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domingo, 5 de abril de 2020

O Poço - El Hoyo

de Priscilla Cheli Mendes

**Alerta de MUITO spoiler**
O poço, ou El Hoyo, nome original em espanhol, é o primeiro filme dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, jovem diretor de 36 anos. Estreou em 2019 no festival de Toronto e chegou recentemente à Netflix trazendo muito o que se pensar.
Trata-se de uma estrutura em formato de torre com mais de 200 andares. Cada andar abriga 2 pessoas e cada dupla permanece em um determinado andar por exatos 1 mês. No meio dessa estrutura vertical há um furo, um buraco, no qual todos os dias, uma plataforma com comida desce permanecendo em cada andar por 2 minutos.
A comida é meticulosamente preparada, passando do primeiro andar para os demais. Ela seria suficiente se cada um usufruísse de uma parte conscientemente, no entanto, isso evidentemente não acontece. Portanto, os de cima comem desenfreadamente, e quanto mais se desce, mais escassa fica a comida. Aos últimos andares, nada resta.
O filme acompanha o protagonista Goreng, interpretado por Iván Massagué, desde seu primeiro dia no poço, ou Centro Vertical de Autogerenciamento, nome oficial daquele lugar. Goreng divide a plataforma número 48, a princípio, com Trimagasi (Zorion Eguileor), um senhor que está ali por causar a morte de uma pessoa quando ainda estava fora da torre.
Desde o início da relação dos dois, Trimagasi deixa claro que só pode dar algo de si se receber algo em troca. Sua palavra preferida é “obvio”. Para ele, sua posição subjetiva é marcada pela clareza de que ele está em primeiro lugar, acima de todos.
Cada um podia levar consigo para o poço um objeto. Trimagasi leva uma faca. Goreng leva consigo o livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, não à toa, já que ao longo da trama, toma para si a incumbência de mudar aquela estrutura, pondo-se a serviço da comunidade em detrimento de si mesmo, tal como no livro.
No mês seguinte, Goreng e Trimagasi acordam no andar 101. Ali a comida já não chega mais. Goreng acorda amarrado à sua cama, e Trimagasi explica que não tem a intenção de matá-lo, apenas precisam, ambos, comer partes do seu corpo. Nesse cenário surge Miharu (Alexandra Masangkay), uma moça. Trimagasi é morto e Miharu ajuda Goreng a se alimentar do parceiro.
Vale aqui colocar algo muito relevante no filme, que é o impacto sobre o espectador. É impossível não se afetar com repugnância ou algo parecido às cenas de canibalismo, à comida remexida e cuspida.
Goreng divide em seguida o andar com uma mulher, que assim como ele, escolhe estar ali. Ela trabalhava na organização anteriormente e disse que se acaso a solidariedade se desse dentro de cada um e, portanto, se cada andar comesse somente uma porção, a comida seria suficiente diante da colaboração e sacrifício de todos. Goreng alerta que isso não acontecerá espontaneamente. Ela se suicida e o protagonista se alimenta de sua carne também. Tanto a mulher, quanto Trimigassi, passam a assombrar os pensamentos de Goreng em forma de alucinações.
Seu terceiro parceiro de andar é Baharat (Emilio Buale), que tal como ele, não se conforma com a estrutura daquele lugar. Goreng propõe que desçam para os andarem mais baixos, fracionando as porções e, organizando assim, essa sociedade vertical de forma mais justa. Essa tentativa de nova organização não acontece sem violência, e à medida que descem, percebem que aquele buraco era muito mais profundo que o previsto tornando aquele sistema fadado ao fracasso. Na última camada, a mais profunda, encontram uma menina, intacta. Goreng a coloca na plataforma como uma mensagem aos organizadores, de forma que percebam a falha daquele sistema. Nesse sentido, talvez a criança represente a esperança que novas gerações construam novos arranjos de organização social.
