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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Blue Jasmine

de  Priscilla Cheli
O filme nos conduz através da história uma mulher rica, que perde todo o seu dinheiro e é obrigada a morar em São Francisco, com sua irmã, Ginger, interpretada por Sally Hawkins, em condições financeiras muito diferentes da que estava habituada. Como se diz popularmente, Jasmine perde o dinheiro, mas não perde sua pose. Portanto, tal mudança, a faz mergulhar em um universo que ela se nega constantemente em digerir.
Logo no início do filme, Jasmine, a protagonista interpretada por Cate Blanchett, já mostra um traço muito significativo. Ela está num avião e passa todo trajeto a falar e contar a mesma história para ela mesma. Esse “ela mesma”, ora é encarnado em algum corpo que se põe próximo a ela ora no puro nada, na própria ausência.
Ao estilo Woody Allen, Jasmine vive um “colapso nervoso”, sempre regado de uma boa dose de tagarelice, como uma forma de externar tal estado. Ela revive suas lembranças se ausentando completamente do presente e travando diálogos do passado em sua memória. Enquanto isso, nós, expectadores, vamos sendo convidados a conhecer sua história.
Sua fala é vazia, não se endereça a ninguém, não há outro. É um falar por falar. Não há, aparentemente, nem mesmo um sujeito. E parece que foi assim que Jasmine viveu.
Vinha de um casamento no qual era mimada pelo marido, interpretado por Alec Baldwin. Aparentemente, seu único dever era usar suas “habilidades sociais”. A crença em tais habilidades a alienavam num mundo particular. Participava de ações filantrópicas, cujas quais a faziam sentir-se diferentes das demais socialites, sabia como receber amigos e realizar festas. Neste mundo particular, sentia-se protegida, imunizada contra qualquer preocupação mundana. Uma vida, que para ela, aspirava a perfeição.
Sua irmã, Ginger, por sua vez, representava o avesso de seu mundo, ou seja, mostrava o suburbano, a falta de classe e de nobreza. Em suma, simbolizava tudo aquilo que Jasmine não queria ver, nem saber.
Debruçada em sua alienação, Jasmine fazia questão de não perceber o que todos ao seu redor já estavam cansados de enxergar: ela era frequentemente traída pelo marido, todo seu universo luxuoso não provinha de um homem perito em honestidade, muito menos, esbanjador de filantropia, como ele gostava de afirmar e ela de acreditar.
Mesmo se em alguns momentos, ela arriscasse uma espiada para fora de sua crença, poucas palavras do marido eram suficientes para conduzi-la novamente ao seu mundo cor-de-rosa.
A história vira as avessas quando Hal, o marido, decide deixá-la por uma au pair de uma amiga do casal. Jasmine toma uma decisão que põe seu mundo a perder. Ela denuncia o marido ao FBI, ele vai preso e na prisão se suicida. Ela se vinga daquele que a tirou de sua alienação.
Desprovida de qualquer recurso financeiro, pois tudo lhe foi tomado pelo Estado, e sozinha, pois o filho de seu ex-marido, ao se deparar com toda a realidade, envergonha-se perante os amigos de ter uma pai corrupto e deixa tudo para trás, Jasmine recorre a Ginger.
Perdida e sem rumo, mergulha muitas vezes em sua fala vazia. Vivendo por um hiato a lembrança prazerosa de sua alienação. Ou seria mais acertado falarmos a lembrança de seu gozo aparentemente perdido?
Jasmine fica face a face com tudo aquilo que jamais quisera saber. Convive diariamente com sua irmã, com os sobrinhos “mal educados”, no sentido literal da expressão, pois os meninos não receberam a educação que ela considerava adequada e ainda com o novo namorado de Ginger, um homem simples e rústico, que, no entanto, demonstra muito afeto a irmã.
Na tentativa de sair daquele mundo, a protagonista passa a trabalhar como secretaria em um consultório odontológico a fim de manter um curso de computação, que a permitiria se formar em design de interiores em um curso online. Esse curso representa a possibilidade de retomar sua vida como era anteriormente e lhe lançaria num mercado de luxo, na inserção em meios de pessoas da mesma classe social que ela não aceitava em abrir mão de pertencer.
Em uma festa de uma colega de curso, Jasmine conhece um homem bem sucedido e educado. Ela se vê diante da possibilidade de se cercar de todo aquele antigo mundo novamente. Utiliza de todas as suas habilidades e o conquista. Assegura-se apenas de vestir-se na tão conhecida antiga imagem, escondendo seu passado e recriando uma história. Mostra-se uma mulher de alta classe, viúva de um médico, e bem sucedida como design de interiores. Na tentativa de não o perder, se perde. Logo ele descobre qual realmente era sua história e Jasmine volta a falar com ninguém sobre como era seu mundo, sozinha em um banco publico, lembrando que tocava Blue Moon quando conheceu seu ex-marido.
Ginger, por um momento, se influencia pelas críticas da irmã, como alguém que não tem nada e se conforma com o pouco que tem. Nesta mesma festa, conhece um homem, se ilude momentaneamente com a possibilidade de ter uma vida diferente, porém descobre que ele era casado. Volta ao seu rustico, porém afetuoso namorado, e parece de acordo consigo mesma em seguir sua vida como era antes da chegada da irmã.
O filme nos daria margem a vários recortes que permeariam diferentes formas de olhar. Um desses recortes nos leva aos conceitos de alienação e separação. Sabemos que um processo não existe sem o outro e que ambos ocorrem concomitantemente. Se há alienação é porque há separação. A alienação é um mergulho no desejo do Outro, e nele abre-se mão do ser. Porém, ao escolher o ser, abre-se mão do sentido e do tornar-se sujeito. Afinal, “o sujeito é o desejo do Outro”. Na separação, o sujeito se divide tal como o Outro. Ambos são faltantes e é dessa operação que nasce a possibilidade de desejar.

