mudando de sexo. A transparência da alma é, nos dois
casos, angustiante.
Note-se como os
replicantes matam suas vítimas apertando os dedos contra seus olhos.
Escute-se a fala do replicante chefe : "Você fez meus olhos,
mas não pode imaginar o que vi com eles". O olhar da coruja
caolha, os olhos da suspeita fervendo na água do café, índices de
um desejo de reconhecimento, de serem como quaisquer outros e ao
mesmo tempo únicos na memória de suas experiências. Nesse sentido,
Harrison Ford, o herói sem nome, definido por sua função, é a
melhor representação do replicante. O que o faz herói é ser
escutado na alma, e não visto. Este olhar do Outro os põe como
objeto de uma suspeita; é um olhar que diz : sem morte, sem desejo,
sem estilo. Bem poderia ser o olhar que recai como um imperativo de
beleza sobre os corpos contemporâneos. Que corpo quer este olhar?
Mais magro, mais alto, sem estrias ou rugas, um corpo exato; um corpo
de replicante é o que assedia nossas madames. É este olhar, e o
corpo suposto que ele engendra, o olhar que mata a anoréxica.
Finalmente, Rachel,
a replicante que não sabe. Diante de um passado que não lhe
pertence. O registro de experiências e o seu acúmulo na memória
talvez façam dela a mais fantástica máquina já produzida pelo
capitalismo subjetivo. Experiências negociáveis na bolsa de valores
humanos. Fatos brutos, consumidos, resistentes à interpretação,
televisionados para o Aqui e Agora do presente eterno e sem lugar.
Talvez nada seja, atualmente, mais sartreano do que a imagem
jornalística da violência bruta . Contrariando Nietzsche: só
fatos, sem interpretações. Rachel é sujeita a uma súbita retirada
de todos os fatos. Eles não são mais "subjetiváveis",
não fazem mais histórias. Não se trata de saber se ela sente ou
não, não é isso que diferencia o homem da máquina. Mas, uma vez
sem as pseudodeterminações desta história, o que poderia ela
desprezar, do que ela teria a se desfazer tediosamente, do que
poderia se libertar? Subitamente viu-se sem ter nada a perder, sem
poder perder nada mais.
No final apresentado
pela versão original, Rachel e o caçador de andróides descem pela
porta que se fecha num estrondo, o amor da caça pelo caçador ganha
uma dimensão silenciosa, impenetrável. Não há uma declaração
amorosa sequer; o romance, ao contrário da sua situação desde o
século XVIII, não faz mais falar. Ele se desenvolve pela
interpretação de olhares, pela sua imposição contextual. Ele
fundamentalmente não se realiza; ao contrário da versão que chegou
aos cinemas, onde ele é absorvido numa imagem idílica, verdejante,
no sobrevôo de um avião. Contrastando com a densidade do filme,
esse final feliz, cuja eliminação reaproxima "Blade Runner"
e "Casablanca", dá a Rachel uma imagem da qual pode se
assegurar e da qual pode futuramente se desfazer. Essa imagem
"territorializa" o caçador e sua presa, ata-os a uma
esteira dramática que o espectador já antecipa.
Na perseguição
onde se encontram herói e anti-herói, há uma alteração que faz a
estética da existência evoluir para uma ética do ato. O sentido é
previsto pelo espectador, que antecipa no andróide uma violência e
frieza que o determinam enquanto tal. Harrison Ford, pendendo num
abismo, se agarra com uma das mãos, assim como o replicante que fura
sua própria mão para atrasar seu destino de desligamento. Ambos
estão por um fio e a série de fatos antecipa a morte do herói.
Nesse momento, o replicante segura sua mão no ar e o salva. Instante
que altera toda a interpretação suposta até então. Instante
ético. Ato onde não há nada a perder. Ato onde o andróide se faz
Outro para o corpo pendente, estranhamento que relembra o ato de
Antígona diante da cidade. Ato ético sustentado pelo puro desejo.
Ali, o replicante se inscreve no tempo e ganha a possibilidade de
morrer de fato. É o que torna possível a fala "Time to
die".
Seria o caso de
perguntar : mas qual é o filme de se trata? O filme 1, o original, o
da suspeita e da angústia; ou o filme 2, com a voz (re) asseguradora
de que nosso olhar pode entrar na subjetividade do outro e que nos
garante a participação neste estilo? Não seria o filme que vimos
no cinema pela primeira vez um replicante do segundo, um impostor que
nos promete um final feliz onde há somente a indeterminação do
desejo e sua angústia correlativa? Fico com Nietzsche : não há
fatos, só interpretações.
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor dos livros: “Lacan e a Clínica da Interpretação” (ed. Hacker, 1996), “O Cálculo Neurótico do Gozo” (ed. Escuta, 2002) e do “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011) - agora, vencedor do Prêmio Jabuti 2012
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