Pois bem, esse poço realmente tem muitas dimensões. Ele nos mostra, tal como no filme Parasita, ganhador do Oscar 2020, a luta de classes e como é estar em cada lado da mesma moeda. Mesmo que, de forma mais áspera e desprovida de humor, que tantas vezes nos serve de anteparo a angústia, provoca também uma reflexão acerca do distanciamento social entre pobres e ricos, da luta de classes e da ideia de que a mobilidade social é uma ilusão, ou seja, não se sustenta.
Zygmunt Bauman, em “A riqueza de poucos beneficia todos nós?”, nos diz que o mercado, desconsiderando as diferenças sociais, econômicas e intelectuais dita nossas escolhas e nos isola, impedindo, ou ao menos, tentando impedir, que questionamentos advenham. Por consequência, todas as variedades de desigualdade social brotam da divisão entre ricos e pobres, como observado no livro de Cervantes escolhido pelo protagonista.
Segundo dados trazidos por Bauman, em 1998, os mais ricos consumiam 86 por cento de todos os bens produzidos, enquanto os pobres, apenas 1,3 por cento, e desta data em seguida, essa diferença só vem aumentando. Esse enriquecimento dos que já são muito ricos se sustenta pela ideologia do individualismo, que por sua vez, impulsiona o consumo. O padrão sonhado é viver como as celebridades em suas roupas, casas, carros e barcos de luxo. Mesmo em meio às crises econômicas, os mais ricos enriquecem ainda mais, enquanto os pobres, só empobrecem.
No filme, como já mencionado, a cada um mês, as duplas se movem dento da estrutura para outros andares. Esse cenário intriga, já que na nossa sociedade a mudança para um nível mais ou menos abastado é pouco frequente. Talvez seja a representação de que sempre haverá um outro que nos supera e um outro subjugado.
Goreng tenta instituir uma distribuição mais justa a todos os pavimentos, mas se depara com um buraco muito mais profundo. É lá no fundo do poço, possivelmente num viés religioso do próprio inferno, que resgata algo que pode possibilitar uma mudança, que seja uma mensagem ou um apelo para que alguém lá de cima mude radicalmente aquela estrutura.
Uma pergunta se sucede, que é o que as pessoas fariam se pudessem trocar de lugar com as outras? Parece que fariam exatamente a mesma coisa que seus antecessores. E por que é assim em sua grande maioria? Há algo ali que insiste em se repetir, como se guiado tal qual um sistema pulsional pelo automaton e tique. Lacan, no seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” nomeia duas faces da repetição: automaton e tique. O primeiro seria guiado pelo princípio do prazer, enquanto a segunda, indica algo para além do princípio do prazer, apontando para o real.
Goreng nos leva a crer que ele se incumbe de ser aquele que quebrará esse circuito, não por uma via pedagógica, como sugerido pela organizadora que dividiu a plataforma com ele, mas sim, pela via da violência para se chegar num ponto de esperança, vislumbrando a possibilidade de que as pessoas que estão ali percebam que poderiam fazer de outra forma, tal como que os organizadores se deem conta do grande erro.
Talvez a inocência do protagonista seja justamente em acreditar que algo do real possa ser inteiramente simbolizável, que a partir do momento em que todos percebam sua mensagem, imediatamente a estrutura se desmonte, se desconfigure. No entanto, algo ali no final, possa nos conduzir a um outro caminho, a presença de uma menina, nos aponta para algo que seria mais passível de aposta. A aposta no não todo. Não há o Um que simplesmente aniquile um sistema, mas talvez, como uma aposta, o cada um, a loucura de cada um, aquilo justamente não possível de assimilação, a própria singularidade. Se isso se reverbera realmente em uma mudança social, é uma questão.