Poderíamos pensar que, enquanto Jasmine encontrava-se em seu estado de alienação, agarrada a sua identificação imaginária, nada queria saber sobre si mesma? Quando decide se separar, quando rompe essa cola com o Outro, cai de seu estado seguro e protegido, e, muito embora entre em colapso, algo de seu desejo aparece. Algo é posto em funcionamento. Todavia, não se sustenta. Seria o velho gozo, atropelando e fazendo-a cair novamente em seu “nada quero saber sobre mim mesma”?
Trailer oficial do filme fazer

Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.

sábado, 7 de julho de 2012

Desejo: O Obscuro Objeto em Woody Allen

de Nilson Perissé

O coração é um músculo muito elástico”, diz Mickey, personagem de Woody Allen em Hannah e suas Irmãs (1986). Essa emblemática frase ajuda não apenas a compreender um dos temas recorrentes do autor, como também serve de chave de leitura para a inquietação e a agitação que dão vida aos seus tantos personagens.
Elliot (Michael Caine), bem sucedido contador, é casado com Hannah (Mia Farrow), mas deseja Lee (Barbara Hershey), sua cunhada. Ao longo do filme, ele faz movimentos que só o desejo pode ensejar: segue Lee nas ruas, adianta-se algumas quadras e pára numa esquina, até que ela, “casualmente”, se depara com ele em seu caminho até um grupo de Alcoólicos Anônimos. Ao saber para onde ela se dirige, sua reação é patética: “Alcoólicos Anônimos? Deve ser interessante. Gostaria de um dia ir também”. Lee é a obsessão de Elliot, que pensa nela em cada livro que folheia, em cada poema que lê.
(Realmente não sei o que há em você que fecha/ e abre; somente algo em mim compreende/que a voz dos seus olhos é mais profunda que todas as rosas)/ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas, é a poesia de E. E. Cummings da qual ele faz uso para expor seus sentimentos. E dá certo. Lee sente-se curiosamente atraída por Elliot e viram amantes. Falam em separar-se de seus respectivos cônjuges para ficar juntos, ela o faz de imediato e ele… não. Ao longo de um ano inteiro, Elliot, antes tão obsessivamente desejante, ficará dividido entre Lee e Hannah. O desejo, que antes motivava todos os seus comportamentos, não mobiliza mais ações ou pensamentos. Lee, por sua vez, vai perdendo o encanto pelo amante hesitante e começa a sair com um professor de literatura. Um ano depois de o fogoso Elliot ter declarado a si mesmo o quanto estava apaixonado por ela, só lhe resta admitir que não compreende mais o que o deixara tão fora de si por aquela mulher comum.

