Mostrando postagens com marcador Arnaldo Domínguez. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Arnaldo Domínguez. Mostrar todas as postagens

domingo, 15 de dezembro de 2013

Puzzle - Compulsões Sexuais (toda compulsão é sexual)

de Arnaldo Domínguez de Oliveira

... a palavra em seu estado de representação...” Rui Filho
Uma compulsão é alguma coisa que empurra – zwang – à repetição de dizer, fazer ou pensar alguma coisa. Compete a nós, psicanalistas, “domar a compulsão de repetição” e transformá-la em motivo para recordação na ‘neurose de transferência’, uma neurose artificial.
Será também de nossa competência apoiar o fechamento do vão livre do MASP contra a invasão dos “craqueiros” e outros tipos indesejáveis? – lugar onde eu próprio conheci nos anos oitenta, um “Orixá” graças a cuja intervenção posso ainda estar neste país. Talvez sim. Hoje em dia eu nem frequentaria esse lugar urbano em horários impróprios.
Os humanos – segundo Freud em Novas Recomendações Sobre a Técnica, 1913 – somos a miúde adeptos à “política do avestruz”. Digamos, à razão cínica pela via da Bela Indiferença ou da Alma Bela. Seremos, então, os psicanalistas os domadores que colocaremos às rédeas da transferência nas pulsões indomadas? Entretanto, posto que o analisante não reproduzirá o esquecido ou recalcado como lembrança, senão que o atuará, ele não poderá se livrar da compulsão à repetição por ser o modo de recordar de que dispõe.
Em 1932, por ocasião das Novas Conferências apenas escritas em plena crise de falência da editora da IPA – quando esse autor acreditava produzir seu último livro – Freud associou os “sonhos de punição” ao supereu e os ”sonhos de angústia” à Compulsão de Repetição já ligada à Pulsão de Morte no Mais Além do Princípio do Prazer de 1920.
Ele próprio parece-me que se livrava da angústia da temporariedade numa compulsão pela escrita. (Tomara que nos contagiemos deste sintoma). E assim Freud enviou uma carta para Max Eitingon em 20 de março de 1932, onde dizia: “Sempre se deve estar fazendo alguma coisa, mesmo com o risco de ser interrompido – mais vale isso do que desaparecer em estado de preguiça”.
E por falar sobre a escrita eu assisti ontem (28 de novembro de 2013) no Teatro Paulo Autran, em São Paulo, o “Lado A” da peça “Puzzle”, dirigida por Felipe Hirsch. Um quebra-cabeça em três partes (A, B e C) apresentado para o Programa Brasil Convidado de Honra da Feira do Livro de Frankfurt neste mesmo ano. Um Brasil já não mais colorido, como àquele dos tempos de Carmem Miranda, senão o atual, em branco e preto.
Cíntia Moscovich na Zero Hora comentou: “’Puzzle’ mostra na Alemanha um Brasil tão de verdade que chega a ser constrangedor: sem concessão alguma”.
Hoje eu penso que Genet resulta quase ingênuo perante a “literobucetalidade” de uma escritora ou frente ao discurso de nossos guardiões da ordem estabelecida que gritam: “que se foda toda metapsicologia”. “A gente é burra mesmo!”. Aliás, “burros” porque somos machos!
Eu já havia redigido o texto que segue antes do espetáculo e vivi um déjavú ao experimentá-lo. Pois bem, vamos enfrente, não fui inibido por isso, senão que me senti empurrado: “O leitor abrirá Nossa Senhora das Flores como se abrisse um armário de um fetichista e encontrará ai, dispostas nas prateleiras, como sapatos que foram cheirados e beijados e mordidos cem vezes, as palavras úmidas e perversas que brilham com a excitação que elas despertam em outra pessoa e que nós não podemos sentir”. Jean-Paul Sartre
.Os sonidos do silêncio. As palavras a que Sartre se refere ao apresentar o livro de Jean Genet, “Nossa Senhora das Flores” (Ed. Nova Fronteira) são materializações de uma Wiederholungszwang (compulsão à repetição no dito ou na escrita), que se manifestam em letras substitutas dos objetos fetiches tais como seriam os sapatos mordidos. Digamos, então, que falar também é um gozo e que tais palavras gozadas podem comparecer na cena dialética para fornecer um brilho de excitação que muitos não poderemos sentir, mas poderemos escutar se suportarmos o silêncio presente nos meandros. Destas materializações Freud certamente condensaria em nota de rodapé nos Três ensaios: As fantasias claramente conscientes dos perversos (que, em circunstâncias favoráveis podem transformar-se em atos), os temores delirantes dos paranoicos (projetados em outrem num sentido hostil), e as fantasias inconscientes dos histéricos (descobertas por trás de seus sintomas através da psicanálise) e coincidindo até os mínimos detalhes em seu conteúdo. Entretanto, a teorização tantas vezes assumirá também um teor compulsivo invasor, por exemplo – em nossa prática psicanalítica – dos escritos, dos debates, das supervisões em grupo, etc., quiçá visando por um lado, preencher todas as frestas de angustia que o não saber produz em nós e por outro, provavelmente, seduzir o interlocutor quando posicionado nos extremos lugares de + 1 ou de não saber interessado (histérico). Seja como for, a clínica sempre se sobrepõe instrutiva para o bom escutador. Em nosso campo de investigação privilegiado pela relação transferencial a histérica insiste em nos tornar mestres e é expert em encurralar-nos contra a parede para exigir a produção de um saber. Decifra-me ou me devoro! Assim era enunciada a ameaça autopunitiva forjada pelos excessos de uma mulher obesa cuja demanda era endereçada a mim.
