terça-feira, 28 de maio de 2024

Pra não dizer que não falei de Bebê Rena

de Marcelo Veras


A série traz um labirinto em que os personagens se perdem entre o desejo e o gozo. 

O desejo aparece sempre de forma errática para Donny, ele quer ser um comediante, mas fracassa sempre, ele sente atração por Teri mas sempre faz as escolhas erradas, a obsessão de Martha igualmente o divide permanentemente, como pode desejá-la se sente tanta repulsa, qual a condição de sua fantasia?

Ou seja, suas escolhas nunca são livres pois estão amarradas em um gozo que ele não consegue abandonar. Por isso o abuso sexual pelo Diretor perdura por tanto tempo, ali há uma reiteração de um gozo traumático que vem de algo muito mais precoce.

Freud muito cedo cunhou a expressão Atentado sexual. Isso ocorre no caso Emma: “Com oito anos, ela entrou por duas vezes em uma loja para comprar guloseimas e o vendedor apalpa seus órgãos genitais. Apesar do primeiro incidente, ela retornou à loja e, em seguida não mais voltou. Em seguida ela se culpava por ter voltado na loja, como se ela tivesse querido provocar um novo atentado” (Freud em uma carta à Fliess de 25 de setembro de 1895). Esse trauma deixa marcas. No caso de Emma, anos mais tarde, ela desenvolve uma inibição, marca no corpo do sujeito do primeiro atentado. O que Freud salienta é que na clínica dos sujeitos abusados na infância, escutamos sempre uma acusação do sujeito a si mesmo, a situação do abuso não coloca o outro como culpado exclusivo.

Os fracassos de Donny são no fundo uma punição por uma situação em que ele se inclui como responsável. Todos que atuam nessa clínica sabem como é difícil conseguir que o paciente perdoe a si mesmo, pois a culpabilidade quase sempre é inconsciente. Não basta punir os abusadores, também é fundamental ultrapassar essa dimensão da vergonha. Finalmente, a condição erotomaníaca de Martha não faz dela a grande vilã da série, concluímos os capítulos inclusive com uma certa benevolência ou absolvição da personagem. Enfim, se fizessem uma continuação para a série eu daria o nome de A infância de Donny.

Marcelo Veras é psicanalista, psiquiatra e professor da Especialização em Teoria Psicanalítica da UFBA, da Especialização em Psicanálise e Saúde Mental da PUC Paraná e da Especialização em Psicanálise de Orientação Lacaniana da Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública.

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terça-feira, 7 de novembro de 2023

O que pode a vida diante do horror ? "Assassinos da Lua das Flores"

de Vera Iaconelli


Nos subterrâneos de Marte, a memória da Terra será nossa eterna tortura.



As imagens de extrema violência que nos chegam pelas mídias são tidas como atos perpetrados por sujeitos desumanos. Da mesma forma, a vítima, para ser eliminada sem dó nem piedade, precisa ser vista como um objeto, pois só assim ela é passível de ser destruída sem culpa. Desumanização da vítima e do algoz são condições da barbárie perpetradas pelos cidadãos do bem.

Em "Assassinos da Lua das Flores", Martin Scorsese retrata uma situação assombrosa e verídica. Pode um marido apaixonado conciliar o amor com a destruição da família da esposa e até da própria amada? Curiosos são os desígnios do desejo humano que o diretor octogenário tem a coragem de sustentar. Existem muitos "amores" e alguns talvez não merecessem receber esse nome, mas quem somos nós para bater esse martelo?

Molly, nativa da etnia osage, é amada por seu marido, como se ama um adorado animal doméstico, cuja perda seria dolorosíssima, mas não impensável. Nada que uma nova esposa não resolva. Obviamente não se trata de ela ser vista como um semelhante estrito senso, mas de ser um sujeito de segunda classe, por quem até se sente amor, mas que na hora do aperto pode ser eliminado. O aperto aqui é a ganância para herdar o dinheiro dos nativos osage, donos de terras encharcadas de petróleo. Daí os casamentos inter-raciais comuns na época e os assassinatos decorrentes, que o livro e o filme denunciam.

Ao vermos a vilania humanizada lembramos dos casos aparentemente incompreensíveis nos quais se destrói o ser amado sem dó nem piedade por motivo torpe. A mulher infiel, o filho gay, a filha trans, a amante grávida… são aqueles que se atreveram a contrariar o desejo dos que diziam amá-los.

Não é sem relevância que o personagem de Leonardo DiCaprio —um bom ator, mas que ainda se atrapalha nas caretas— tenha acabado de vir da 1ª Guerra Mundial. Como em toda guerra, inocentes são violados, mortos e mutilados em nome da patriotada fundamentalista bancada por governos que só querem saquear seus vizinhos sem nunca pisar no front. São eles que darão as mãos em acordos de paz escusos, depois de terem destruído gerações (recomendo assistir ao bem feito e polêmico "Golda"). Daí, para o personagem massacrar os osages —a outra "raça"— é só um palito.

A história da humanidade é por demais eloquente para que acreditemos que haveria um povo melhor do que outro. Somos todos capazes de amar e de cometer os piores crimes. O governo que não comete atrocidades —contra seu próprio povo ou contra os demais— que dê um passo à frente.

Testemunhamos, no entanto, a existência de povos mais sábios e de povos mais toscos quando se trata da sobrevivência coletiva e da visão de futuro. Nossa cultura, infelizmente, é aquela que caminha para a autodestruição com um sorriso maníaco nos lábios. Os subterrâneos de Marte nos espreitam e os que lá chegarem terão a lembrança da exuberância da Terra como eterna tortura.

O último livro de Paul Preciado, "Dysphoria Mundi: o som do mundo desmoronando" (Zahar, 2023), aposta numa insurreição pacífica e inescapável de todos os que se veem à margem por não corresponderem ao diminuto círculo dos considerados humanos. Segundo o autor, os últimos não serão os primeiros, porque é a própria lógica hierárquica que deve desmoronar.