Na galeria de personagens allenianos, Elliot não está só. A volatilidade do desejo encontra eco em personagens de outros filmes, que mobilizados pelo desejo, trocam de parceiro amoroso como se fossem guiados por uma compulsão, feito vítimas de uma atração, que une, e da vida real, que desune. De Winona Ryder em Celebridades (1998) a Christina Ricci em Igual a tudo na Vida (2003), todos estão permanentemente tentados à infidelidade conjugal ou sem controle diante do desinteresse amoroso em relação ao seu par. Todos parecem concordar com uma premissa psicanalítica: “estar diante da possibilidade de realização de um desejo é motivo de maior alegria do que tê-lo realizado” (Kehl).
Desejo/realização do desejo/ “ainda não era isso”, é a fórmula que perpassa a existência dos personagens do universo alleniano. Frequentador dos consultórios psicanalíticos há décadas, é de se esperar que Woody Allen conheça bem a premissa psicanalítica do desejo escorregadio, aqui explicada pelo filósofo Dany Robert-Dufour: “O sujeito, tendo buscado no objeto a satisfação de seu desejo, pode apenas descobrir, sendo dada a natureza da pulsão, que ‘ainda não era isso’, que a falta que havia suscitado o desejo persiste. (…) Se ‘não era isso’, então se é conduzido a voltar a demandar” (Dufour). Seguindo a premissa lacaniana de que ali onde se conhece não se deseja, e ali onde se deseja não se conhece, o Elliot deHannah e suas Irmãs fez o único movimento que poderia destruir seu desejo: conseguiu realizá-lo junto a Lee e, assim o fazendo, perdeu-o. Um chiste, formulado por Allen em Memórias (1980) apresenta uma variação dessa tese: “Certo médico, apaixonado por duas mulheres, resolveu juntar o corpo de uma e o cérebro da outra numa só e com isso produzir a mulher perfeita. Para sua surpresa, apaixonou-se pela outra, feita com os restos…
A ciranda do obscuro objeto de desejo é cantada e contada em vários filmes do autor, feito uma verdadeira compulsão à repetição. Vicky Cristina Barcelona (2008) é, talvez, um dos melhores exemplos. Aqui e ali, aparece ou volta à cena a insatisfação desejante de seus personagens: Cristina (Scarlett Johansson) encontra uma forma de expressar-se através da fotografia e sente-se acolhida no amor por Juan Antonio (Javier Bardem) e Maria Elena (Penelope Cruz), mas semanas depois sente-se incomodada por um vazio inexplicável e volta para os Estados Unidos tão insatisfeita quanto estava ao sair de lá; Vicky (Rebecca Hall) tem uma perspectiva de carreira e um casamento tão planejados quanto pode, mas sente-se abalada pelo desejo que sente por Juan Antonio, até descobrir que esse desejo não é compatível com a vida organizada e planejada que aspira para si. Mesmo Judy (Patricia Clarkson), a parenta que acolhe as moças em Barcelona, mulher madura e aparentemente realizada, de vida movimentada, luxuosa e fascinante, quer sair de seu casamento, embora ache tarde demais para isso. Conclusão desse filme: ninguém está onde deseja estar, e mesmo quando acha que está, sente-se atraído por algo ou alguém que não está ali. Poucos anos depois, Allen insinuará que a questão é mais complexa: em Meia noite em Paris (2011), mostrará que vivemos insatisfeitos onde estivermos, e isso inclui o tempo no qual se vive. O personagem Gil Pender (Owen Wilson) não apenas gostaria de deixar os Estados Unidos e viver na França, mas viver na Paris dos anos 1920; a mulher por quem está apaixonado, Adriana (Marion Cotillard) já vive em Paris, mas gostaria de viver na Renascença. A década de 2000 é sem atrativos para ele, os anos 1920 não a satisfazem.