Em contrapartida, o perverso anuncia – pleno de mestria – seu direito ao gozo. Assim gravou uma mensagem em minha Caixa Postal do telefone fixo: “Yo tengo derecho a chuparte la pija y quiero saber quién será el hijo de puta que me podrá impedir!”, e essa enunciação de “direito” (do mal) representava o grito proferido depois que o paciente fora informado sobre meu recurso às leis jurídicas para me defender de sua ameaça erotomaníaca e de sua denúncia no Conselho Regional de Medicina alegando que eu o teria “seduzido no divã”, o que lho autorizava ao usufruto do caráter descrito por Freud (sem mencionar o Édipo): As Exceções. Antes do ato me fizera saber que, em sua adolescência havia perdido uma importante bolsa de estudos e fora detido (e humilhado) na delegacia de polícia ao ser encontrado praticando a fellatio no namorado da professora de Geografia (dele). Seu pai concordara plenamente com tal punição e sua mãe, que foi, durante a infância dele, amante do médico da pequena cidade utilizando-o como álibi perante as eventuais suspeitas do marido, desta vez não demonstrou a cumplicidade (devida) esperada por ele, pois se inverteu a dívida simbólica.
Escreveu Freud nos Três Ensaios: “O caráter histérico permite identificar um grau de ‘recalcamento sexual’ que ultrapassa a medida normal... Esse traço de caráter, tão essencial na histeria, não raro escapa à observação casual, ficando encoberto pelo segundo fator constitucional da histeria, ou seja, o desenvolvimento desmedido da pulsão sexual;... enigmática contradição – par de opostos – uma necessidade sexual desmedida e uma excessiva renúncia ao sexual”.
Não podemos esquecer que, para Freud, a fantasia (fantasma perverso) é positiva (consciente) na perversão e negativa (inconsciente) na neurose.
E na psicose retorna desde fora onde foi projetada de maneira hostil: uma paciente que vinha regularmente às sessões em que estava terminantemente proibida (por ela e por seu delírio) a emissão de qualquer som ensinou-se duramente a dar suporte a todo o seu silêncio constrangedor e ajudou-me a constatar que eu poderia suportar o meu próprio silêncio. Por outro lado, uma analisante de elevada formação intelectual me advertiu durante uma sessão: - Não leve tão em sério as minhas arguições. Elas, muitas vezes, se exibem usando lingerie vermelho!
Contudo, suportar os silêncios não é tarefa muito simples. Ainda mais, quando eles se apresentarem na forma de desafios, pois nestes casos competirá ao analista fazê-los falar ou calar, dependendo da motivação. Cito como exemplo, o torpedo enviado por outra analisante que disse: - Desculpe, eu não vou... desculpe por perturba-lo... Agradeço mais não vou... Eu só quero desaparecer e silenciar
E essa proposta de silêncio seria um grito de desespero ou uma constatação suicida? Há um ruído que pode ser ensurdecedor nestes silêncios. Os humanos somos muito ruidosos porque a pulsão sexual, mesmo surgindo na calada da noite, é sempre barulhenta. Apesar de que quando se mostrar charlatã pode também nos enganar com uma roupa que não conseguiremos ver se não pudermos fechar os olhos (da pulsão) onde o rei está nu!
Primum non nocere!
Os antigos celebravam a pulsão e se dispunham a enobrecer com ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade pulsional em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do objeto”, Freud, Três Ensaios – Nota de rodapé acrescentada em 1910.