O que nos mantém resistindo ao pior em nós? Está aí uma pergunta que só pode ser respondida um a um. No meu caso, trata-se de uma obstinação em lidar com o estranho em mim, que cria efeitos de interesse pelo humano.

Além disso, resisto porque prefiro a Terra.


Vera Iaconelli é diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.


pulicado originalmente na folha de são paulo- 7. nov. 2023 

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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Mães : paralelas que se encontram no infinito

de Ana Laura Prates

AVISO: CONTÉM SPOILER


"Há verdades que só podem ser reveladas se forem descobertas"

(Incêndios, Wajdi Mouawad)


O filme Mães paralelas de Pedro Almodóvar transmite, em uma temática contemporânea, a estrutura do trágico, em sua tripla função clássica: estética, catártica e educativa. Mas é, acima de tudo, um filme sobre a dimensão da verdade. Não “A” verdade com letra maiúscula buscada pela tradição filosófica e pela religião, mas aquela com a qual nós psicanalistas nos deparamos a partir da escuta do inconsciente: a verdade que não pode ser de todo dita, pois que sua estrutura mesma inclui o que as palavras não alcançam. Que a verdade seja da ordem de um meio dizer, entretanto, não autoriza de modo algum a sustentação da mentira ou o relativismo cínico da pós-verdade.

Mães paralelas coloca novamente em cena a questão fundamental da peça Antígona, de Sófocles: o direito à lapide e à memória contra a vontade do tirano. A leitura original que Lacan realiza de Antígona aponta para o crime de desumanização praticado por Creonte ao impedir o sepultamento de Polinices. Assim, é contra o apagamento do nome e da memória que ela se insurge. Não por acaso, no final do filme podemos ler um trecho da seguinte citação de Eduardo Galeano: “não há história muda”. Por mais que a queimem, por mais que a quebrem, por mais que a desmintam, a história humana se nega a calar a boca. O tempo que foi segue batendo, vivo dentro do tempo que é, mesmo que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de recordar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje é mais do que nunca necessário reivindicá-lo e colocá-lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita (…). Recordar o passado, para liberarmos de suas maldições, não para atar os pés do tempo presente, mas para que o presente caminhe livre de armadilhas”. Trata-se de uma passagem extremamente complexa, pois Galeano aponta para a lógica descoberta por Freud: o que não se recorda e não se elabora está fadado a se repetir. Mas, tal como um desdobramento da questão subjetiva, Galeano aponta para a dimensão política presente na memória.

E é exatamente nesse ponto nodal entre o que há de mais íntimo e o político – os interesses da cidade, ou seja, a lógica do coletivo – que Almodóvar situa sua Antígona, Janis – personagem principal magistralmente interpretada por Penélope Cruz – assim nomeada por sua mãe hippie em homenagem a Janis Joplin (aliás, a trilha sonora do filme é um capítulo à parte). A intimidade, e o que fazemos com ela, queiramos ou não, saibamos ou não, é política! A mãe de Janis teve uma overdose quando ela tinha apenas 5 anos, e nossa Antígona espanhola foi criada pela avó em um povoado no qual, todos sabiam, havia uma vala comum na qual estavam os corpos de seu bisavô e de outras pessoas torturadas e assassinadas pelo Estado durante a guerra civil espanhola. A outra protagonista é Ana (Milena Smit), adolescente filha de uma família da elite, que deveria ter sido tradicional, não fosse o fato de que sua mãe escolheu a carreira de atriz, deixando a filha com o pai.

A história dessas maternidades paralelas, de mulheres que, cada uma a seu modo, não aceitou o destino inexorável de uma realização absoluta enquanto mães, encontram-se agora por obra do acaso em uma maternidade onde suas filhas estão parindo. Ambas estão grávidas e solteiras. Janis escolhe levar uma gravidez não planejada, porém desejada, mesmo que para isso tenha rompido o romance com o pai do bebê. Ana, saberemos depois, engravidou enquanto vítima de um estupro coletivo não denunciado por sua família. Elas, que bem poderiam ser mãe e filha pela diferença de idade, selam seu destino ao se tornarem mães no mesmo dia e local. O artifício clássico utilizado pelo mago Almodóvar – trocar as crianças na maternidade e matar uma delas – é apenas um recurso mais uma vez emprestado do trágico, aliás recorrente em sua obra como por exemplo em “Tudo sobre minha mãe”. Ele sempre o utiliza, entretanto, para apontar outra coisa, menos explícita e visível. No cinema de Almodóvar, o importante se passa, assim como nos sonhos, na Outra cena. Neste caso, questionar a própria maternidade natural, elevando-a a guardiã da transmissão simbólica. Se o pai é o representante da lei simbólica, são as mães que a veiculam através de sua própria divisão. Não por acaso o pai da filha de Janis, Arturo (Israel Elejalde) é antropólogo forense e enquanto o drama subjetivo das duas mulheres está transcorrendo, sabemos que, no pano de fundo, ele está abrindo uma investigação para autorizar a abertura da vala comum do povoado, a partir dos testemunhos de suas moradoras. Também não é por acaso que, embora ofendida, Janis escute a observação de Arturo de que sua filha não tinha semelhança biológica com o casal parental, a não ser por um possível e desconhecido avô venezuelano.

Janis, contudo, não é tomada pela paixão da ignorância. Antes, ela quer saber a verdade que, uma vez revelada, entretanto, a faz hesitar. É belíssimo o curto tempo do filme durante o qual ela tenta sustentar a mentira, sumindo do mapa e produzindo em si própria uma angústia insuportável. Saber da morte súbita da filha biológica, criada até então por Ana como sua, produz o efeito de aproximação improvável e radical entre as duas mães. Janis precisa desesperadamente que Ana saia da alienação produzida por sua família “neutra” politicamente, demonstrando magistralmente a conivência da neutralidade com a tirania. Janis precisa que Ana saiba a verdade sobre seu país, seus desaparecidos, mas também a verdade crua do DNA – que como sabemos, não é suficiente para produzir uma filiação. E Ana aceita a formação política paralelamente às aulas de culinária e cultura musical – apontando a responsabilidade que temos com as novas gerações!