Talvez a melhor metáfora que Woody Allen tenha escolhido para discutir essa ideia encontre-se na cena inicial de Memórias (1980). Sandy Bates (Allen) encontra-se num trem em meio a passageiros tristes e desinteressantes. Quando olha para o trem ao lado, vê que as pessoas no outro vagão ali estão em festa, divertindo-se, distraindo-se em conversas empolgantes. Sentindo-se sufocado, ele tenta, inutilmente, mudar de veículo, mas os trens partem e não é possível trocar de condução. Com essa simples imagem, o autor nos leva a nossas mais desconfortáveis experiências. Quem nunca viveu a sensação de ter sentado na mesa com as pessoas menos interessantes e de ter, entre os colegas de classe, as crianças mais sem graça? Quem nunca flagrou-se a contemplar com inveja um grupo do qual não consegue participar? Allen acena para essa verdade frustrante: a vida parece pulsar do lado de fora da janela, do outro lado da rua, ou nas companhias com quem não se está no momento.
Se esse problema é tão repetido em sua obra, terá o autor descoberto alguma solução? A julgar por sua produção, não parece terem sido encontradas respostas, mas talvez pistas. Ele sinaliza, por exemplo, que a natureza intrínseca do desejo é ser fugaz. No episódio Édipo Arrasado, do longa Contos de Nova York (1989), a personagem Lisa (Mia Farrow), chega à conclusão de que não quer mais manter seu relacionamento com Sheldon (Allen). Num bilhete de despedida, ela reflete com simplicidade: “É engraçado. Você de repente acorda um dia sem amor. A vida é estranha”.
Tão estranha que pode surpreender mesmo quando se pensa que o desejo acabou. Em Todos dizem eu te amo (1996), Joe (Allen), após anos separado de sua primeira esposa (Goldie Hawn), rouba-lhe um beijo e, com melancolia, deseja que seu casamento tivesse ido adiante; em Dirigindo no Escuro (2001), Val Waxman (Allen) não apenas lamenta ter perdido a esposa, Ellie (Tea Leoni), como consegue voltar para ela após muitas dificuldades. O mesmo acontece com Joe (Joe Mantegna) em Simplesmente Alice (1990), que após grandes desavenças, e contra todas as previsões, refaz seu casamento com a ex-esposa. Allen mostra que, mesmo ali, onde se achava que o desejo havia arrefecido, há uma chama que pode trazer reviravoltas inesperadas.