O tema do diagnóstico em psicanálise é sempre um assunto de grande relevância, sobre tudo, para que não provoquemos surtos psicóticos por imperícia. Mas, muitas vezes, tal debate pode apresentar-se qual um modo de tamponar o que falta: o não saber. No discurso da sexologia oitocentista e persistindo ainda na teoria freudiana, a perversão referia-se às condutas sexuais cuja finalidade era diferente da procriação. O avanço promovido pela psicanálise consistiu em torna-la um elemento sempre presente seja de maneira negativa ou positiva, em todos nós.
Para Lacan, no Seminário IV (As relações de objeto), a perversão está considerada em relação ao falo e à identificação. O paradigma é o fetichismo, pois o fetichista se identifica com o falo como objeto imaginário que completa o desejo materno. Primeira fase do Complexo de Édipo (Seminário V, As formações do inconsciente). Ser ou não Ser, 1957/58. No Seminário X, sobre a Angústia, o falo será o significante do desejo, causa do desejo: objeto ‘a’ e muda assim o estatuto do fetiche que passou de “ser o falo” a ser o “objeto causa do desejo”. No Seminário XVI (De um outro ao Outro), Lacan eleva a perversão ao grau de estrutura. Posição do sujeito perverso: identificação com o objeto ‘a’ para servir, de tal maneira, como instrumento do Gozo do Outro. Um bom exemplo disto é o discurso de Feliciano no atual comando da Comissão de Direitos Humanos no Planalto Central do país com cinco mil alto falantes!
Eu acrescentarei aqui, a estes critérios lacanianos para pensarmos sobre a perversão, a constatação discursiva da negação da alteridade e, em consequência, da subjetividade que constitui o outro enquanto tal, diferente de mim, indo, assim, do sexual ao social.
Digamos como exemplo, Maluf ao relatar sua lua de mel ocorrida há 58 anos antes da entrevista diz: eu me casei em tal data, viajei para tais e tais lugares, fiquei em tais hotéis, etc. Parece-nos que a esposa não participou dessa experiência, ao menos no discurso dele não há lugar para isso. É o UM de dois.
Pois bem: sob a desconfiança diagnóstica de “perversão” foi apresentado, numa “hora clínica” (no CEP), um recorte referente ao atendimento de uma mulher casada com seu primo irmão quem também tinha um caso amoroso com a cunhada (irmã da esposa) dentro da residência do casal. Ela, por sua vez, iniciara um relacionamento com um Policial Militar, guarda da creche onde deixava o filho. Os encontros sexuais aconteciam pela manhã e dentro do carro dela. O marido, desconfiado, colocou uma escuta no carro e descobriu tudo. Depois disso, ele ficou ainda mais apaixonado e excitado o que o fez procurá-la sexualmente a toda hora. Assim, entre o policial pela manhã e o marido à tarde e à noite, ela chegou à análise chorando e se queixando:
- Não aguento mais transar!
Porém, não conseguia parar, afinal, o marido afirmara: “Você é uma mulher muito gostosa para ser somente minha!”. E a analista pensou: “o homem se reconhece amando quando sente ciúmes”?
Não conseguir parar coloca a questão desta mulher numa dimensão temporal. É o tempo que não para!
Conforme Hegel, o primeiro monista, a temporalidade está incluída na razão no pensamento ocidental. Na origem do ser se encontra o espírito (existência em si). Para ir em direção a si o ser tem que se expressar: dirigir-se à matéria> natureza> história> homem> consciência> filosofia> e por fim, numa elipse recuperar a história do espírito. Em Hegel, o desejo é sempre desejo de desejo (Fenomenologia do espírito). Já para Marx o espírito surge como expressão da consciência humana e não como a origem. Lacan demonstrou como o Eu vem de fora, no Estádio do Espelho, sendo uma ilusão na qual eu me alieno para poder me reconhecer: quem sou eu?
Quero dizer com isto que “o princípio de identidade é diferente para a psicanálise e para a ciência, com o qual digo que a psicanálise não é uma ciência” afirmou Graciela Brodsky em Córdoba (16 de outubro de 2006) ao falar sobre “A diferença sexual na experiência analítica”.
Para a psicanálise freudiana, o espírito que age inconscientemente na sobredeterminação do funcionamento do Eu é a Fantasia Inconsciente - o Fantasma - realidade do inconsciente enquanto sexualidade (falta em ser). E é próprio da lógica do Fantasma que os sujeitos inventemos um lugar incestuoso que funcione qual “identidade” destinada a negar a falta. Nesse caso relatado pela paciente foi: a “gostosa”.