Que essa voz que age pelo direito fundamental aos rituais fúnebres, assim como Antígona, seja a de uma mulher não é um mero detalhe. Que a história do povoado seja guardada por mulheres, tampouco. O mago Almodóvar prova que o feminismo só se sustenta na política e que é incontornável que a política seja feminista, como aparece na camiseta de Janis, enquanto ensina Ana a fazer tortillas. Mas a memória inclui os homens que morreram por justiça ou que ainda lutam por ela, por meio da ciência (Arturo) ou da arte (Almodóvar). Os últimos 20 minutos do filme se passam no tempo das escavações e da descoberta das ossadas. Como não lembrar aqui do trabalho extraordinário de Eugênia Gonzaga – nossa Antígona brasileira! – com o cemitério clandestino de Perus em São Paulo, e o fato de que uma das primeiras providências do atual presidente do Brasil foi exonerá-la, dizendo que “quem gosta de osso é cachorro”.

Mas nós, que não reduzimos o cadáver a carniça somos convocados pelo mago do olhar quando finalmente ocorre o ritual fúnebre e o povoado pode despedir-se de seus mortos e honrar sua memória. Almodóvar nos inclui na cena e choramos juntos pelos nossos desaparecidos. Somos parte do povoado! Cecília, a menina, tem duas mães e o filho ou filha de Arturo que Janis agora traz no ventre é nomeado por Ana de “seu irmãozinho”. Se for homem, terá o nome do bisavô de Janis; se for mulher, se chamará Ana. Assim como em Incêndios de Wajdi Mouawad, e assim como descobrimos no divã, uma filiação só pode se concluir através de um desejo que não seja anônimo. É preciso, portanto, inscrever o nome na lápide e fazer a história das sucessivas gerações que chamamos humanidade. Só assim uma história de estupro, o trauma original que nos constitui, pode virar uma história de amor. Cecília tem duas mães, mas, mais importante do que isso, Cecília tem um povoado, é filha de um povo. É belíssima a cena em que a pequena menina olha as caveiras e, nelas, vê corpos, projetando a imagem da vida que outrora pulsava. Nossos mortos vivem, ainda, enquanto forem falados, lembrados e imaginados, e são essas vidas paralelas que se encontram no infinito que chamamos de eternidade. Daí a utopia de Maiakowski em seu poema “O amor”: “Para que doravante a família seja o pai; pelo menos o Universo, a mãe, pelo menos a Terra” (trad. Augusto de Campos e Boria Schnaiderman)

Em “Mães paralelas”, Almodóvar ultrapassa a força de sua artimanha estética, nos deixando de herança seu filme mais ético!

Ana Laura Prates – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (1996), doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (2006) e Pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

Fonte : https://jornalggn.com.br/editoria/cultura/maes-paralelas-que-se-encontram-no-infinito-por-ana-laura-prates/?fbclid=IwAR30kQR-DXAJYc87hIW0Vr8kn5DymRFG3pcyO-xXaXbCjDoQEvBKWJfR6QA

Postado com a autorização da autora.

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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

A FILHA PERDIDA - é impossível ter ou ser a boneca da mamãe

de Vera Iaconelli


A primeira cena do 
filme "A filha perdida" de Maggie Gyllenhaal (2021) mostra Olivia Colman no papel de Leda indo passar férias na costa grega, deleitando-se com a brisa marinha e com a paisagem. Nada que lembre uma mulher de meia-idade amargurada e solitária, como alguns sugeriram equivocadamente. Trata-se de uma professora universitária, cujas filhas adultas foram morar com o ex-marido, no Canadá. É nesse cenário idílico, no qual fica evidente o prazer que a protagonista extrai de suas leituras, do mar e do sol, que se dá o encontro disruptivo com outra família. Aquela que no livro homônimo de Elena Ferrante se parece desconfortavelmente com a família na qual Leda nasceu.

A protagonista passa a observar atentamente a relação de Nina e Elena, mãe e filha pequena, no meio daquela família ruidosa. Num dado momento, a criança perde sua boneca, que Leda esconde ao invés de devolver.

A reação inconsolável da menina revela que se trata daquilo que Winnicott chamou de objeto transicional (imortalizado no inseparável cobertor de Linus, amigo do Charlie Brown). Objeto que para a criança está profundamente relacionado com o processo de separação da mãe (ou cuidador principal) e que será uma extensão do corpo desse cuidador.

Ao se envolver na intensa relação entre mãe e filha, Leda se vê às voltas com o fato de que, quando suas filhas eram pequenas, ela desapareceu por três anos.

Quando Nina lhe pergunta como foi tê-las abandonado, a protagonista responde que foi maravilhoso, com uma expressão tão ambígua que já valeria o Oscar a Colman. Realizar o desejo pode ser desesperadamente maravilhoso, afinal, não se deve confundir desejo com vontade. A vontade é consciente e costuma responder aos imperativos sociais aos quais nos alienamos. Já o desejo se impõe, muitas vezes à revelia da sensatez. Podemos realizá-los ou não —aqui a ética é o nome do jogo—, e sofreremos as consequências seja qual for a escolha.

A mãe de Leda, assim como Nina, desistiu dos estudos, dependia do marido financeiramente e cuidava sozinha dos filhos. Leda desprezava a mãe, pela condição inferiorizada e pelo distanciamento afetivo. Ela paga o preço de ter escolhido deixar as filhas, diferentemente da própria mãe, que as ameaçava por ressentimento, mas nunca se foi.