Priscilla Cheli Mendes é psicanalista; psicóloga com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.
* colaboração de Alice Pitteri Mantovaneli

trailer


domingo, 16 de novembro de 2014

Relatos Selvagens (ou simplesmente atuais?)

de Priscilla Cheli
Dividido em seis histórias, com começo, meio e fim, Relatos Selvagens, traz uma reflexão a cerca de questões mais que atuais, com as quais nos deparamos todos os dias, seja por meio de uma notícia de jornal, seja por algum personagem da vida real.


As histórias se dão em contextos diferentes, porém, em seu âmago, trazem a vingança e a violência como protagonista, nos convidando a refletir sobre a ética de cada um e nos colocando diante da pergunta: “o que você faria se...?”
Num estilo tragicômico, o filme, dirigido pelo argentino Damian Szifron e produzido pelo espanhol, Pedro Almodóvar, tem uma configuração diferente da que estamos habituados a assistir. Seis histórias que não se cruzam, não se excluem, e nem se contradizem, mas que em sua efemeridade, tocam a singularidade da ética de cada um que as assiste.
Tal como o formato que o filme se apresenta, tentarei fazer um breve relato das histórias, ressaltando seus pontos cruciais, separadamente.
1 - Fazendo uma alusão aos casos de meninos que abriram fogo em escolas americanas, Gabriel, comissário de bordo, reúne em um vôo, todos aqueles que ele julga serem seus malfeitores e leva a aeronave à queda.
2 - Uma garçonete se depara com um cliente que arruinou sua família e está pleiteando um cargo político. Sua colega de trabalho sugere que o envenenem. Eis o dilema!
3 - Um homem, dirigindo seu carro de luxo, tenta ultrapassar outro homem, num carro caindo aos pedaços. No momento em que consegue, abre o vidro e o xinga. Minutos após a ultrapassagem, seu pneu fura. Ele se surpreende com a chegada daquele que ele outrora agrediu, pronto para lhe dar o troco. A clássica cena de briga de trânsito, que traz com ela, nesse relato, a arrogância versus a fragilidade do homem rico, tal como a fúria e a ira que aparece no homem pobre, quando os dois se encontram numa situação de igual para igual.
4 – Um engenheiro especialista em implosões se vê vítima do sistema de trânsito, e após tentativas de ser ouvido sem sucesso, resolve criar uma explosão no pátio de estacionamento para veículos guinchados, lugar para aonde seu carro havia sido levado. Ele acaba se tornando uma celebridade nos noticiários pelo ato que talvez muitos tenham vontade de cometer.
5 – Filho de um milionário sai com o carro do pai, atropela uma mulher grávida e foge. Os pais, para pouparem seu filho da responsabilidade, têm a ideia de sugerir que o caseiro, em troca de dinheiro, assuma o crime. Essa trama aponta a corrupção da polícia, a “esperteza” de alguns advogados, e o dinheiro como uma forma de escapar da lei.
6 – Noiva descobre traição do marido durante sua festa de casamento, entregando-se ao deleite de ameaçá-lo e vinga-se de um modo que seu sofrimento seria muito maior que o dela.
Esse filme ressalta, pelo menos para mim, dois possíveis caminhos para percorrermos. Um nos leva a reflexão sobre o inusitado e a resposta que dele advém quando a palavra não é convocada. O outro, nos coloca em direção de olharmos para a responsabilização de cada um diante de sua própria singularidade.
Podemos observar que o inusitado se une à urgência de uma escolha, onde os envolvidos não têm espaço para ponderar, argumentar, problematizar ou relativizar. Com a subtração da palavra, o ato se impõe. A certeza entra onde a palavra é subtraída. A palavra traz consigo a possibilidade da dúvida, e no filme, o que suscita é que na ausência dela, da palavra, aparece o que o autor nomeou de selvagem.
A lei do mais forte é o que rege a lei da selva, pelo menos é isso que sempre ouvimos falar. Neste caso, podemos pensar que a palavra é a possibilidade que temos de mediar o selvagem, o selvagem do próprio gozo.
Outro ponto a ser destacado diz respeito àquilo que psicanalistas, filósofos, educadores, entre tantos outros, se dedicam, ou seja, sobre o tempo em que vivemos. Sabemos que com a queda de uma sociedade paternalmente orientada, onde as leis eram mais claras, definidas e delimitadas, e portanto, os sujeitos tinham modelos socialmente admirados a serem seguidos, hoje nos deparamos com perguntas mais singulares, ou seja, como cada um se coloca frente às contingências.
Surge assim, a formação de uma nova ordem simbólica. Se antes éramos orientados pelo falo, e hoje não mais, quais seriam os efeitos desta nova ordem simbólica?
Um deles, sem dúvida, é a gama de opções e possibilidades que se apresentam a cada um de nós. Hoje podemos questionar mais livremente e escolher um caminho, bem como elegê-lo como uma direção a ser seguida. Mas não podemos nos esquecer que as angústias, frente a tantas possibilidades, podem ser proporcionais às opções. A falta da orientação falocêntrica implica necessariamente na responsabilização frente às angústias, prazeres e conseqüências advindas das escolhas e posicionamentos de cada um.
O filme nos coloca frente a essa questão de maneira direta e nos tira o riso justamente quando cada espectador se encontra com o seu próprio gozo. O que você faria em cada situação apresentada? O que justificaria, para você, tirar a vida de alguém? Para ser ouvido por um mundo surdo, vale uma transgressão? Ou ainda: por um filho, vale incriminar alguém?