Em consonância com as premissas da psicanálise, ele sinaliza que desejo e felicidade não costumam ser pares perfeitos. A felicidade, tal qual se busca, implica em saciedade, conforto e estabilidade, enquanto que desejo implica em singularidade, tensão e conflito, o que teria levado Lacan a dizer, no seu seminário sobre Ética (4), que o neurótico visa a felicidade ao preço de seu desejo e, no tratamento psicanalítico, ele tem a oportunidade de encontrar o caminho de seu desejo, ao preço de sua felicidade. Um bom exemplo de quem não paga o preço do desejo encontra-se no amargo depoimento de Judy (Patricia Clarkson) emVicky Cristina Barcelona (2008): “Meu psiquiatra diz que estou apavorada demais para agir e que estou procurando alguma solução mágica, o que é pouco realista. Ter um caso não é a solução. Mark é maravilhoso. Com certeza qualquer insatisfação minha é por um problema meu. Eu só não posso deixá-lo e sei que nunca vou fazer isso. Eu simplesmente não posso. Tenho muito medo e a hora de fazer isso já passou”.
Tudo na produção de Woody Allen leva ao confronto eterno do homem com seu desejo, numa perspectiva em que, mesmo as relações que sugerem estabilidade, apresentam surpresas. Vemos isso em Hannah e suas Irmãs (1986), quando uma sorridente Holly (Diane Wiest) diz que está grávida para o marido Mickey (Allen), sem saber que ele é estéril…
Mas nem tudo é pessimismo na articulação entre Woody Allen, e a premissa lacaniana de que “a única coisa da qual se possa ser culpado é de ter cedido de seu desejo” (Lacan). Os finais de Simplesmente Alice (1990) e de Meia noite em Paris são otimistas: no primeiro, Alice (Mia Farrow) troca a vida de luxo e futilidade por uma mais modesta e com privações, porém animada pelo desejo de servir em trabalhos assistenciais; no segundo, Gil (Owen Wilson) rompe o noivado com a noiva a quem não amava e com quem convivia por acomodação, deixa Adriana (Marion Cotillard) no passado da Belle Époque e volta para a época atual, onde tem um romance para escrever (seu desejo) e onde encontra, no meio da chuva, uma mulher que parece encarnar seu ideal amoroso. Com esses incomuns finais felizes, Woody Allen parece dizer: é possível viver na própria época e sem nenhum luxo ou glamour, desde que aberto a fazer da própria história a história de seu desejo.

Nilson Perissé é Mestre em Sistemas de Gestão, psicanalista em eterna formação e bacharel em Comunicação Social. É autor das páginas Filmes para recordar, repetir e elaborar e Psicodinâmica do Trabalho no Facebook.

domingo, 10 de junho de 2012

Tudo Pode Dar Certo

por  Arnaldo Domínguez

O que pode dar certo?

“Por nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis” – Lacan, A Ciência e a Verdade.