O drama não se desenrola apenas do lado da relação com as filhas que Leda deixou mas, principalmente, da relação da protagonista com a impossibilidade de se separar da própria mãe de uma forma satisfatória.

A boneca, que representa o espaço entre mãe e filha, costuma ir desaparecendo aos poucos, deteriorando, sendo esquecida em um canto. Elena estava fazendo justamente isso ao perdê-la na praia.

A boneca que Leda ganhou da mãe quando criança, ao contrário, foi meticulosamente guardada para as filhas. Acabou destruída num rompante de ódio diante de sua maternidade frustrante.

O horror às escolhas da mãe e a esperança de fazer "tudo diferente com as filhas" impediu que ela descobrisse formas mais desejantes de lidar com sua maternidade.

Filme e livro exploram a maternidade em dois níveis. Naquilo que ela tem de inevitável: a impossibilidade de nos tornarmos bonecas idealizadas de nossas mães e tampouco de termos filhas-bonecas. Nesse ponto, as separações são tão dolorosas, quanto necessárias.

Em outro nível, os discursos atuais sobre a maternidade que continuam a ignorar anseios femininos —de equidade, sexo, carreira e liberdade— se mostram insustentáveis e tendem a respostas disruptivas.

Diante de tanto abandono, não são poucas as mães desejosas de "sair pra comprar cigarros".


Vera Iaconelli é diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Fonte: Folha de S.Paulo - 24.jan.2022 às 8h05 - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2022/01/a-filha-perdida.shtml

Postado com a autorização da autora.

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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

On Your Way - reflexões

 de Fátima Penha de Medeiros


O curta-metragem, com apenas seis minutos de duração, “On Your Way”, dirigido por Thomas Sali, trás a cena de duas pessoas caindo do céu, em queda livre, atraídas, inexoravelmente, pela gravidade da Terra.

Entendo que trata-se de uma metáfora sobre a condição do ser humano, enquanto ser mortal, e sua forma original de lidar com esse saber sobre si.

O filme trás a gravidade como representação da morte; a queda em si representando a trajetória da vida e suas lutas vãs ou seja, o caminho; os corpos caindo, somos nós, viventes caminhando em direção à morte.

Esse curta metragem, inteligente e impactante, me inspirou a escrever este texto reflexivo sobre a vida, o caminho e a morte.

Qual é o seu caminho? Existe uma definição possível que descreva o que é a vida? O que fizemos com a morte?

A cena do filme, onde o casal em queda livre, prende-se à pedaços da nave, que também está em queda livre, nos mostra como o ser humano agarra-se a objetos efêmeros na vã tentativa de iludir-se sobre a sua condição. Aparentemente, nascemos para a vida, mas o destino da vida é a morte e o caminho, entre um e outro, se resume, no final das contas, em passar o tempo criando subterfúgios, fórmulas capazes de nos enganar, sobre o real de que não há, sequer, um único caminho capaz de dar fuga ao encontro final…

Associei essa cena à tragédia de Édipo, onde ao tentar fugir de seu destino, marcado pelo oráculo, ele vai direto a seu encontro e o realiza, independente de sua vontade.

O ser humano luta contra essa ideia, contra a sua verdade, utilizando todos os recursos possíveis, dentro da sua condição de seres da linguagem, seres falantes, faltantes, criativos e imaginariamente curativos. Às vezes fantasiando a possibilidade de uma vida eterna, juventude eterna, beleza eterna, outras vezes apenas acreditando, esperando, lendo uma poesia, assistindo um filme, amando, bebendo e falando com um amigo, saboreando os pratos favoritos, curtindo um momento, olhando a lua, o mar, o sorriso de alguém ou uma lágrima, rindo ou chorando, sabotando seus sucessos ou deixando que eles aconteçam; vencendo, perdendo, pagando com dinheiro, pagando com o corpo, comprando, vendendo, tentando dominar o tempo, o feio e o belo.

Enfim, ter o falo, objeto da completude, que levaria, se fosse possível de ser conquistado, à morte do sujeito do desejo, mas com sorte, ele sempre escapa, contemplando apenas a eterna insatisfação do sujeito mortal. Tudo isso é o caminho, é a vida e também a morte. Por mais rotas de fuga que possamos criar, a morte é nosso destino inexorável e haveremos de cumpri-lo.

Então, o que é mesmo a vida? A vida é a morte? Sim! Mas não é só isso! Existe também um espaço de tempo, o tempo de uma queda livre do céu, um caminho, o seu caminho.

O significante “morte”, nos ensina Lacan, não existe no inconsciente, afinal, a morte é sempre do outro, só experimentamos a morte quando morremos e não voltamos para formular seu significado, junto ao nosso analista. Ainda bem! Assim, ninguém sabe o significado da morte, possivelmente, o que a torna um tabu. Tabu quase sempre assusta.

Poderia a morte, se não fosse expulsa da consciência, ser objeto de desejo às avessas, igual a tantos objetos que criamos/compramos no dia a dia e que custam tão caro, pois pagamos com nosso corpo, com nosso tempo de vida, o tempo da queda, a fim de seguirmos desejantes e usufruirmos do caminho? Quem sabe, percorrer o caminho sem fugir da morte e usá-la como combustível, um norte, na melhor forma, como dizia Lacan, em conformidade com o seu desejo!

Afirmo: isso não é fácil! A parte "em conformidade com o seu desejo" é a mais difícil, afinal somos sujeitos divididos.

O que você faz no seu tempo de queda? Se agarra a algo que também está em queda livre, como você? Existe algo entre o céu e a gravidade que não esteja em queda livre? O tempo é curto, mas é o que temos.