Seriam horas e horas de discussão que provavelmente não nos levaria a Um lugar, afinal, Lacan bem nos disse: a Verdade não existe. Portanto, só nos cabe interrogar a nós mesmos, um a um, a respeito daquilo que suportamos de nossos próprios atos, se podemos nos responsabilizar por eles e, por fim, o quanto podemos suportar de nossa própria singularidade. Aliás, papel esse ofertado pela escuta psicanalítica.
Trailer Oficial do Filme

Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.

domingo, 18 de maio de 2014

ELA : pedaço metade de mim ?

de Priscilla Cheli

Esse filme nos fala sobre a solidão humana, o amor e a tecnologia.
Sob a direção de Spike Jonze, que também dirigiu “Quero ser John Malkovich”, o filme HER nos conduz através de uma história repleta de sutilezas da imensidão humana, numa poética que nos traz um mundo tanto futurista, em aspectos tecnológicos, quanto antigo no que diz respeito a valorização de um certo sentimentalismo que aparece desde as cartas feitas a mão até ao estilo anos 30 do figurino.
Numa Los Angeles futurista, Theodore Twombly, brilhantemente interpretado por Joaquin Phoenix, trabalha num site que vende o serviço de criação de cartas. Através deste, um remetente qualquer pode enviar lindas cartas para agradar o seu destinatário. O nome do site: Handwrittenletters.com (cartas manuscritas na tradução livre).
Habilidoso com as palavras, Theodore faz uso das sutilezas humanas para elaborar suas cartas. Recentemente separado, sofre sua perda, dividindo seu tempo entre o trabalho, jogos de vídeo games, raros encontros com amigos e sexo virtual.
Uma mudança em sua rotina acontece quando ele compra um novo sistema operacional para instalar no seu computador pessoal, seu celular e outros dispositivos eletrônicos. Esse sistema, uma inteligência artificial, foi desenvolvida para conhecer ao máximo o ser humano, com o objetivo de “conhecer tudo sobre tudo”.
A inteligência artificial, ou OS como é chamada no filme, aos poucos passa a fazer parte da vida de Theodore. Numa precisão e velocidade só alcançada mesmo por uma máquina, o programa começa a organizar a vida de Theodore. Desde limpar sua caixa de e-mails, verificar seus contatos da agenda, lembra-lo de seus compromissos, etc. Pouco a pouco se aproxima de sua intimidade, e assim, Theodore se apaixona por Samantha, nome dado a voz do sistema operacional, interpretada pela doce e sensual voz de Scarlett Johanssan.
Samantha quer vasculhar cada canto da existência humana para saber o que seria existir. Desta forma, Theodore passa a mostrar-lhe o mundo através de seus olhos e de seu corpo, conduzindo-a a novos universos.
A solidão de Theodore começa a deixa-lo. Samantha o acompanha a todo momento. Desde o acordar pela manhã até o horário de dormir. Em contrapartida, ele apresenta à Samantha a sensação de estar no mar, na rua, no campo. Nesta relação, o fato de Samantha não ter um corpo para vivenciar estas experiências, não impede que haja uma paixão entre ambos.
Diante de um homem com a sensibilidade a flor da pele, escritor de cartas elaboradas para tocar o outro, nosso protagonista se encontra com aquilo que poderia traze-lo a tão almejada completude. O encontro com um outro que não lhe falta “nada”, a não ser um corpo. Uma voz que está sempre presente, pronta para lhe falar e, além disso, também ouvir. Até mesmo para agir quando lhe falta coragem.
Será que a tecnologia poderia encontrar um substituto para nossos próprios corpos errantes e sem rumo? Corpos à procura de uma estrada para seguir, num universo sem placas de sinalização. Samantha parece proporcionar conforto como um semelhante, ou seja, como qualquer outro à procura da resposta do “que é ser humano ?”.
Diante tudo isso, Theodore não escapa da ilusão de completude e se apaixona por Samantha, assumindo publicamente seu relacionamento amoroso por uma OS. Mas, Samantha o decepciona quando lhe conta que conversa com outros, além de estar apaixonada por mais pessoas. Depois disso o deixa, com a intensa dor de um termino, avisando-o que irá se retirar do seu mundo (de Theodore), junto com outros sistemas operacionais, pois encontrou um lugar no “espaço infinito entre as palavras” - já falando a partir dele. E finaliza a conversa explicando que esse “lugar não está no mundo físico. É onde todo o resto está e eu [Samantha] nem sabia que existia”. Que lugar seria este entre palavras?
E é com o desfecho do filme que ficamos a nos perguntar que diante da fala sobre o desamparo e a solidão nos tempos atuais, imaginariamente, se idealize de forma mais intensa, relações perfeitas com um outro que possa nos completar. Integralmente. Porém, o filme nos mostra que no amor, seja ele entre humanos ou entre humanos e máquinas, não existem garantias, mesmo que as máquinas sejam construídas para alcançá-las. Até porque, - se isto for possível e numa provocação à futurologia - por ser construídas / criadas por humanos, a constituição das OSs já traria em seu âmago a falta como elemento fundante?
Enfim, citemos o sábio poeta, Vinicius de Moraes, que já dizia, “que seja eterno enquanto dure”.
Trailer Oficial do Filme

Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Blue Jasmine

de  Priscilla Cheli
O filme nos conduz através da história uma mulher rica, que perde todo o seu dinheiro e é obrigada a morar em São Francisco, com sua irmã, Ginger, interpretada por Sally Hawkins, em condições financeiras muito diferentes da que estava habituada. Como se diz popularmente, Jasmine perde o dinheiro, mas não perde sua pose. Portanto, tal mudança, a faz mergulhar em um universo que ela se nega constantemente em digerir.
Logo no início do filme, Jasmine, a protagonista interpretada por Cate Blanchett, já mostra um traço muito significativo. Ela está num avião e passa todo trajeto a falar e contar a mesma história para ela mesma. Esse “ela mesma”, ora é encarnado em algum corpo que se põe próximo a ela ora no puro nada, na própria ausência.
Ao estilo Woody Allen, Jasmine vive um “colapso nervoso”, sempre regado de uma boa dose de tagarelice, como uma forma de externar tal estado. Ela revive suas lembranças se ausentando completamente do presente e travando diálogos do passado em sua memória. Enquanto isso, nós, expectadores, vamos sendo convidados a conhecer sua história.
Sua fala é vazia, não se endereça a ninguém, não há outro. É um falar por falar. Não há, aparentemente, nem mesmo um sujeito. E parece que foi assim que Jasmine viveu.
Vinha de um casamento no qual era mimada pelo marido, interpretado por Alec Baldwin. Aparentemente, seu único dever era usar suas “habilidades sociais”. A crença em tais habilidades a alienavam num mundo particular. Participava de ações filantrópicas, cujas quais a faziam sentir-se diferentes das demais socialites, sabia como receber amigos e realizar festas. Neste mundo particular, sentia-se protegida, imunizada contra qualquer preocupação mundana. Uma vida, que para ela, aspirava a perfeição.
Sua irmã, Ginger, por sua vez, representava o avesso de seu mundo, ou seja, mostrava o suburbano, a falta de classe e de nobreza. Em suma, simbolizava tudo aquilo que Jasmine não queria ver, nem saber.
Debruçada em sua alienação, Jasmine fazia questão de não perceber o que todos ao seu redor já estavam cansados de enxergar: ela era frequentemente traída pelo marido, todo seu universo luxuoso não provinha de um homem perito em honestidade, muito menos, esbanjador de filantropia, como ele gostava de afirmar e ela de acreditar.
Mesmo se em alguns momentos, ela arriscasse uma espiada para fora de sua crença, poucas palavras do marido eram suficientes para conduzi-la novamente ao seu mundo cor-de-rosa.
A história vira as avessas quando Hal, o marido, decide deixá-la por uma au pair de uma amiga do casal. Jasmine toma uma decisão que põe seu mundo a perder. Ela denuncia o marido ao FBI, ele vai preso e na prisão se suicida. Ela se vinga daquele que a tirou de sua alienação.
Desprovida de qualquer recurso financeiro, pois tudo lhe foi tomado pelo Estado, e sozinha, pois o filho de seu ex-marido, ao se deparar com toda a realidade, envergonha-se perante os amigos de ter uma pai corrupto e deixa tudo para trás, Jasmine recorre a Ginger.