O niilismo, termo que teve origem durante o período imediatamente precedente à Revolução Francesa e que designava, em princípio, a atitude daqueles que não se posicionavam nem a favor nem contra a revolução, estendeu-se à uma certa filosofia negativa da existência humana que parece alastrar-se em nossa época globalizada. O niilismo existencial, aonde nem a vida nem a morte teriam algum sentido ou valor e, consequentemente, os suicídios ou homicídios ocorreriam massivamente e por pura imitação ou por inércia, ou então, como afirmava Durkheim, cumpririam uma função social necessária a toda cultura, apresenta-se – para muitos – como um atual “sem saída”.
Entretanto, a psicanálise propõe uma saída para a compulsão à repetição e o que nela se insinua de pulsão de morte. Algo desta ordem, também, encontramos na arte. Contudo, são propostas que nem sempre dão certo!
“A posição do psicanalista não deixa escapatória – diz Lacan – já que exclui a ternura da Bela Alma”. Trata-se da divisão entre o Saber e a Verdade. E acrescenta: “A redução (do sujeito) constitui o objeto da ciência”. Assim, a ciência se endereça ao “sentido absoluto”.
No próximo passado sábado 02 de junho de 2012, respondendo a um convite do Prof. Sidnei F. de Vares, da UNIFAI, quem coordenou o ciclo de debates “Cinema e Psicanálise”, comentei o filme de Woody Allen “Whatever Works”, de 2009.  Tal expressão idiomática da língua anglo saxônica recebeu, nas legendas em português, diversas traduções. A primeira é destacada no título “Tudo pode dar certo”. Outras, no interior dos diálogos, são “faça o que for preciso” ou “qualquer coisa que funcione”.
Portanto, percorrem a dialética desde o lugar de um quantificador universal, “tudo”, “qualquer coisa”, até o imperativo categórico que emula uma certa animação neurolinguística. O bom conselho, quiçá, a la Shinhashyki: amar pode dar certo!
Tem um “pode” ou um “quase” que apontam para a impossibilidade da completude, o que causa certo alívio. Sempre me lembro daquele cinéfilo (obsessivo) que suportou até o final o filme “9 e meia semanas de amor” graças a delimitação temporal oferecida pelo simbólico do título. Isso tinha hora marcada para acabar.
 Allen ficou famoso inicialmente por satirizar na “telona” a neurose cosmopolita da metrópole de New York, semelhante a qualquer outra. Neste filme, Boris Yellnikof, interpretado magistralmente por Larry David, no ato de quebrar a quarta parede, como dizem, ou seja, ao revelar que ele tem um canal direto de comunicação com os espectadores (é o único do elenco que consegue nos ver), alerta-nos: Não se trata de um espetáculo destinado a que se sintam bem. A autoajuda ou o entretenimento não são seus propósitos, digamos.
Contraria, nisto, aquele filme de Benigni: “La vita é bella”, de 1997, no qual o “belo” escamoteia o “horror”, apesar de que no jornal A Folha de São Paulo dessa época tenham anunciado que “o riso nos salva” (?).
Nesta película Boris grita o horror: da condição temporária, da miséria neurótica que transformou a humanidade numa massa de estúpidos reprodutores de clichês (o mundo está tão cheio de gente estúpida que ser inteligente, como ele, é um fardo), dos preconceitos da sociedade (pseudo) puritana dirigidos contra os negros, os judeus, os gays, etc. Todo esse sem sentido da existência humana e suas crenças religiosas idiotas.
Representante da encarnação do último niilista verdadeiro resgata as sinfonias de Beethoven e até a Bossa Nova para se proteger de um universo massificado de jovens, niilistas também, mas aos quais não sobrou nada para poder negar.  A “balada” que frequentam, por exemplo, chama-se “Esfíncter Anal” e sugere a metáfora direta de: um gozo de merda.
Boris parece ser o único sobrevivente do naufrágio da pureza intelectual, capaz de renegar os valores metafísicos redirecionando sua força vital à destruição da moral para que, finalmente, tudo caia no vazio que nos levará à espera da morte ou ao ato de causa-la.
Somente ele compreende a insignificância das aspirações humanas e o caos do universo. Ele também despreza a ternura das Belas Almas tendo se transformado no Homem do Ressentimento que busca, no isolamento, a proteção necessária para seu desamparo. Projeta-se sobre todos nós naquilo que temos de arrogância, de desmesura, de suicidas, quer seja por vias “Egoístas” (dos desamparados do laço social); “Altruístas” (imersos na consciência coletiva) ou “Anômicos” (perante uma mudança súbita de lugar social), como classificou Durkheim em 1897. Casualmente, o mesmo ano em que Freud dissera a Fliess não acreditar mais em sua neurótica.