Fátima Penha de Medeiros é psicanalista.

filme completo



sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

"8 em Istambul" : será que quem cala consente?

de  Davi Flores

Assisti este fim de semana "8 em Istambul", série da Netflix bastante sugerida nestas últimas semanas. Das tantas leituras possíveis, vejo na série a presença recorrente de um estado muito confuso, inquietante e especialmente expressivo: o "calar" no lugar do "falar". Não são antônimos, calar-se não é o avesso de falar, como mostra a série. Ao menos não no sentido mecânico das palavras ditas versus retidas.  

A série apresenta estes estados nos quais alguém se cala na encruzilhada entre uma violência feroz e uma espera tolerante. Quem nunca passou por isso? Calar-se, nestes casos, culmina em sustentar a indecidibilidade: se a palavra não é dita, fica suspensa a decisão sobre quem é o autor do mal estar, quem é que provoca, quem é o motivo da dor. Sou eu, que abafo meu dizer, ou é o outro, que não é digno ou capaz de escutar minhas palavras guardadas? Quando me calo, poupo o outro de uma boa verdade ou me poupo de atestar minha própria ignorância? É neste silêncio incômodo que a série desenrola sua trama.

"8 em Istambul", uma série de televisão turca lançada pela Netflix no fim de 2020, apresenta um emaranhado de histórias cujas proximidades e tensões de amor e ódio geram um incessante suspense no espectador, que anseia pelo momento em que todos os personagens descobrirão o delicado fio que os liga. Leva-nos à ideia de que "o mundo é um ovo" e que este ovo pode se espatifar a qualquer momento com golpes de intolerância e angústia. Meryem, faxineira, muçulmana, com uma doçura ímpar, vai se consultar com Peri, uma psiquiatra e psicoterapeuta na qual o preconceito em relação à tradição muçulmana vive candente e calado. Peri, por sua vez, vai supervisionar seu atendimento clínico com Gülbin, uma supervisora capaz de acolher e tolerar o preconceito de Peri, mas que também cala o ódio resultante destes encontros.

De Meryem para Peri, de Peri para Gülbin, há um processo oculto de assimilação e digestão dos afetos entre as personagens, bastante conhecido pela psicologia clínica: afetos oriundos da paciente são processados na mente da terapeuta, afetos da terapeuta, por sua vez, são pensados pela mente da supervisora. Peri evita revelar seu ódio para Meryem, sua paciente; Gülbin evita falar do ódio que sente diante de Peri, sua supervisionanda. Em um tipo de cadeia de evitação do dito, dada sua alta carga de destrutividade, nasce uma rede de cuidados. Entre tantas nuances, a série mostra este caminho em que o ódio abafado por uma obediência ética, o tal ódio que deve ser "mantido num lugar à parte para ser utilizado numa futura interpretação" de acordo com o psicanalista D. W. Winnicott em "Ódio na Contratransferência" (1947), fica borrado entre a singularidade de um encontro, por um lado, e uma trama cultural e histórica de preconceitos intrusivos, por outro.

O nome da série traduzido para o inglês talvez caiba melhor: "Ethos", origem etimológica de ética, é um termo com múltiplos sentidos ao longo da filosofia, desde a Grécia Antiga, resguardando uma sutil diferença entre éthos e êthos. Éthos pode ser traduzido para as línguas latinas como os hábitos comuns transmitidos por uma via de ancestralidade, ao passo que êthos pode ser visto como o bom hábito cotidiano. Em termos gerais, ambos termos (com a sutil diferença de acentuação e extensas considerações a respeito de traduções e usos), surgem diante da ampla e antiga problemática acerca das tensões entre respeito à ancestralidade e a convivência cotidiana.

O resultado desta tensão é a série, cuja trama nos leva a encontrar os esboços de sentido por trás do estridente falar e do abafado calar. Ganha valor a palavra que percorre tortuosos caminhos para chegar até a boca. Por trás desta lógica de ditos e não-ditos correm trilhas de ódios e amores, de angústia gritada e cuidado silencioso.

Ultimamente discute-se muito o "falar" como um lugar de expressão e o silêncio como um lugar de omissão, algo sempre válido e pertinente: calar-se é comumente resultado de opressão, vergonha, medo, culpa. A série neste sentido contribui para o debate e o complexifica: cala-se também por ódio, cala-se também por cuidado, colocando-nos entre o vinho tinto de sangue do Cálice de Chico Buarque e o calar da personagem Peri, por exemplo, alguém que tem muito a dizer e não sabe como, nem se deve, e ainda mais angustiante, mal sabe de onde vem alguns de seus pensamentos.

Aqui calar-se é encontrar um tempo para escolher boas palavras, para sobreviver aos ruídos do agudo grito e do grave silêncio, do éthos e do êthos, de forças que não ambicionam surgir nem em gritos violentos, nem em um silêncio amortizante, mas na palavra justa.

A série mostra o quanto o ancestral grita internamente até que uma palavra corriqueira possa conceder-lhe o que lhe é de direito, e que de nada adianta brigar, exigir aos berros que algo fale, arrancar alguém de seu retido silêncio: os véus e o velado só caem quando e se houver um sentido para isto.

Davi Berciano Flores é psicólogo e psicanalista pela PUC-SP e pelo Instituto Sedes Sapientiae, mestrando em Psicologia Clínica pelo IP-USP, professor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) e membro do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC).

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sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Habitar peles esfuracadas: dimensões do feminino em A pele que habito¹

de  Pedro H. Mendonça 

É preciso, antes de tudo, começar com honestidade. Se o presente trabalho toma como objeto - de estudo - um filme (a saber, A pele que habito, Almodóvar), a dimensão pulsional de minha escritura o toma mais como alvo ou destino da pulsão que como objeto. Trata-se de um pedaço de contorno através do qual a pulsão em mim se dobra em torno do objeto que lhe/me interessa. E nenhum objeto poderia encarnar mais propriamente o pequeno a, perdido junto do Real, que a mulher - talvez, mais propriamente, o feminino. Trocando em miúdos, sirvo-me das mulheres que habitam as peles de Almodóvar para nomear, a partir de sua montagem enquanto personagens e de suas relações com os homens do filme, aquilo elas denunciam da mulher: ora submetida às lógicas fálicas, como mãe ou como castrada, ora as desafiando no vazio do significante fálico que estrutura o simbólico.

Vale, então, questionar: quem são as mulheres em A pele que habito? É um espetáculo psicanalítico que a primeira a aparecer no filme é a mãe – Marilia –, embora ainda não saibamos deste parentesco, qual um de seus filhos, o cirurgião Robert, não saberá até o fim. A ela, no entanto, retornarei mais adiante, no momento em que importe tratar do lugar em que os homens – ambos seus filhos – têm as mulheres. Além de Marilia, há Gal e Norma, mãe e filha um tanto indistintas por entre o enredo. São, as duas, o grande objeto e a grande sina de Robert. Se o são, porém, como veremos, é sobretudo porque são também seu grande enigma. Como pano de fundo às três gerações que rodeiam Robert, há Vera? Afirmo sob um ponto de interrogação não só por não sabermos o quanto de fato Vera se torna mulher, mas sobretudo porque é ela mesma esta incógnita – provavelmente para o próprio Robert – que se espalha pelo filme sem poder ser precisada exatamente no tempo e no espaço.

Antes de todas estas, no entanto, há outra insígnia (feminina?), outra literalidade psicanalítica atuante não sobre Vera, mas sobre Vicente. Entre todo o mistério com que a personagem de Vera é apresentada, algo começa a se amarrar pela primeira vez depois de 1h15 de filme: Vicente desperta na mesa de cirurgia (com um olhar quase apaixonado para Robert?) para descobrir que sofreu uma vaginoplastia, punição pelo suposto estupro de Norma. Aqui a angústia de castração sequer precisa do órgão feminino no corpo da outra para se atualizar: estão realizadas, no próprio corpo, “as ameaças que provocou contra si, ao brincar com este órgão” (FREUD, 1996 [1933], p. 125). Se tanto se pode dizer, numa perspectiva feminista, contra a inveja do pênis, Almodóvar, já em 2011, denuncia, o mais literalmente possível, o quanto nossa imaginarização do falo no pênis ainda é operante.

É bem verdade que por enquanto não se trata propriamente da questão da mulher – Vicente ainda não é Vera –, mas tão somente do estatuto da vagina tomada enquanto ausência de pênis frente à subjetivação fálica de um homem e ao corpo social que insiste em dar a um órgão imaginário o estatuto que deveria ser próprio de um significante. Que acontece então a Vicente a partir daí? Quando chega, se é que chega, a se tornar Vera?

De fato, um giro estonteante acontece a partir da vaginoplastia. Na primeira hora de filme, Vicente é um homem cativo, acorrentado num porão, punição do crime que supostamente cometeu – supostamente na medida em que o próprio não se lembra se efetuou o ato ou não, e a cena é cortada no momento preciso: se um estupro é o ato sexual que se segue a uma negativa, Almodóvar nos faz saltar direto da negativa para o momento em que o rapaz se retira. Da castração em diante, a figura cada vez mais indefinível Vicente/Vera passa a habitar um quarto, no andar superior, e não só ter satisfeitas suas necessidades básicas, mas mesmo suas demandas mais humanas: do café da manhã aos livros de yoga. É curioso que por um lado Robert leva a cabo seu ato castrador no próprio dia da morte de Norma, mas de outro lado é justamente a partir deste ato que destitui Vicente de seu posto de homem que lhe roubou a filha, para incluí-lo na série das mulheres-objeto a serem desejadas e cuidadas.

Qual é este novo posto? Sob o olhar de Robert, podemos dizer que se trata da mulher que se reveste de significado fálico – e isso menos por ser objeto de sua criação do que por ser significante de seu desejo. Trata-se desta que, dada a impossibilidade do pequeno a, encarna o significante fálico que permite desejar sobre esta falta – refiro-me aqui à feminilidade enquanto semblante (RODRIGUES, 2008). E temos outra vez uma ambiguidade: de um lado, Vera é criatura de Robert, sua própria obra, signo de seu poder; de outro, a partir deste mesmo lugar, ela se torna objeto último de seu desejo, sobrepondo-se na série Marilia/Gal/Norma, apontada por Dombronsky (2013) inclusive em suas semelhanças físicas. Mais do que se sobrepondo, talvez encerrando a série. Afinal, eis em carne sua idealização última. Pergunta Vera:

Ainda tem algo que você queira mudar? — quase ‘ainda falta?’

Não.

Então acabou?

Eis o grande problema: acabou. A criação está feita, o objeto está pronto. Como desejar se nada mais falta? Algo acontece: logo em seguida Vera se faz sedutora, num jogo histérico de produzir desejo, a princípio jogo frustrado. Frustrado? Ainda que por enquanto nada se efetue em ato, ela não deixa passar: “eu sei que você me observa”. Aliás, parece que sempre sabe quando é observada, mas talvez incapaz de distinguir por quem: aos 27 minutos de filme, responde a Zeca pela câmera, indagando-o com os olhos. Pensava ser Robert?

De fato, em meio às seduções, se produz, neste primeiro nível, uma complementariedade no jogo dos sexos: ele a toma como objeto de/para desejo, ela se faz histérica e produz desejo. Trata-se mesmo do jogo dos papéis de gênero com que se desenrola o amor moderno: ele desejante, ela desejada. Aliás, daí em diante, pouco a pouco ela passa a se fazer desejável: entre seduções, roupas, maquiagem (que só surge no final do filme!), focos da câmera num decote e jogos de idas e vindas, os signos sociais da mulher-objeto se fazem cada vez mais presentes, talvez alcançando seu ápice quando Vera sai às compras.