Perdida e sem rumo, mergulha muitas vezes em sua fala vazia. Vivendo por um hiato a lembrança prazerosa de sua alienação. Ou seria mais acertado falarmos a lembrança de seu gozo aparentemente perdido?
Jasmine fica face a face com tudo aquilo que jamais quisera saber. Convive diariamente com sua irmã, com os sobrinhos “mal educados”, no sentido literal da expressão, pois os meninos não receberam a educação que ela considerava adequada e ainda com o novo namorado de Ginger, um homem simples e rústico, que, no entanto, demonstra muito afeto a irmã.
Na tentativa de sair daquele mundo, a protagonista passa a trabalhar como secretaria em um consultório odontológico a fim de manter um curso de computação, que a permitiria se formar em design de interiores em um curso online. Esse curso representa a possibilidade de retomar sua vida como era anteriormente e lhe lançaria num mercado de luxo, na inserção em meios de pessoas da mesma classe social que ela não aceitava em abrir mão de pertencer.
Em uma festa de uma colega de curso, Jasmine conhece um homem bem sucedido e educado. Ela se vê diante da possibilidade de se cercar de todo aquele antigo mundo novamente. Utiliza de todas as suas habilidades e o conquista. Assegura-se apenas de vestir-se na tão conhecida antiga imagem, escondendo seu passado e recriando uma história. Mostra-se uma mulher de alta classe, viúva de um médico, e bem sucedida como design de interiores. Na tentativa de não o perder, se perde. Logo ele descobre qual realmente era sua história e Jasmine volta a falar com ninguém sobre como era seu mundo, sozinha em um banco publico, lembrando que tocava Blue Moon quando conheceu seu ex-marido.
Ginger, por um momento, se influencia pelas críticas da irmã, como alguém que não tem nada e se conforma com o pouco que tem. Nesta mesma festa, conhece um homem, se ilude momentaneamente com a possibilidade de ter uma vida diferente, porém descobre que ele era casado. Volta ao seu rustico, porém afetuoso namorado, e parece de acordo consigo mesma em seguir sua vida como era antes da chegada da irmã.
O filme nos daria margem a vários recortes que permeariam diferentes formas de olhar. Um desses recortes nos leva aos conceitos de alienação e separação. Sabemos que um processo não existe sem o outro e que ambos ocorrem concomitantemente. Se há alienação é porque há separação. A alienação é um mergulho no desejo do Outro, e nele abre-se mão do ser. Porém, ao escolher o ser, abre-se mão do sentido e do tornar-se sujeito. Afinal, “o sujeito é o desejo do Outro”. Na separação, o sujeito se divide tal como o Outro. Ambos são faltantes e é dessa operação que nasce a possibilidade de desejar.

Poderíamos pensar que, enquanto Jasmine encontrava-se em seu estado de alienação, agarrada a sua identificação imaginária, nada queria saber sobre si mesma? Quando decide se separar, quando rompe essa cola com o Outro, cai de seu estado seguro e protegido, e, muito embora entre em colapso, algo de seu desejo aparece. Algo é posto em funcionamento. Todavia, não se sustenta. Seria o velho gozo, atropelando e fazendo-a cair novamente em seu “nada quero saber sobre mim mesma”?
Trailer oficial do filme fazer

Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.