A
série traz um labirinto em que os personagens se perdem entre o
desejo e o gozo.
O desejo aparece sempre de forma errática para
Donny, ele quer ser um comediante, mas fracassa sempre, ele sente
atração por Teri mas sempre faz as escolhas erradas, a obsessão de
Martha igualmente o divide permanentemente, como pode desejá-la se
sente tanta repulsa, qual a condição de sua fantasia?
Ou
seja, suas escolhas nunca são livres pois estão amarradas em um
gozo que ele não consegue abandonar. Por isso o abuso sexual pelo
Diretor perdura por tanto tempo, ali há uma reiteração de um gozo
traumático que vem de algo muito mais precoce.
Freud
muito cedo cunhou a expressão Atentado sexual. Isso ocorre no caso
Emma: “Com oito anos, ela entrou por duas vezes em uma loja para
comprar guloseimas e o vendedor apalpa seus órgãos genitais. Apesar
do primeiro incidente, ela retornou à loja e, em seguida não mais
voltou. Em seguida ela se culpava por ter voltado na loja, como se
ela tivesse querido provocar um novo atentado” (Freud em uma carta
à Fliess de 25 de setembro de 1895). Esse trauma deixa marcas. No
caso de Emma, anos mais tarde, ela desenvolve uma inibição, marca
no corpo do sujeito do primeiro atentado. O que Freud salienta é que
na clínica dos sujeitos abusados na infância, escutamos sempre uma
acusação do sujeito a si mesmo, a situação do abuso não coloca o
outro como culpado exclusivo.
Os
fracassos de Donny são no fundo uma punição por uma situação em
que ele se inclui como responsável. Todos que atuam nessa clínica
sabem como é difícil conseguir que o paciente perdoe a si mesmo,
pois a culpabilidade quase sempre é inconsciente. Não basta punir
os abusadores, também é fundamental ultrapassar essa dimensão da
vergonha. Finalmente, a condição erotomaníaca de Martha não faz
dela a grande vilã da série, concluímos os capítulos inclusive
com uma certa benevolência ou absolvição da personagem. Enfim, se
fizessem uma continuação para a série eu daria o nome de A
infância de Donny.
Marcelo
Veras é psicanalista, psiquiatra e professor da Especialização em
Teoria Psicanalítica da UFBA, da Especialização em Psicanálise e
Saúde Mental da PUC Paraná e da Especialização em Psicanálise de
Orientação Lacaniana da Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública.
Nos subterrâneos de Marte, a memória da Terra será nossa eterna tortura.
As
imagens de extrema violência
que nos chegam pelas mídias são tidas como atos perpetrados por
sujeitos desumanos. Da mesma forma, a vítima, para ser eliminada sem
dó nem piedade, precisa ser vista como um objeto, pois só assim ela
é passível de ser destruída sem culpa. Desumanização da vítima
e do algoz são condições da barbárie perpetradas pelos cidadãos
do bem.
Em
"Assassinos
da Lua das Flores",
Martin Scorsese retrata uma situação assombrosa e verídica. Pode
um marido apaixonado conciliar o amor com a destruição da família
da esposa e até da própria amada? Curiosos são os desígnios do
desejo humano que o diretor octogenário tem a coragem de sustentar.
Existem muitos "amores" e alguns talvez não merecessem
receber esse nome, mas quem somos nós para bater esse martelo?
Molly,
nativa da etnia osage, é amada por seu marido, como se ama um
adorado animal doméstico, cuja perda seria dolorosíssima, mas não
impensável. Nada que uma nova esposa não resolva. Obviamente não
se trata de ela ser vista como um semelhante estrito senso, mas de
ser um sujeito de segunda classe, por quem até se sente amor, mas
que na hora do aperto pode ser eliminado. O aperto aqui é a ganância
para herdar o dinheiro dos nativos osage, donos de terras encharcadas
de petróleo. Daí os casamentos inter-raciais comuns na época e os
assassinatos decorrentes, que o livro e o filme denunciam.
Ao
vermos a vilania humanizada lembramos dos casos aparentemente
incompreensíveis nos quais se destrói o ser amado sem dó nem
piedade por motivo torpe. A mulher infiel, o filho gay,
a filha trans, a amante grávida… são aqueles que se atreveram a
contrariar o desejo dos que diziam amá-los.
Não
é sem relevância que o personagem de Leonardo
DiCaprio —um
bom ator, mas que ainda se atrapalha nas caretas— tenha acabado de
vir da 1ª Guerra Mundial. Como em toda guerra, inocentes são
violados, mortos e mutilados em nome da patriotada fundamentalista
bancada por governos que só querem saquear seus vizinhos sem nunca
pisar no front. São eles que darão as mãos em acordos de paz
escusos, depois de terem destruído gerações (recomendo assistir ao
bem feito e polêmico "Golda"). Daí, para o personagem
massacrar os osages —a outra "raça"— é só um palito.
A
história da humanidade é por demais eloquente para que acreditemos
que haveria um povo melhor do que outro. Somos todos capazes de amar
e de cometer os piores crimes. O governo que não comete atrocidades
—contra seu próprio povo ou contra os demais— que dê um passo à
frente.
Testemunhamos,
no entanto, a existência de povos mais sábios e de povos mais
toscos quando se trata da sobrevivência coletiva e da visão de
futuro. Nossa cultura, infelizmente, é aquela que caminha para a
autodestruição com um sorriso maníaco nos lábios. Os subterrâneos
de Marte nos espreitam e os que lá chegarem terão a lembrança da
exuberância da Terra como eterna tortura.
O
último livro de Paul Preciado, "Dysphoria
Mundi: o som do mundo desmoronando"
(Zahar, 2023), aposta numa insurreição pacífica e inescapável de
todos os que se veem à margem por não corresponderem ao diminuto
círculo dos considerados humanos. Segundo o autor, os últimos não
serão os primeiros, porque é a própria lógica hierárquica que
deve desmoronar.