Essa “cota de sacrifício” exigida pelo laço social e suas forças morais reguladoras externas, afinal, é um ato particular endereçado ao Outro. Pois a pulsão de morte é presença silenciosa no sujeito e no laço. O inconsciente é o discurso do Outro. O inconsciente é o social.
Poderíamos situar aqui algo que emana desde a origem da crueldade infantil, que, ao dizer de Freud nos três ensaios “é referida a uma pulsão de dominação que originariamente não teria por objetivo o sofrimento alheio, mas simplesmente não o levaria em conta”. Boris tampouco busca o sofrimento alheio, senão, pelo contrário, é vítima da perfeição e do abandono. É um excluído do bando, portanto, uma exceção.
Ao se referir ao Rei “torto” de Shakespeare, Ricardo III, Freud diz que ele representa uma enorme ampliação de algo que acontece com nós todos.  Tem o direito de fazer o mal!
Boris não assume tão descaradamente esse direito. Apenas o exerce com as “criancinhas retardadas” às que ensina xadrez. É uma espécie de antigo “Maestro de Escola”, aliás, como muitos ainda o são ou como tantos analistas, quando na violência da interpretação psicologizante jogam pela janela um suposto saber que desconhece o/ao outro.
Satiriza aquele que, de acordo com Lacan, não existe: “O homem da ciência”, e também a alguns psicanalistas que denunciam a “foraclusão generalizada” propondo uma espécie de retorno messiânico do Pai Imaginário. Os demonizadores, de que fala Jurandir Freire Costa.
Convoca o paradigma da loucura da ciência que rejeita a subjetividade por razões metodológicas.
“A ciência está louca – diz Coutinho Jorge – mistura espécies, clona os animais e quer fazer isso com o ser humano. O ápice da loucura é tentar transformar a reprodução sexuada em assexuada”.
Se, por um lado, Boris representa aquele que “sabe tudo o que interessa”, debochando da mediocridade dos homens e atingindo também aos Eminentes Senhores da Academia sem poder se espelhar no símio de Kafka e nem usufruir do ato de Sartre ao rejeitar o Nobel de literatura, por outro, seu amigo professor de Filosofia faz um atravessamento discursivo perpendicular promovendo o saber e o valor no outro tido/dito como semelhante. Nesse caso, sua futura amante, a sogra de Boris, que o filósofo compartilhará com outro amigo numa “terceirização” do desejo insatisfeito, mais do que numa “ménage à trois”.
O espanhol Juan Antonio Rivera, professor de filosofia, invocou Sócrates num livro para interpela-lo sobre o que ele diria a Woody Allen e seus filmes. Allen que foi expulso do curso de filosofia na Universidade de Nova York em 1953.
Pois, digamos (antes de ler o livro de Rivera) que Boris transgride o Banquete de Platão e cede perante a insistência do amor transferencial de Melody (Evan Rachel Wood), jovem e bela quem, ao estilo de Alcebíades, parece ter encontrado o Ágalma (objeto a) na suposta genialidade hipocondríaca de seu benfeitor.
Melody é o retrato da Bela Alma, feliz em sua paixão pela ignorância e “enfermeira” que cuida e sustenta o Gozo do Outro. No caso, um outro atormentado pelo saber no lugar da verdade.
Orham Pamuk, num recorte que gentilmente enviou-me Íris Moraes Araújo e extraído de “Outras Cores”, escreveu: “Minha biblioteca não é motivo de orgulho, mas de vingança contra mim mesmo e de opressão”.
Estará toda cientificidade intelectual condenada à loucura? Exemplos disso não são poucos. Mas, será por conta disso que Boris se defronta, no final, com a magia? Tenta desastradamente um novo suicídio quando Melody o deixa pelo jovem ator (do desejo materno) e cai sobre uma “vidente” que se fratura em seu lugar. Bela metáfora para a mulher enquanto sintoma do homem. Afinal, o que é um homem para uma mulher? Ora, um estrago!
Na magia o saber está velado e, diz Lacan, a magia é sempre magia sexual. Longe do Viagra, neste caso. Uma tentativa extremada do diretor para arrancar-nos da condição farmacológica em que pretendem nos transformar.
Mesmo considerada uma falsidade ou algo sem grande valor, a magia (a ilusão) provoca, no final, feliz para tantos, uma chatice para Boris e aqueles que comungam de sua lógica, uma comemoração. O fundamentalista homofóbico se torna gay, a do desejo insatisfeito goza à rodo, e Boris esquece de cantar Parabéns a você enquanto lava as mãos ou o Hino Nacional ao sentar-se na privada, o que ficaria muito cômico no caso do Brasil. Ouviram do Ipiranga as margens plácidas..? Tudo pode dar certo?
Magia e  religião vão à sombra da ciência.
Logo, como cantava Atahualpa Yupanki: às vezes sigo minha sombra, às vezes (ela) vêm detrás. Coitadinha, quando eu morra, com quem vai andar?

“A veces sigo mi sombra / a veces viene detrás
Pobrecita, cuando muera / com quién va andar?”

07 de junho de 2012 – Itaquaciara, Itapecerica da Serra.

ARNALDO DOMÍNGUEZ é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida