Pela
densa fumaça aparecem pessoas que se dirigem a um guichê. O prédio
antigo parece a reprodução perfeita de um aparato burocrático.
Lento, gasto, impessoal; uma repartição, como se diz. O guichê
indica uma posição de espera que remeterá a uma divisão em grupos
que redundará em uma sala: entrevista.
Nisso fica clara a alegoria.
Limbo, purgatório, entreposto transicional de almas. O problema é
que o filme é japonês e não há traço de cristandade ou moral
religiosa em circulação. Não há inferno ou salvação, apenas o
próximo passo para a eternidade. Trata-se de um grupo de
funcionários às voltas com uma tarefa. Dezessete casos encaminhados
na última semana; vinte e duas novas almas pela frente. Uma divisão
mais ou menos ao acaso distribui os candidatos entre quatro
escreventes. Para o chefe nada além de manter a interpelação de
eficiência.
A atividade consiste em fazer
com que cada um dos recém falecidos escolha uma e somente uma
lembrança de sua recém encerrada vida. Tal lembrança será, ao
final da semana, reproduzida, nas melhores condições possíveis e
gravada na forma de um pequeno filme que o portador levará consigo
para a eternidade. Tudo o mais será esquecido. Inexoravelmente
esquecido.
As instruções são
apresentadas a uma diversidade pessoas, individualmente, em uma sala
específica da repartição. Nelas desenrolam-se entrevistas com o
fito de determinar a cena escolhida, precisar sua datação e
reconstruir seus aspectos cênicos e narrativos. Há, como em toda
repartição um fluxo: até quarta a escolha, até sábado a
filmagem, domingo a exibição, durante a qual cada qual se dissipará
rumo ao além. Ao além do além.
Temos então os tipos: um
senhor velhíssimo, magro pince-nez, herói da segunda guerra
mundial, repleto de lembranças. Uma senhora igualmente de óculos
mas gorda, muda, sorriso expressivo, existência solitária,
capturada por folhas e plantas, suas íntimas companheiras. Um jovem
irrequieto – eu tenho que escolher ? por que fazê-lo ? Outro
jovem, tímido, talvez débil. Um empregado de companhia – vida
vazia, meticuloso, não se perturba com a tarefa. Uma jovem senhora,
orquídea gigante na lapela, muitas histórias de amor, esperanças e
decepções centralizam sua existência. Um jovem senhor, paletó
sobrando, gravata provavelmente emprestada para o enterro, sexo, e a
primeira metade do bolo da existência já parece dividida. Completa
a trupe uma quase adolescente, comportada, atenta às impressões que
causa, disneylândia e suas orgias alimentares serão o foco do
problema.
Alguns personagens parecem
surgir depois: um jovem fascinado por aviões, outro pela brisa
infantil dos bondes, outra ainda pelo vestido vermelho daquela cena
de dança adolescente. Na verdade eles parecem surgir depois pois
estão a cargo de um mesmo funcionário, coadjuvante talvez. Ao que
parece apenas interessado em chegar à próxima semana. Sabe-se que
em vida ele tem uma filha de três anos, que viu pouco, envolveu-se
pouco e talvez se arrependa amargamente por isso. Todavia prefere
ainda esquecer.
O foco do filme é a relação
entre dois funcionários: uma jovem irreverente, de língua ferina e
devaneante. Outro igualmente jovem, um pouco mais velho, mas de ar
muito mais maduro, diligente, parece afetar-se e envolver-se a uma
distância calculada. Sugere densidade e amargura ... indecidida.
Recusa-se gentilmente às tentativas de aproximação da jovem. Na
verdade seus gestos e aproximações são a única inciativa não
francamente profissional dos envolvidos no tal trabalho. Até a
banda, ativa na despedida semanal dos lotes humanos, o encarregado de
fixar a forma da lua que se apresentará em uma passagem de um dos
corredores, o chefe e seu parceiro de jogo, tudo transmite a sensação
de monotonia e repetição profissional. A bela, mas triste paisagem
outonal, os primeiros rebentos de neve, e fundamentalmente a
decrepitude do lugar, em sua austera arquitetura, transmitem uma
sensação exata de melancolia bucólica.
Na primeira parte do filme
acompanhamos o exercício astucioso da escolha. Suas estratégias de
cercamento, delimitação e condensação da experiência. Na atitude
distante mas precisa dos entrevistados vai se formando a questão. A
parte que melhor representará o todo de uma existência. Situar-se
em relação a uma vida concluída, tomar posição, refletir sobre
sua singularidade. Avaliar a melhor tática para representá-la; a
intensidade aguda de um instante ou o plano extenso de um bom exemplo
? O cotidiano ou sua ruptura ? A espera ou sua realização ?
O filme mostra aqui a
diversidade cômica da existência. A dificuldade aparentemente
insuperável começa a se desfazer. Surge o valor das pequenas
sensações: a asa de um avião cortando lentamente um floco de
nuvem, como se fosse algodão doce. O ar matutino pela vidraça de um
bonde, a face gelada, a pequena audácia infantil de por se de pé em
um lugar improvável. A música e a dança, únicas pela graciosidade
do vestido vermelho da protagonista, sua lembrança vaga entre
ritmos, acordes e pequenos trechos de letra – memória feita de
esquecimento. Finalmente a sensação das folhas caindo sobre os
ombros em uma tarde de outono, poderia ser qualquer tarde, poderiam
ser quaisquer folhas, mas não eram; alegria quase infantil – a
memória da simplicidade.
Estes parecem os casos mais
simples. A dificuldade dos entrevistadores é mormente de natureza
técnica: o modelo do avião, a tonalidade precisa da folhagem, a
forma exata dos brocados do vestido. O filme não os julga menores,
acentua a força desta escolha; diria oriental.
Um segundo grupo é formado
pelos que direta ou indiretamente são levados pelos sagazes
entrevistadores a escolhas mais complexas. São os falsos simples. A
garota tendente ao êxtase do entretenimento é levada a reconhecer a
obviedade comum de sua escolha. Substitui pelo afago quente do colo
materno. Ainda sensação, mas agora aparentemente mais enraizada. O
Senhor Sexo troca sua coleção de aventuras licenciosas pela
lembrança pontual das flores recebidas na ocasião do casamento da
filha. Até aqui tínhamos sensações, como tais solitariamente
vividas. Sensações habitadas por uma multidão de sentidos outros,
de encontros, de memórias. Agora começam a entrar em cena
lembranças envolvendo outros. Com isso lembranças das lembranças
dos outros.
Definir afinal o que é uma
experiência torna-se então questão central do filme. Onde ela
termina, onde ela começa, quais são suas bordas, do que ela é
feita ? Temos aqui o terceiro grupo.
Primeiro problema: o soldado
aposentado parece querer guardar para si o reconhecimento, não
esquecido por seus pares comunais, de seus feitos. Ele não quer
guardar os feitos eles mesmos, mas a memória coletiva que estes
formaram ao longo de sua existência; sua reprodução enriquecida
pela recontagem e transmissão da experiência: narrativa. O filme
pula a discussão, mas aqui há problema de conceito: o que ele quer
é levar a memória da memória (metamemória), a lembrança de ser
lembrado. Isso implicaria uma escolha de uma experiência,
como a interpelação exige. Mas até que ponto essa experiência é
realmente sua ? Não seria a experiência da comunidade o que ele
quer reter ?
Segundo problema: a jovem
senhora parece fixada a longos enredos amorosos feitos de mentiras.
Não apenas ilusões, mas falsas memórias. Memórias de fatos não
acontecidos são ainda memórias ? Aqui o filme toma uma solução. A
mentira se revela no diálogo com o entrevistador. Diante da
indecisão revelada pela consulente o entrevistador exorbita a
natureza de suas próprias experiências amorosas. Diante do espanto
que este desperta nela se vê obrigado a admitir a mentira. Na
verdade apenas uma brincadeira para tranqüilizá-la mostrando a
dificuldade da tarefa na qual se encontrava. No entanto esta “mentira
inconseqüente” e imediatamente revelada, desencadeia na jovem
senhora a possibilidade de reconhecer a sua própria mentira. Uma
vida de espera em torno do amante que jamais abandonará a esposa.
Uma vida cuja verdade é a própria mentira. Mentira eficaz, ilusão
verdadeira, irrealizado fundante de uma existência. Seria isso ainda
uma experiência ?
Terceiro problema, aparentemente
menor, ou muito repisado. O jovem de aspecto débil não parece
compreender as implicações e a natureza do problema que se lhe
oferece. O que é exatamente escolher quando a consciência do ato de
escolha não é clara ? Tema antigo que parece aterrisar no filme
apenas porque não poderia ficar de fora. Nem se sabe ao final qual é
a sua cena escolhida.
O quarto problema emerge em
torno do caráter trágico do que se está a examinar. Dois
personagens que não chegam ao ato de concluir. O empregado de
escritório parece não localizar nenhuma relevância em sua
existência. Casamento arranjado, vida monótona, sem aventuras,
interrupções, problemas ou filhos. Solidão a dois. Devoção
apática ao trabalho. Nada digno de reter para sempre. A eternidade
de uma mesma experiência já parecia ser a tônica de sua condição
terrena – por que reproduzi-la em uma eternidade em segunda
potência ? Este sim é um caso grave. Mobilizam-se fitas de vídeo.
O making-off de uma vida. Ano a ano estão fichados os
acontecimentos de sua vida. Um catálogo amorfo de mesmidades. O caso
intriga o entrevistador. Este acompanha o exame das fitas. Horas
extras de trabalho.
Forma-se então o círculo dos
marginais. Ambos sentados no banco do jardim. O super funcionário e
o jovem decidido pela não decisão. Ele não irá escolher. Isso lhe
parece a melhor forma de assumir a verdadeira responsabilidade sobre
uma vida. Aporia sartreana ? A existência: não condensá-la,
reparti-la, privilegiá-la. Nada perder, essa é a condição que ele
se impõe – é claro pela voz de um adolescente.
É neste ponto de conciliação
entre a indecisão indecidida de um e a indecisão decidida de outro
que o filme abre-se para a sua segunda parte. Nela surgirá uma
resposta interessantíssima sobre a natureza da experiência.
Ao ouvir o a aforisma do jovem o
funcionário deixa-se tocar por uma questão. Algo realmente o
interroga mudando seu eixo de preocupações antes centrado em qual
experiência eleger. Agora ele parece preocupar-se com as implicações
e responsabilidades da escolha para si e para os outros. Dirige-se
então ao seu “ajudante”. Pergunta-lhe se de fato há uma
responsabilidade assumida ao não escolher. Rompendo o protocolo o
entrevistador revela que aqueles que não escolhem são destinados ao
trabalho que ele mesmo realiza: ajudar outros a encontrar suas
experiências. Ele mesmo, anteriormente, já havia revelado ser um
ex-marinheiro, nascido em 1925, que lutara nas Filipinas e morrera em
Tóquio, em meio a uma indecisão amorosa. Assim como em vida ele não
pudera escolha após a morte. Em nenhum momento este funcionário
parece lamentar seu destino. Como os anjos de Asas do Desejo
de Wim Wenders, ele cumpre seu papel, da melhor forma possível, sem
se envolver, mas ao mesmo tempo em próxima melancolia. Ele, bem como
toda equipe, também não lamenta a indecisão dos dois. De fato os
funcionários desta alfândega de espíritos não julgam, apenas
trabalham.
Aqui percebe-se como o filme
constrói até este momento uma curiosa sincronia: o funcionário com
o ex-marinheiro; o jovem rebelde com a jovem rebelde. Cada qual
parece cuidar de casos complementares: amor para uma, sexo para o
outro; um exilado para cada um, um caso semi-problemático para
cada lado.
Ocorre que a jovem rebelde ama o
ex-marinheiro. Tal qual psicóloga incapaz de levar adiante os
problemas não resolvidos em si, nos seus pacientes, ela de fato
fracassa em levar o seu caso do jovem rebelde a uma decisão outra. A
decisão indecidida deste afeta o funcionário. A questão emergente
no funcionário afeta o ex-marinheiro. A afetação do ex-marinheiro
se reverte na condição para que o funcionário possa enfim
escolher: uma singela cena de outono no parque. Sua esposa e ele
conversam sobre uma promessa nunca realizada: ir ao cinema, uma vez
que seja. É o desencontro de uma vida. O mesmo banco da velhinha que
vê as folhas cair sob seus ombros. O mesmo banco no qual o jovem
colocara a questão da responsabilidade.
Mas a afetação revertida sobre
o funcionário, que lhe permite enfim decidir, tem um outro efeito.
Logo após a assistência das cenas gravadas, o ex-marinheiro chega
ao quarto e encontra uma carta no interior das fitas de vídeo
inúteis. A carta revela que o funcionário havia se casado com a
antiga pretendente do ex-marinheiro. Suas dificuldades de escolha
prendiam-se à impossibilidade de lidar com isso junto à seu
ajudante.
Esta revelação resignifica a
própria posição do ex-marinheiro. Se o funcionário não havia lhe
contado sobre a esposa é porque e, necessariamente porque, seu
envolvimento era significativo. Mas o transtorno causado sobre si
reverte, como a lógica da situação prescreve, sobre a sua jovem
enamorada colega de trabalho. Esta vasculha os arquivos à procura da
fita deixada pela ex-esposa do funcionário e ex-pretentente do
ex-marinheiro. Assiste-se então à incrível cena onde o
ex-marinheiro posta-se sentado, num banco de jardim, em um outono,
durante a segunda guerra mundial. Silenciosos. Ele tenso e
cabisbaixo, indeciso. Ela quase alegre, como na cena com seu marido.
Portanto ela escolhera o
ex-marinheiro, o que se mostra congruente com o vacuidade de seu
futuro casamento. O casamento era um ato de fidelidade a esta
experiência irrealizada do futuro possível de um amor. Ao
compreender isso o funcionário compreendeu a importância de si
mesmo, em uma história da qual não era o protagonista. Mas,
magicamente, ao se reconhecer parte de outra história ele teve
acesso à sua história, podendo, em decorrência, escolher.
Da mesma forma, ao constatar a
sua dupla importância, para ambos, o ex- marinheiro pode finalmente
escolher. Mas sua escolha decorreu do ato de amor de sua amiga, que
ao ajudá-lo perdeu-o para sempre.
Ele escolheu - é claro: a mesma
cena outonal, no mesmo banco, com a sua pretendente de meio século
atrás. A palavra que faltou naquele dia se tornou possível pela
escolha. Mas, adendo genial, no fim da cena a câmera se volta e
mostra a equipe de filmagem, que filma a si mesma, deixando assim a
memória de seu grupo de trabalho no além. A memória daquela que o
amava, mas também do ponto de onde foi possível se apropriar de uma
experiência a ponto de constituí-la como tal.
A espera por mais de meio
século toma parte necessária na única conclusão possível.
Conclusão possível pelo olhar do outro. Pelo reconhecimento da
exterioridade íntima e radical da experiência humana.
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor dos livros: “Lacan e a Clínica da Interpretação” (ed. Hacker, 1996), “O Cálculo Neurótico do Gozo” (ed. Escuta, 2002) e do recém-publicado “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).
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