O
que nos mantém resistindo ao pior em nós? Está aí uma pergunta
que só pode ser respondida um a um. No meu caso, trata-se de uma
obstinação em lidar com o estranho em mim, que cria efeitos de
interesse pelo humano.
Além
disso, resisto porque prefiro a Terra.
Vera
Iaconellié
diretora
do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na
Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora
em psicologia pela USP.
pulicado originalmente na folha de são paulo- 7. nov. 2023
"Há
verdades que só podem ser reveladas se forem descobertas"
(Incêndios,
Wajdi Mouawad)
O
filme Mães paralelas de Pedro Almodóvar transmite, em uma temática
contemporânea, a estrutura do trágico, em sua tripla função
clássica: estética, catártica e educativa. Mas é, acima de tudo,
um filme sobre a dimensão da verdade. Não “A” verdade com letra
maiúscula buscada pela tradição filosófica e pela religião, mas
aquela com a qual nós psicanalistas nos deparamos a partir da escuta
do inconsciente: a verdade que não pode ser de todo dita, pois que
sua estrutura mesma inclui o que as palavras não alcançam. Que a
verdade seja da ordem de um meio dizer, entretanto, não autoriza de
modo algum a sustentação da mentira ou o relativismo cínico da
pós-verdade.
Mães
paralelas coloca novamente em cena a questão fundamental da peça
Antígona, de Sófocles: o direito à lapide e à memória contra a
vontade do tirano. A leitura original que Lacan realiza de Antígona
aponta para o crime de desumanização praticado por Creonte ao
impedir o sepultamento de Polinices. Assim, é contra o apagamento do
nome e da memória que ela se insurge. Não por acaso, no final do
filme podemos ler um trecho da seguinte citação de Eduardo Galeano:
“não há história muda”. Por mais que a queimem, por mais que a
quebrem, por mais que a desmintam, a história humana se nega a calar
a boca. O tempo que foi segue batendo, vivo dentro do tempo que é,
mesmo que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de
recordar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas
Nações Unidas, mas hoje é mais do que nunca necessário
reivindicá-lo e colocá-lo em prática: não para repetir o passado,
mas para evitar que se repita (…). Recordar o passado, para
liberarmos de suas maldições, não para atar os pés do tempo
presente, mas para que o presente caminhe livre de armadilhas”.
Trata-se de uma passagem extremamente complexa, pois Galeano aponta
para a lógica descoberta por Freud: o que não se recorda e não se
elabora está fadado a se repetir. Mas, tal como um desdobramento da
questão subjetiva, Galeano aponta para a dimensão política
presente na memória.
E
é exatamente nesse ponto nodal entre o que há de mais íntimo e o
político – os interesses da cidade, ou seja, a lógica do coletivo
– que Almodóvar situa sua Antígona, Janis – personagem
principal magistralmente interpretada por Penélope Cruz – assim
nomeada por sua mãe hippie em homenagem a Janis Joplin (aliás, a
trilha sonora do filme é um capítulo à parte). A intimidade, e o
que fazemos com ela, queiramos ou não, saibamos ou não, é
política! A mãe de Janis teve uma overdose quando ela tinha apenas
5 anos, e nossa Antígona espanhola foi criada pela avó em um
povoado no qual, todos sabiam, havia uma vala comum na qual estavam
os corpos de seu bisavô e de outras pessoas torturadas e
assassinadas pelo Estado durante a guerra civil espanhola. A outra
protagonista é Ana (Milena Smit), adolescente filha de uma família
da elite, que deveria ter sido tradicional, não fosse o fato de que
sua mãe escolheu a carreira de atriz, deixando a filha com o pai.
A
história dessas maternidades paralelas, de mulheres que, cada uma a
seu modo, não aceitou o destino inexorável de uma realização
absoluta enquanto mães, encontram-se agora por obra do acaso em uma
maternidade onde suas filhas estão parindo. Ambas estão grávidas e
solteiras. Janis escolhe levar uma gravidez não planejada, porém
desejada, mesmo que para isso tenha rompido o romance com o pai do
bebê. Ana, saberemos depois, engravidou enquanto vítima de um
estupro coletivo não denunciado por sua família. Elas, que bem
poderiam ser mãe e filha pela diferença de idade, selam seu destino
ao se tornarem mães no mesmo dia e local. O artifício clássico
utilizado pelo mago Almodóvar – trocar as crianças na maternidade
e matar uma delas – é apenas um recurso mais uma vez emprestado do
trágico, aliás recorrente em sua obra como por exemplo em “Tudo
sobre minha mãe”. Ele sempre o utiliza, entretanto, para apontar
outra coisa, menos explícita e visível. No cinema de Almodóvar, o
importante se passa, assim como nos sonhos, na Outra cena. Neste
caso, questionar a própria maternidade natural, elevando-a a guardiã
da transmissão simbólica. Se o pai é o representante da lei
simbólica, são as mães que a veiculam através de sua própria
divisão. Não por acaso o pai da filha de Janis, Arturo (Israel
Elejalde) é antropólogo forense e enquanto o drama subjetivo das
duas mulheres está transcorrendo, sabemos que, no pano de fundo, ele
está abrindo uma investigação para autorizar a abertura da vala
comum do povoado, a partir dos testemunhos de suas moradoras. Também
não é por acaso que, embora ofendida, Janis escute a observação
de Arturo de que sua filha não tinha semelhança biológica com o
casal parental, a não ser por um possível e desconhecido avô
venezuelano.
Janis,
contudo, não é tomada pela paixão da ignorância. Antes, ela quer
saber a verdade que, uma vez revelada, entretanto, a faz hesitar. É
belíssimo o curto tempo do filme durante o qual ela tenta sustentar
a mentira, sumindo do mapa e produzindo em si própria uma angústia
insuportável. Saber da morte súbita da filha biológica, criada até
então por Ana como sua, produz o efeito de aproximação improvável
e radical entre as duas mães. Janis precisa desesperadamente que Ana
saia da alienação produzida por sua família “neutra”
politicamente, demonstrando magistralmente a conivência da
neutralidade com a tirania. Janis precisa que Ana saiba a verdade
sobre seu país, seus desaparecidos, mas também a verdade crua do
DNA – que como sabemos, não é suficiente para produzir uma
filiação. E Ana aceita a formação política paralelamente às
aulas de culinária e cultura musical – apontando a
responsabilidade que temos com as novas gerações!
Que
essa voz que age pelo direito fundamental aos rituais fúnebres,
assim como Antígona, seja a de uma mulher não é um mero detalhe.
Que a história do povoado seja guardada por mulheres, tampouco. O
mago Almodóvar prova que o feminismo só se sustenta na política e
que é incontornável que a política seja feminista, como aparece na
camiseta de Janis, enquanto ensina Ana a fazer tortillas. Mas a
memória inclui os homens que morreram por justiça ou que ainda
lutam por ela, por meio da ciência (Arturo) ou da arte (Almodóvar).
Os últimos 20 minutos do filme se passam no tempo das escavações e
da descoberta das ossadas. Como não lembrar aqui do trabalho
extraordinário de Eugênia Gonzaga – nossa Antígona brasileira! –
com o cemitério clandestino de Perus em São Paulo, e o fato de que
uma das primeiras providências do atual presidente do Brasil foi
exonerá-la, dizendo que “quem gosta de osso é cachorro”.
Mas
nós, que não reduzimos o cadáver a carniça somos convocados pelo
mago do olhar quando finalmente ocorre o ritual fúnebre e o povoado
pode despedir-se de seus mortos e honrar sua memória. Almodóvar nos
inclui na cena e choramos juntos pelos nossos desaparecidos. Somos
parte do povoado! Cecília, a menina, tem duas mães e o filho ou
filha de Arturo que Janis agora traz no ventre é nomeado por Ana de
“seu irmãozinho”. Se for homem, terá o nome do bisavô de
Janis; se for mulher, se chamará Ana. Assim como em Incêndios de
Wajdi Mouawad, e assim como descobrimos no divã, uma filiação só
pode se concluir através de um desejo que não seja anônimo. É
preciso, portanto, inscrever o nome na lápide e fazer a história
das sucessivas gerações que chamamos humanidade. Só assim uma
história de estupro, o trauma original que nos constitui, pode virar
uma história de amor. Cecília tem duas mães, mas, mais importante
do que isso, Cecília tem um povoado, é filha de um povo. É
belíssima a cena em que a pequena menina olha as caveiras e, nelas,
vê corpos, projetando a imagem da vida que outrora pulsava. Nossos
mortos vivem, ainda, enquanto forem falados, lembrados e imaginados,
e são essas vidas paralelas que se encontram no infinito que
chamamos de eternidade. Daí a utopia de Maiakowski em seu poema “O
amor”: “Para que doravante a família seja o pai; pelo menos o
Universo, a mãe, pelo menos a Terra” (trad. Augusto de Campos e
Boria Schnaiderman)
Em
“Mães paralelas”, Almodóvar ultrapassa a força de sua
artimanha estética, nos deixando de herança seu filme mais ético!
Ana
Laura Prates – Possui graduação em Psicologia pela Universidade
de São Paulo (1989), mestrado em Psicologia Clínica pela
Universidade de São Paulo (1996), doutorado em Psicologia Clínica
pela Universidade de São Paulo (2006) e Pós-doutorado em
Psicanálise pela UERJ (2012).
A
primeira cena do filme
"A filha perdida" de
Maggie Gyllenhaal (2021) mostra Olivia Colman no papel de Leda indo
passar férias na costa grega, deleitando-se com a brisa marinha e
com a paisagem. Nada que lembre uma mulher de meia-idade amargurada e
solitária, como alguns sugeriram equivocadamente. Trata-se de uma
professora universitária, cujas filhas adultas foram morar com o
ex-marido, no Canadá. É nesse cenário idílico, no qual fica
evidente o prazer que a protagonista extrai de suas leituras, do mar
e do sol, que se dá o encontro disruptivo com outra família. Aquela
que no livro
homônimo de Elena Ferrante se
parece desconfortavelmente com a família na qual Leda nasceu.
A
protagonista passa a observar atentamente a relação de Nina e
Elena, mãe e filha pequena, no meio daquela família ruidosa. Num
dado momento, a criança perde sua boneca, que Leda esconde ao invés
de devolver.
A
reação inconsolável da menina revela que se trata daquilo que
Winnicott chamou de objeto transicional (imortalizado no inseparável
cobertor de Linus, amigo do Charlie Brown). Objeto que para a criança
está profundamente relacionado com o processo de separação da mãe
(ou cuidador principal) e que será uma extensão do corpo desse
cuidador.
Ao
se envolver na intensa relação entre mãe e filha, Leda se vê às
voltas com o fato de que, quando suas filhas eram pequenas, ela
desapareceu por três anos.
Quando
Nina lhe pergunta como foi tê-las abandonado, a protagonista
responde que foi maravilhoso, com uma expressão tão ambígua que já
valeria o Oscar a Colman. Realizar o desejo pode ser desesperadamente
maravilhoso, afinal, não se deve confundir desejo com vontade. A
vontade é consciente e costuma responder aos imperativos sociais aos
quais nos alienamos. Já o desejo se impõe, muitas vezes à revelia
da sensatez. Podemos realizá-los ou não —aqui a ética é o nome
do jogo—, e sofreremos as consequências seja qual for a escolha.
A
mãe de Leda, assim como Nina, desistiu dos estudos, dependia do
marido financeiramente e cuidava sozinha dos filhos. Leda desprezava
a mãe, pela condição inferiorizada e pelo distanciamento afetivo.
Ela paga o preço de ter escolhido deixar as filhas, diferentemente
da própria mãe, que as ameaçava por ressentimento, mas nunca se
foi.
O
drama não se desenrola apenas do lado da relação com as filhas que
Leda deixou mas, principalmente, da relação da protagonista com a
impossibilidade de se separar da própria mãe de uma forma
satisfatória.
A
boneca, que representa o espaço entre mãe e filha, costuma ir
desaparecendo aos poucos, deteriorando, sendo esquecida em um canto.
Elena estava fazendo justamente isso ao perdê-la na praia.
A
boneca que Leda ganhou da mãe quando criança, ao contrário, foi
meticulosamente guardada para as filhas. Acabou destruída num
rompante de ódio diante de sua maternidade frustrante.
O
horror às escolhas da mãe e a esperança de fazer "tudo
diferente com as filhas" impediu que ela descobrisse formas mais
desejantes de lidar com sua maternidade.
Filme
e livro exploram a maternidade em dois níveis. Naquilo que ela tem
de inevitável: a impossibilidade de nos tornarmos bonecas
idealizadas de nossas mães e tampouco de termos filhas-bonecas.
Nesse ponto, as separações são tão dolorosas, quanto necessárias.
Em
outro nível, os discursos atuais sobre a maternidade que continuam a
ignorar anseios femininos —de equidade, sexo, carreira e liberdade—
se mostram insustentáveis e tendem a respostas disruptivas.
Diante
de tanto abandono, não são poucas as mães desejosas de "sair
pra comprar cigarros".
Vera
Iaconellié
diretora
do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na
Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora
em psicologia pela USP.
Fonte:
Folha de S.Paulo - 24.jan.2022
às 8h05 - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2022/01/a-filha-perdida.shtml
O
curta-metragem, com apenas seis minutos de duração, “On Your
Way”, dirigido por Thomas Sali, trás a cena
de duas pessoas caindo do céu, em queda livre, atraídas,
inexoravelmente, pela gravidade da Terra.
Entendo
que trata-se de uma metáfora sobre a condição do ser humano,
enquanto ser mortal, e sua forma original de lidar com esse saber
sobre si.
O
filme trás a gravidade como representação da morte; a queda em si
representando a trajetória da vida e suas lutas vãs ou seja, o
caminho; os corpos caindo, somos nós, viventes caminhando em direção
à morte.
Esse
curta metragem, inteligente e impactante, me inspirou a escrever este
texto reflexivo sobre a vida, o caminho e a morte.
Qual
é o seu caminho? Existe uma definição possível que descreva o que
é a vida? O que fizemos com a morte?
A
cena do filme, onde o casal em queda livre, prende-se à pedaços da
nave, que também está em queda livre, nos mostra como o ser humano
agarra-se a objetos efêmeros na vã tentativa de iludir-se sobre a
sua condição. Aparentemente, nascemos para a vida, mas o destino da
vida é a morte e o caminho, entre um e outro, se resume, no final
das contas, em passar o tempo criando subterfúgios, fórmulas
capazes de nos enganar, sobre o real de que não há, sequer, um
único caminho capaz de dar fuga ao encontro final…
Associei
essa cena à tragédia de Édipo, onde ao tentar fugir de seu
destino, marcado pelo oráculo, ele vai direto a seu encontro e o
realiza, independente de sua vontade.
O
ser humano luta contra essa ideia, contra a sua verdade, utilizando
todos os recursos possíveis, dentro da sua condição de seres da
linguagem, seres falantes, faltantes, criativos e imaginariamente
curativos. Às vezes fantasiando a possibilidade de uma vida eterna,
juventude eterna, beleza eterna, outras vezes apenas acreditando,
esperando, lendo uma poesia, assistindo um filme, amando, bebendo e
falando com um amigo, saboreando os pratos favoritos, curtindo um
momento, olhando a lua, o mar, o sorriso de alguém ou uma lágrima,
rindo ou chorando, sabotando seus sucessos ou deixando que eles
aconteçam; vencendo, perdendo, pagando com dinheiro, pagando com o
corpo, comprando, vendendo, tentando dominar o tempo, o feio e o
belo.
Enfim,
ter o falo, objeto da completude, que levaria, se fosse possível de
ser conquistado, à morte do sujeito do desejo, mas com sorte, ele
sempre escapa, contemplando apenas a eterna insatisfação do sujeito
mortal. Tudo isso é o caminho, é a vida e também a morte. Por mais
rotas de fuga que possamos criar, a morte é nosso destino inexorável
e haveremos de cumpri-lo.
Então,
o que é mesmo a vida? A vida é a morte? Sim! Mas não é só isso!
Existe também um espaço de tempo, o tempo de uma queda livre do
céu, um caminho, o seu caminho.
O
significante “morte”, nos ensina Lacan, não existe no
inconsciente, afinal, a morte é sempre do outro, só experimentamos
a morte quando morremos e não voltamos para formular seu
significado, junto ao nosso analista. Ainda bem! Assim, ninguém sabe
o significado da morte, possivelmente, o que a torna um tabu. Tabu
quase sempre assusta.
Poderia
a morte, se não fosse expulsa da consciência, ser objeto de desejo
às avessas, igual a tantos objetos que criamos/compramos no dia a
dia e que custam tão caro, pois pagamos com nosso corpo, com nosso
tempo de vida, o tempo da queda, a fim de seguirmos desejantes e
usufruirmos do caminho? Quem sabe, percorrer o caminho sem fugir da
morte e usá-la como combustível, um norte, na melhor forma, como
dizia Lacan, em conformidade com o seu desejo!
Afirmo:
isso não é fácil! A parte "em conformidade com o seu desejo"
é a mais difícil, afinal somos sujeitos divididos.
O
que você faz no seu tempo de queda? Se agarra a algo que também
está em queda livre, como você? Existe algo entre o céu e a
gravidade que não esteja em queda livre? O tempo é curto, mas é o
que temos.
Assisti
este fim de semana "8 em Istambul", série da Netflix
bastante sugerida nestas últimas semanas. Das tantas leituras
possíveis, vejo na série a presença recorrente de um estado muito
confuso, inquietante e especialmente expressivo: o "calar"
no lugar do "falar". Não são antônimos, calar-se não é
o avesso de falar, como mostra a série. Ao menos não no sentido
mecânico das palavras ditas versus retidas.
A
série apresenta estes estados nos quais alguém se cala na
encruzilhada entre uma violência feroz e uma espera tolerante. Quem
nunca passou por isso? Calar-se, nestes casos, culmina em sustentar a
indecidibilidade: se a palavra não é dita, fica suspensa a decisão
sobre quem é o autor do mal estar, quem é que provoca, quem é o
motivo da dor. Sou eu, que abafo meu dizer, ou é o outro, que não é
digno ou capaz de escutar minhas palavras guardadas? Quando me calo,
poupo o outro de uma boa verdade ou me poupo de atestar minha própria
ignorância? É neste silêncio incômodo que a série desenrola sua
trama.
"8
em Istambul", uma série de televisão turca lançada pela
Netflix no fim de 2020, apresenta um emaranhado de histórias cujas
proximidades e tensões de amor e ódio geram um incessante suspense
no espectador, que anseia pelo momento em que todos os personagens
descobrirão o delicado fio que os liga. Leva-nos à ideia de que "o
mundo é um ovo" e que este ovo pode se espatifar a qualquer
momento com golpes de intolerância e angústia. Meryem, faxineira,
muçulmana, com uma doçura ímpar, vai se consultar com Peri, uma
psiquiatra e psicoterapeuta na qual o preconceito em relação à
tradição muçulmana vive candente e calado. Peri, por sua vez, vai
supervisionar seu atendimento clínico com Gülbin, uma supervisora
capaz de acolher e tolerar o preconceito de Peri, mas que também
cala o ódio resultante destes encontros.
De
Meryem para Peri, de Peri para Gülbin, há um processo oculto de
assimilação e digestão dos afetos entre as personagens, bastante
conhecido pela psicologia clínica: afetos oriundos da paciente são
processados na mente da terapeuta, afetos da terapeuta, por sua vez,
são pensados pela mente da supervisora. Peri evita revelar seu ódio
para Meryem, sua paciente; Gülbin evita falar do ódio que sente
diante de Peri, sua supervisionanda. Em um tipo de cadeia de evitação
do dito, dada sua alta carga de destrutividade, nasce uma rede de
cuidados. Entre tantas nuances, a série mostra este caminho em que o
ódio abafado por uma obediência ética, o tal ódio que deve ser
"mantido num lugar à parte para ser utilizado numa futura
interpretação" de acordo com o psicanalista D. W. Winnicott em
"Ódio na Contratransferência" (1947), fica borrado entre
a singularidade de um encontro, por um lado, e uma trama cultural e
histórica de preconceitos intrusivos, por outro.
O
nome da série traduzido para o inglês talvez caiba melhor: "Ethos",
origem etimológica de ética, é um termo com múltiplos
sentidos ao longo da filosofia, desde a Grécia Antiga, resguardando
uma sutil diferença entre éthos e êthos. Éthos pode ser traduzido
para as línguas latinas como os hábitos comuns transmitidos por uma
via de ancestralidade, ao passo que êthos pode ser visto como o bom
hábito cotidiano. Em termos gerais, ambos termos (com a sutil
diferença de acentuação e extensas considerações a respeito de
traduções e usos), surgem diante da ampla e antiga problemática
acerca das tensões entre respeito à ancestralidade e a convivência
cotidiana.
O
resultado desta tensão é a série, cuja trama nos leva a encontrar
os esboços de sentido por trás do estridente falar e do abafado
calar. Ganha valor a palavra que percorre tortuosos caminhos para
chegar até a boca. Por trás desta lógica de ditos e não-ditos
correm trilhas de ódios e amores, de angústia gritada e cuidado
silencioso.
Ultimamente
discute-se muito o "falar" como um lugar de expressão e o
silêncio como um lugar de omissão, algo sempre válido e
pertinente: calar-se é comumente resultado de opressão, vergonha,
medo, culpa. A série neste sentido contribui para o debate e o
complexifica: cala-se também por ódio, cala-se também por cuidado,
colocando-nos entre o vinho tinto de sangue do Cálice de Chico
Buarque e o calar da personagem Peri, por exemplo, alguém que tem
muito a dizer e não sabe como, nem se deve, e ainda mais
angustiante, mal sabe de onde vem alguns de seus pensamentos.
Aqui
calar-se é encontrar um tempo para escolher boas palavras, para
sobreviver aos ruídos do agudo grito e do grave silêncio, do éthos
e do êthos, de forças que não ambicionam surgir nem em gritos
violentos, nem em um silêncio amortizante, mas na palavra justa.
A
série mostra o quanto o ancestral grita internamente até que uma
palavra corriqueira possa conceder-lhe o que lhe é de direito,
e que de nada adianta brigar, exigir aos berros que algo fale,
arrancar alguém de seu retido silêncio: os véus e o velado só
caem quando e se houver um sentido para isto.
Davi Berciano Flores é psicólogo e psicanalista pela PUC-SP e pelo Instituto Sedes Sapientiae, mestrando em Psicologia Clínica pelo IP-USP, professor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) e membro do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC).
É
preciso, antes de tudo, começar com honestidade. Se o presente
trabalho toma como objeto - de estudo - um filme (a saber, A
pele que habito,
Almodóvar), a dimensão pulsional de minha escritura o toma mais
como alvo ou destino da pulsão que como objeto. Trata-se de um
pedaço de contorno através do qual a pulsão em mim se dobra em
torno do objeto que lhe/me interessa. E nenhum objeto poderia
encarnar mais propriamente o pequeno a,
perdido junto do Real, que a mulher - talvez, mais propriamente, o
feminino. Trocando em miúdos, sirvo-me das mulheres que habitam as
peles de Almodóvar para nomear, a partir de sua montagem enquanto
personagens e de suas relações com os homens do filme, aquilo elas
denunciam da mulher: ora submetida às lógicas fálicas, como mãe
ou como castrada, ora as desafiando no vazio do significante fálico
que estrutura o simbólico.
Vale,
então, questionar: quem são as mulheres em A
pele que habito? É um
espetáculo psicanalítico que a primeira a aparecer no filme é a
mãe – Marilia –, embora ainda não saibamos deste parentesco,
qual um de seus filhos, o cirurgião Robert, não saberá até o fim.
A ela, no entanto, retornarei mais adiante, no momento em que importe
tratar do lugar em que os homens – ambos seus filhos – têm as
mulheres. Além de Marilia, há Gal e Norma, mãe e filha um tanto
indistintas por entre o enredo. São, as duas, o grande objeto e a
grande sina de Robert. Se o são, porém, como veremos, é sobretudo
porque são também seu grande enigma. Como pano de fundo às três
gerações que rodeiam Robert, há Vera? Afirmo sob um ponto de
interrogação não só por não sabermos o quanto de fato Vera se
torna mulher, mas sobretudo porque é ela mesma esta incógnita –
provavelmente para o próprio Robert – que se espalha pelo filme
sem poder ser precisada exatamente no tempo e no espaço.
Antes
de todas estas, no entanto, há outra insígnia (feminina?), outra
literalidade psicanalítica atuante não sobre Vera, mas sobre
Vicente. Entre todo o mistério com que a personagem de Vera é
apresentada, algo começa a se amarrar pela primeira vez depois de
1h15 de filme: Vicente desperta na mesa de cirurgia (com um olhar
quase apaixonado para Robert?) para descobrir que sofreu uma
vaginoplastia, punição pelo suposto estupro de Norma. Aqui a
angústia de castração sequer precisa do órgão feminino no corpo
da outra para se atualizar: estão realizadas, no próprio corpo, “as
ameaças que provocou contra si, ao brincar com este órgão”
(FREUD, 1996 [1933], p. 125). Se tanto se pode dizer, numa
perspectiva feminista, contra a inveja do pênis, Almodóvar, já em
2011, denuncia, o mais literalmente possível, o quanto nossa
imaginarização do falo no pênis ainda é operante.
É
bem verdade que por enquanto não se trata propriamente da questão
da mulher – Vicente ainda não é Vera –, mas tão somente do
estatuto da vagina tomada enquanto ausência de pênis frente à
subjetivação fálica de um homem e ao corpo social que insiste em
dar a um órgão imaginário o estatuto que deveria ser próprio de
um significante. Que acontece então a Vicente a partir daí? Quando
chega, se é que chega, a se tornar Vera?
De
fato, um giro estonteante acontece a partir da vaginoplastia. Na
primeira hora de filme, Vicente é um homem cativo, acorrentado num
porão, punição do crime que supostamente cometeu – supostamente
na medida em que o próprio não se lembra se efetuou o ato ou não,
e a cena é cortada no momento preciso: se um estupro é o ato sexual
que se segue a uma negativa, Almodóvar nos faz saltar direto da
negativa para o momento em que o rapaz se retira. Da castração em
diante, a figura cada vez mais indefinível Vicente/Vera passa a
habitar um quarto, no andar superior, e não só ter satisfeitas suas
necessidades básicas, mas mesmo suas demandas mais humanas: do café
da manhã aos livros de yoga. É
curioso que por um lado Robert leva a cabo seu ato castrador no
próprio dia da morte de Norma, mas de outro lado é justamente a
partir deste ato que destitui Vicente de seu posto de homem que lhe
roubou a filha, para incluí-lo na série das mulheres-objeto a serem
desejadas e cuidadas.
Qual
é este novo posto? Sob o olhar de Robert, podemos dizer que se trata
da mulher que se reveste de significado fálico – e isso menos por
ser objeto de sua criação do que por ser significante de seu
desejo. Trata-se desta que, dada a impossibilidade do pequeno a,
encarna o significante fálico que permite desejar sobre esta falta –
refiro-me aqui à feminilidade enquanto semblante (RODRIGUES, 2008).
E temos outra vez uma ambiguidade: de um lado, Vera é criatura de
Robert, sua própria obra, signo de seu poder; de outro, a partir
deste mesmo lugar, ela se torna objeto último de seu desejo,
sobrepondo-se na série Marilia/Gal/Norma, apontada por Dombronsky
(2013) inclusive em suas semelhanças físicas. Mais do que se
sobrepondo, talvez encerrando a série. Afinal, eis em carne sua
idealização última. Pergunta Vera:
— Ainda
tem algo que você queira mudar? — quase ‘ainda falta?’
— Não.
— Então
acabou?
Eis
o grande problema: acabou. A criação está feita, o objeto está
pronto. Como desejar se nada mais falta? Algo acontece: logo em
seguida Vera se faz sedutora, num jogo histérico de produzir desejo,
a princípio jogo frustrado. Frustrado? Ainda que por enquanto nada
se efetue em ato, ela não deixa passar: “eu sei que você me
observa”. Aliás, parece que sempre sabe quando é observada, mas
talvez incapaz de distinguir por quem: aos 27 minutos de filme,
responde a Zeca pela câmera, indagando-o com os olhos. Pensava ser
Robert?
De
fato, em meio às seduções, se produz, neste primeiro nível, uma
complementariedade no jogo dos sexos: ele a toma como objeto de/para
desejo, ela se faz histérica e produz desejo. Trata-se mesmo do jogo
dos papéis de gênero com que se desenrola o amor moderno: ele
desejante, ela desejada. Aliás, daí em diante, pouco a pouco ela
passa a se fazer desejável: entre seduções, roupas, maquiagem (que
só surge no final do filme!), focos da câmera num decote e jogos de
idas e vindas, os signos sociais da mulher-objeto se fazem cada vez
mais presentes, talvez alcançando seu ápice quando Vera sai às
compras.