Corto. É preciso questionar: trata-se tão somente disso? Parece que até aqui, no modo como descrevo, incluo Vera-objeto como suprassumo da série Marilia/Gal/Norma. Acontece que já deixei meu prenúncio: há outro aspecto de Vera, aquele que não se insere na continuidade da cadeia de mulheres, mas que se faz seu próprio pano de fundo: Vera-enigma, este feminino insondável que se aguenta em suspenso por todo o filme, sobretudo na sua primeira metade. Há algo aqui que se soma à mulher-objeto e faz dela não só objeto, mas sina. Sina de Robert, anunciada por sua insabida mãe já ao fim do filme: “parece uma criança, sempre te aconteceu igual com as mulheres”.

Mas, para tocar esta sina, é preciso uma pequena digressão que percorra a maternidade de Marilia, seu jogo incestuoso com Zeca, seu segredo quanto a Robert, a perversão de Zeca-Tigre e a (perversão?) de Robert. Quando a bizarra figura de Zeca fantasiado de tigre aparece, o incesto se encarna já de início num quase-beijo. No entanto, muito pouco se nota de uma atitude incestuosa ativa por parte de Marilia. Muito pelo contrário: a mãe nos dá a impressão de que nada pode contra o Tigre, pelo amor ou pelo ódio, pelo incesto ou pela castração. Suas tentativas quase inertes de pará-lo, quando este se determina a ir atrás de Vera, são literalmente amarradas na perversão do filho e caladas por um guardanapo – que “antes te cabía entera”, assim como dois minutos depois, estuprando Vera, que pensava ser Gal, lhe diz (num paralelismo sintático no original espanhol) que “antes te volvía loca”: sobreposição de oralidade e genitalidade, jogando com tamanhos e encaixes?

Se o perverso mantém o incesto ou o incesto produz o perverso é impossível responder pelo próprio filme, a não ser pela hipótese de Marilia: “são de pais diferentes, mas ambos nasceram loucos. São minhas entranhas, a loucura está em minhas entranhas.” De fato, também a Robert, algo da perversão foi transmitido. Ainda assim, se vem das entranhas de Marilia, o segredo sobre sua maternidade parece ter lhe garantido algo, talvez justamente algo da ordem do segredo, do enigma. Se tomarmos a série das mulheres-objeto cronologicamente, Marilia é quem a inaugura, e o faz em segredo. Entre seu desejo e seus lutos, a mulher para Robert se tornou, ela mesma insígnia do enigma, o qual abre a série com Marilia e a encerra com Vera. Não à toa, quando Robert reclama que todas as mulheres que opera fazem Marilia se lembrar de alguém, ela já sabe: não esta, ela é diferente. Profecia?

De todo modo, é esta recorrente denúncia de Marilia que é preciso acentuar, pois se refere precisamente ao cerne do argumento do filme: Vera-enigma. Repetidamente, comentaristas e analistas afirmam Robert como perverso (LA PIEL, 2013; ESTRADA, 2012; CAZALLA, 2014). É certamente inegável que seu grande experimento e sua grande vingança movimentam um gozo absolutamente perverso, e Cazalla demonstra de modo bastante interessante a crítica à própria perversão do discurso científico e técnico tecida por Almodóvar. Mas ao escutar o Tigre, este que é plenamente filho de sua mãe, o contraste com seu meio-irmão faz gritar uma diferença implacável. O Tigre rouba, invade e estupra. O Tigre não tem Outro, ele é a própria Lei desfrutando de seus objetos. Também Robert faz sua própria lei, desafia a bioética, transforma Vicente em “brinquedo” (na descrição do próprio Vicente) e não hesita em matar o Tigre. Mas tomá-lo como perverso é deixar passar em completa ignorância o fato de que, se não hesita em matar o Tigre, hesita sim em matar Vera. Aliás, a certa altura – depois que a obra perversa está acabada e a sedução histérica entra em cena – ele está de novo submetido a seus jogos. É sua sina, é a profecia de Marilia. Logo no início, e sem qualquer explicação no enredo, o leitreiro² “maternidade” ganha enorme foco logo antes da palestra do Dr. Ledgard. De fato, parece que o segredo de sua maternidade criou sua sina, mas também sua salvação: garantiu este ponto de enigma, este mistério Real que a perversão contornará, mas não submeterá.

Assim é que os dois homens apresentam, no filme, duas articulações possíveis do feminino. De um lado, Vera-objeto ora é boneca sexual da perversão de Zeca, ora é, sim, desejante, mas sob o modo histérico de um se fazer mulher para ser desejada por Robert, selando a série Marilia/Gal/Norma/Vera-objeto. De outro lado, Vera-enigma denuncia algo do feminino que transcende o desejo fálico. Trata-se deste pano de fundo, que mal se sabe quem é ao longo de toda a primeira hora de filme, desta personagem ao mesmo tempo destituída de subjetividade, mas também articuladora de toda subjetivação pensável no enredo (para homens e mulheres!). É a mulher enquanto indefinido. Indefinição esta que alcança seu ápice não em Vicente submetido, nem em Vera de maquiagem e salto alto, mas no ponto em que não se pode nomear nenhum dos dois. 1h22: Vicente/Vera, não à toa vestida em sua segunda pele e sua máscara, foge de Robert pela casa, e não escapa. Interessa menos a perseguição em si do que esta figura impensável, que não pode mais ser Vicente, mas ainda não é Vera. Até mesmo sua voz é mais infantil do que masculina ou feminina. É a figura que invoca a indagação que Almodóvar nos impõe acerca de Vera desde o início: quem é ela?

Esta articulação do feminino enquanto enigma parece falar de algo que antecede a própria proposição freudiana de que, a princípio, “a menininha é um homenzinho” (FREUD, 1996 [1933], p. 118) que posteriormente terá de inverter sua relação com o falo para se fazer mulher-desejada já na ordem fálica. Não caberia aqui adentrar as minúcias de um feminino que escapa à própria inscrição do falo, tal como Lacan o desenvolve, mas vale sim notar que, se do lado masculino o desejo se inscreve ao modo fálico, do lado feminino ele sempre pode também se submeter a tal dinâmica, sob a égide da sedução histérica, mas algo restará. Irigaray (2017) nos ajuda com uma distinção fecunda: se a feminista pós-lacaniana busca um modo de falar deste resto como um falar-mulher, também não deixará que este falar-mulher se confunda com um falar histérico. Afinal, a histeria é já o feminino submetido ao fálico, é já Vera-enigma transformada em Vera-objeto, que não fala-mulher. Ao contrário, no falar histérico, “isso fala como sintomas de um ‘isso não pode falar a si nem sobre si’” (IRIGARAY, 2017, p. 156).

Este, sim, é o grande enigma de Robert – provavelmente de todos homens, e da maior parte das mulheres. Enigma que se atualiza e se refaz na série das mulheres-objeto Marilia/Gal/Norma, tal como o falo se faz significante de uma falta, se assenta sobre a perda do objeto a. Mas Vera está além do aprisionamento fálico do gozo, e até o fim deixa sua questão: o assassinato de Robert estabelece a perdição final do médico no feminino ou, ao contrário, a efetuação radical de sua sina e resposta de seu enigma? E, quanto a Vicente/Vera, de fato se tornou Vera? E, se sim, se tornou histérica ou se fez num constante devir-mulher indefinível? E a falicidade de Vera assassina é resto do masculino Vicente ou é apropriação feminina de uma femme fatale, que não seria nova em Almodóvar (Rodrigues, 2008)? O fim reedita este mistério insondável. Dombronsky (2013) vê uma androginia em Vicente já de início, que honestamente não pude encontrar, a não ser quando aparece debaixo da cama para dar fim em Marilia (e encerrar a série de mulheres-objeto). E toda a composição a partir daí será ambígua: ainda que andrógina, mata maquiada. Veste sua jaqueta de couro vermelho, sobre o vestido que desejara para Cristina – chega em casa e se apresenta no masculino: “Sou Vicente, fui raptado”.

E é certo que não se poderia encerrar nem o filme, nem este trabalho a não ser com interrogações:

Lacan dirá que a mulher rejeita uma parte essencial de sua feminilidade na mascarada, já que ela não estaria totalmente assujeitada à função fálica. Em última análise, poderíamos chamar de semblante aquilo que tem função de velar o nada. Nesse sentido, o véu é o primeiro semblante. Temos como testemunho as artes, a história, a antropologia, que revelam uma preocupação de velar, cobrir a mulher. Por que não se pode descobrir a mulher? Ela representa a castração, ou seja, a mulher é velada porque, ao se retirar o véu, encontra-se o nada. (Rodrigues, 2008, p. 95)

Pode ser que se trate realmente deste impasse. Seria mesmo possível libertar a mulher do fálico, seja o fálico da femme fatale, seja o fálico a que está submetida a sedução histérica? Aquilo, amulher (termo de Irigaray, 2017), que não se inscreve no fálico é, propriamente, algo? Ou arrancando qualquer referência falogocêntrica da mulher, encontraríamos simplesmente o nada?

Eis o questionamento que move minha escrita, e provavelmente ainda a moverá por algum tempo. Irigaray (2017) demonstra que definir a mulher como indizível ainda reproduz uma linguagem falogocêntrica (o neologismo é da autora), por mais que a liberte do sintoma histérico. Afinal, quem não pode falar d’amulher, não pode justamente porque fala a partir de uma referência fálica, à qual amulher sempre escapa. Será, então, possível inventar uma linguagem, um modo de simbolizar, que fale-mulher? Irigaray tenta, e nos deixa um vislumbre de que – para além do falo e para além do nada – algo pode nascer Quando nossos lábios se falam³.

¹ Trabalho apresentado como requisito semestral no curso Semiótica psicanalítica: clínica da culutra, COGEAE/PUC-SP.

² Logo na primeira escrita do trabalho, um inconsciente leiteiro se impôs sobre meu letreiro. Faço questão de não o corrigir.

³ Título do último texto publicado em Ce sexe qui n’en est pas unEste sexo que não é só um sexo, na pobre tradução para o português (IRIGARAY, 2017, p. 231-246). Quando nossos lábios se falam é, no fundo, sua grande abertura feminina e consumação de seu falar-mulher.

Referências bibliográficas

CAZALLA, Camilo. Comentario sobre La piel que habito. Conclusiones Analíticas, La Plata, v. 1, n. 1, p. 273-277, 02 set. 2014. Disponível em: http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/39392. Acesso em: 14 jun. 2020.

ESTRADA, Cinthya. La piel que habito y la cuestión de La mujer como enigma. 2012. Disponível em: http://www.nel-mexico.org/articulos/seccion/varite/edicion/Cine-y-Psicoanalisis-una-mirada-hacia-lo-imposible/514/La-piel-que-habito-y-la-cuestion-de-La-mujer-como-enigma. Acesso em: 14 jun. 2020.

FREUD, Sigmund (1933). A feminilidade. In: Obras completas (Edição Standard). Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXII.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

IRIGARAY, Luce. Este sexo que não só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo: Senac, 2017.

DOMBRONSKY, María Nélida. La piel que habito I (Almodóvar) – Cine y Psicoanálisis. (2013). (9m43s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=323&v=hShssbGTdAI&feature=emb_logo. Acesso em: 21 jun. 2020.

RODRIGUES, Ana Lucilia. Pedro Almodóvar e a feminilidade. São Paulo: Escuta, 2008.

Pedro H. Mendonça é graduado em Psicologia pela PUC-SP, especializando em Semiótica Psicanálitica pela COGEAE (PUC-SP), com formação teórico-prática em Acompanhamento Terapêutico. Colaborador em Instituto Dasein e membro da Oficina Clínica de Psicanálise.

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