Corto.
É preciso questionar: trata-se tão somente disso? Parece que até
aqui, no modo como descrevo, incluo Vera-objeto como suprassumo da
série Marilia/Gal/Norma. Acontece que já deixei meu prenúncio: há
outro aspecto de Vera, aquele que não se insere na continuidade da
cadeia de mulheres, mas que se faz seu próprio pano de fundo:
Vera-enigma, este feminino insondável que se aguenta em suspenso por
todo o filme, sobretudo na sua primeira metade. Há algo aqui que se
soma à mulher-objeto e faz dela não só objeto, mas sina. Sina de
Robert, anunciada por sua insabida mãe já ao fim do filme: “parece
uma criança, sempre te aconteceu igual com as mulheres”.
Mas,
para tocar esta sina, é preciso uma pequena digressão que percorra
a maternidade de Marilia, seu jogo incestuoso com Zeca, seu segredo
quanto a Robert, a perversão de Zeca-Tigre e a (perversão?) de
Robert. Quando a bizarra figura de Zeca fantasiado de tigre aparece,
o incesto se encarna já de início num quase-beijo. No entanto,
muito pouco se nota de uma atitude incestuosa ativa por parte de
Marilia. Muito pelo contrário: a mãe nos dá a impressão de que
nada pode contra o Tigre, pelo amor ou pelo ódio, pelo incesto ou
pela castração. Suas tentativas quase inertes de pará-lo, quando
este se determina a ir atrás de Vera, são literalmente amarradas na
perversão do filho e caladas por um guardanapo – que “antes te
cabía entera”, assim como dois minutos depois, estuprando Vera,
que pensava ser Gal, lhe diz (num paralelismo sintático no original
espanhol) que “antes te volvía loca”: sobreposição de
oralidade e genitalidade, jogando com tamanhos e encaixes?
Se
o perverso mantém o incesto ou o incesto produz o perverso é
impossível responder pelo próprio filme,
a não ser pela hipótese de Marilia: “são de pais diferentes, mas
ambos nasceram loucos. São minhas entranhas, a loucura está em
minhas entranhas.” De fato, também a Robert, algo da perversão
foi transmitido. Ainda assim, se vem das entranhas de Marilia, o
segredo sobre sua maternidade parece ter lhe garantido algo, talvez
justamente algo da ordem do segredo, do enigma. Se tomarmos a série
das mulheres-objeto cronologicamente, Marilia é quem a inaugura, e o
faz em segredo. Entre seu desejo e seus lutos, a mulher para Robert
se tornou, ela mesma insígnia do enigma, o qual abre a série com
Marilia e a encerra com Vera. Não à toa, quando Robert reclama que
todas as mulheres que opera fazem Marilia se lembrar de alguém, ela
já sabe: não esta, ela é diferente. Profecia?
De
todo modo, é esta recorrente denúncia de Marilia que é preciso
acentuar, pois se refere precisamente ao cerne do argumento do filme:
Vera-enigma. Repetidamente, comentaristas e analistas afirmam Robert
como perverso (LA PIEL, 2013; ESTRADA, 2012; CAZALLA, 2014). É
certamente inegável que seu grande experimento e sua grande vingança
movimentam um gozo absolutamente perverso, e Cazalla demonstra de
modo bastante interessante a crítica à própria perversão do
discurso científico e técnico tecida por Almodóvar. Mas ao escutar
o Tigre, este que é plenamente filho de sua mãe, o contraste com
seu meio-irmão faz gritar uma diferença implacável. O Tigre rouba,
invade e estupra. O Tigre não tem Outro, ele é
a própria Lei desfrutando de seus objetos. Também Robert faz sua
própria lei, desafia a bioética, transforma Vicente em “brinquedo”
(na descrição do próprio Vicente) e não hesita em matar o Tigre.
Mas tomá-lo como perverso é deixar passar em completa ignorância o
fato de que, se não hesita em matar o Tigre, hesita sim em matar
Vera. Aliás, a certa altura – depois que a obra perversa está
acabada e a sedução histérica entra em cena – ele está de novo
submetido a seus jogos. É sua sina, é a profecia de Marilia. Logo
no início, e sem qualquer explicação no enredo, o leitreiro²
“maternidade” ganha enorme foco logo antes da palestra do Dr.
Ledgard. De fato, parece que o segredo de sua maternidade criou sua
sina, mas também sua salvação: garantiu este ponto de enigma, este
mistério Real que a perversão contornará, mas não submeterá.
Assim
é que os dois homens apresentam, no filme, duas articulações
possíveis do feminino. De um lado, Vera-objeto ora é boneca sexual
da perversão de Zeca, ora é, sim, desejante, mas sob o modo
histérico de um se fazer mulher para ser desejada por Robert,
selando a série Marilia/Gal/Norma/Vera-objeto. De outro lado,
Vera-enigma denuncia algo do feminino que transcende o desejo fálico.
Trata-se deste pano de fundo, que mal se sabe quem é ao longo de
toda a primeira hora de filme, desta personagem ao mesmo tempo
destituída de subjetividade, mas também articuladora de toda
subjetivação pensável no enredo (para homens e mulheres!). É a
mulher enquanto indefinido. Indefinição esta que alcança seu ápice
não em Vicente submetido, nem em Vera de maquiagem e salto alto, mas
no ponto em que não se pode nomear nenhum dos dois. 1h22:
Vicente/Vera, não à toa vestida em sua segunda pele e sua máscara,
foge de Robert pela casa, e não escapa. Interessa menos a
perseguição em si do que esta figura impensável, que não pode
mais ser Vicente, mas ainda não é Vera. Até mesmo sua voz é mais
infantil do que masculina ou feminina. É a figura que invoca a
indagação que Almodóvar nos impõe acerca de Vera desde o início:
quem é ela?
Esta
articulação do feminino enquanto enigma parece falar de algo que
antecede a própria proposição freudiana de que, a princípio, “a
menininha é um homenzinho” (FREUD, 1996 [1933], p. 118) que
posteriormente terá de inverter sua relação com o falo para se
fazer mulher-desejada já na ordem fálica. Não caberia aqui
adentrar as minúcias de um feminino que escapa à própria inscrição
do falo, tal como Lacan o desenvolve, mas vale sim notar que, se do
lado masculino o desejo se inscreve ao modo fálico, do lado feminino
ele sempre pode também se submeter a tal dinâmica, sob a égide da
sedução histérica, mas algo restará. Irigaray (2017) nos ajuda
com uma distinção fecunda: se a feminista pós-lacaniana busca um
modo de falar deste resto como um falar-mulher,
também não deixará que este falar-mulher se confunda com um falar
histérico. Afinal, a
histeria é já o feminino submetido ao fálico, é já Vera-enigma
transformada em Vera-objeto, que não fala-mulher. Ao contrário, no
falar histérico, “isso fala como sintomas de um ‘isso não pode
falar a si nem sobre si’” (IRIGARAY, 2017, p. 156).
Este,
sim, é o grande enigma de Robert – provavelmente de todos homens,
e da maior parte das mulheres. Enigma que se atualiza e se refaz na
série das mulheres-objeto Marilia/Gal/Norma, tal como o falo se faz
significante de uma falta, se assenta sobre a perda do objeto a.
Mas Vera está além do aprisionamento fálico do gozo, e até o fim
deixa sua questão: o assassinato de Robert estabelece a perdição
final do médico no feminino ou, ao contrário, a efetuação radical
de sua sina e resposta de seu enigma? E, quanto a Vicente/Vera, de
fato se tornou Vera? E, se sim, se tornou histérica ou se fez num
constante devir-mulher indefinível? E a falicidade de Vera assassina
é resto do masculino Vicente ou é apropriação feminina de uma
femme fatale,
que não seria nova em Almodóvar (Rodrigues, 2008)? O fim reedita
este mistério insondável. Dombronsky (2013) vê uma androginia em
Vicente já de início, que honestamente não pude encontrar, a não
ser quando aparece debaixo da cama para dar fim em Marilia (e
encerrar a série de mulheres-objeto). E toda a composição a partir
daí será ambígua: ainda que andrógina, mata maquiada. Veste sua
jaqueta de couro vermelho, sobre o vestido que desejara para Cristina
– chega em casa e se apresenta no masculino: “Sou Vicente, fui
raptado”.
E
é certo que não se poderia encerrar nem o filme, nem este trabalho
a não ser com interrogações:
Lacan
dirá que a mulher rejeita uma parte essencial de sua feminilidade na
mascarada, já que ela não estaria totalmente assujeitada à função
fálica. Em última análise, poderíamos chamar de semblante aquilo
que tem função de velar o nada. Nesse sentido, o véu é o primeiro
semblante. Temos como testemunho as artes, a história, a
antropologia, que revelam uma preocupação de velar, cobrir a
mulher. Por que não se pode descobrir a mulher? Ela representa a
castração, ou seja, a mulher é velada porque, ao se retirar o véu,
encontra-se o nada. (Rodrigues, 2008, p. 95)
Pode
ser que se trate realmente deste impasse. Seria mesmo possível
libertar a mulher do fálico, seja o fálico da femme
fatale, seja o fálico
a que está submetida a sedução histérica? Aquilo, amulher
(termo de Irigaray, 2017), que não se inscreve no fálico é,
propriamente, algo? Ou arrancando qualquer referência falogocêntrica
da mulher, encontraríamos simplesmente o nada?
Eis
o questionamento que move minha escrita, e provavelmente ainda a
moverá por algum tempo. Irigaray (2017) demonstra que definir a
mulher como indizível ainda reproduz uma linguagem falogocêntrica
(o neologismo é da autora), por mais que a liberte do sintoma
histérico. Afinal, quem não pode falar d’amulher,
não pode justamente porque fala a partir de uma referência fálica,
à qual amulher
sempre escapa. Será, então, possível inventar uma linguagem, um
modo de simbolizar, que fale-mulher? Irigaray tenta, e nos deixa um
vislumbre de que – para além do falo e para além do nada – algo
pode nascer Quando
nossos lábios se falam³.
¹
Trabalho apresentado como requisito semestral no curso Semiótica
psicanalítica: clínica da culutra,
COGEAE/PUC-SP.
²
Logo na primeira escrita do trabalho, um inconsciente leiteiro se
impôs sobre meu letreiro. Faço questão de não o corrigir.
³
Título do último texto publicado em Ce
sexe qui n’en est pas un
– Este sexo que não
é só um sexo, na
pobre tradução para o português (IRIGARAY, 2017, p. 231-246).
Quando nossos lábios
se falam é, no fundo,
sua grande abertura feminina e consumação de seu falar-mulher.
Referências
bibliográficas
CAZALLA,
Camilo. Comentario sobre La
piel que habito.
Conclusiones
Analíticas,
La Plata, v. 1, n. 1, p. 273-277, 02 set. 2014. Disponível em:
http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/39392.
Acesso em: 14 jun. 2020.
RODRIGUES,
Ana Lucilia. Pedro
Almodóvar e a feminilidade.
São Paulo: Escuta, 2008.
Pedro
H. Mendonça é
graduado
em Psicologia pela PUC-SP, especializando em Semiótica Psicanálitica
pela COGEAE (PUC-SP), com formação teórico-prática em
Acompanhamento Terapêutico. Colaborador em Instituto Dasein e membro
da Oficina Clínica de Psicanálise.