A proposta do fantasma é a realização do incesto e como múltiplos fantasmas em massa constituirão o social e possível supor que a realidade social em que estamos inseridos tenha estrutura fantasmática regressiva, ou seja, contra a lei. Podemos afirmar que esse social seja um estado de exceção: de destruição. Ou, pelo menos, um estado pleno de direitos (sem deveres) para alguns “eleitos” representantes da Vox Pópuli. Um estado de perversão. Por isso é fundamental, de acordo com Freud, que exista ao menos uma lei reguladora que controle o mal estar na civilização: não matarás! Entretanto, essa lei falta (falha) em muitas circunstâncias em nossa cultura o que faz com que nos tornemos cada vez mais “matáveis” conforme afirma Giorgio Agamben em seu escrito sobre o Homo Sacer e a vida nua.
Ao dizer de Albert Camus sobre o mito de Sísifo, é essa dor sem escolha (dor de existir) que o obriga a realizar um trabalho inútil e sem esperança e o transforma em proletário dos deuses, trágico porque consciente: “a tragédia começa no momento em que se sabe”. Daí a importância que eu outorgo ao citar sempre o imperativo categórico formulado pela mãe romena do meu amigo Schlomo: melhor você não sabe! A paixão pela ignorância que pretende defender pela via do verleugnung (desmentido) que A vida é bela!
E eis que começou a tragédia dessa analisante “gostosa” porque veio para construir um saber. O que também a situa dentro da perspectiva ética do desejo. Veio em busca da lei do desejo para escapar da lei do gozo.
Comparemos, então, este breve relato clínico com uma matéria publicada na http://revistatrip.uol.com.br/revista/179/reportagens/Ruth-pega-geral.html, em 01/10/2013 e que me foi sugerida pelo jornalista Romulo Osthues, a quem agradeço profundamente.
Ruth pega geral: Ruth, 52 anos, professora, transa com até 41 homens numa noite sem cobrar e sem perder o tesão. São sessões de gang bang. Durante a reportagem um homem sai cambaleando da suíte nomeada “O cantinho da Ruth” e desabafa: “Porra, merrrmão, foi surra de boceta, foi surra!”. Quem bateu no grandalhão foi Ruth! Escreve Lino Bocchini na revista, como se fosse um espetáculo de luta. E talvez o seja, não?
Novamente o tempo: “A celulite já está aparecendo, e as ruguinhas também... mas os peitinhos continuam em pé e a bundinha, durinha, fazendo o maior sucesso. A vontade de trepar segue no auge, e minha resistência para ser fodida diversas vezes seguidas não diminuiu. Aliás, acho que aumentou!”
Ela se tornou uma celebridade na cena swinger carioca e na internet ganhou fama como Ruth36. O marido explica que é por ter transado com 36 homens numa noite só, mas já bateu o recorde. Agora são 41.
A explicação de Ruth sobre as origens desse espírito erótico está na infância, quando brincava de médico com os meninos do prédio. “Hoje eu adoro quando tem uma meia dúzia de homens em torno de mim, me usando e abusando”. Festas liberais! Sou total flex! (Homens e mulheres), afirma Ruth.
As pessoas podem assistir tudo o que rola dentro do Cantinho da Ruth através de um vidro e sentadas confortavelmente em uma sala de estar.
Ruth aguarda com ansiedade as quintas feiras, quando tudo acontece e ela tem que estar “gostosona”. Gosta de se definir como uma “exibicionista completa”. Conta com alegria como teve um caso amoroso com oito fuzileiros navais ao mesmo tempo. De acordo com o repórter, narra isto com a mesma naturalidade com que poderia falar sobre o café. Na última quinta – diz – morreu de prazer durante um gang bang anal com 15 homens.
Todavia, considera que as melhores transas da noite são, depois, com o marido que não tem ciúmes em absoluto. Porém, faz uma ressalva: evita o sexo quando está menstruada.
A matéria esclarece: se trata de um casal de vida social normal, profissionalmente bem sucedido, pais dedicados e, além disso, muito educados e simpáticos.
Mas o marido alerta: “Ela gosta de carinho, de cuidadinho. E não gosta dessa história de tapa na bunda, que puxem o cabelo ou apertem o bico do peito muito forte. Isso corta o barato dela”.
E assim falava Ruth VIP: a Very Important Puta.
Finalmente a reportagem dá a palavra aos psicanalistas, que explicarão: relação anaclítica, Mauro Hegenberg, sem querer ser politicamente incorreto. Insaciabilidade e voyeurismo constituiria o casal, sendo o único limite, a menstruação. Sueli Gevertz. Ruth oferece de graça aquilo que a sociedade de consumo cobra, diz Jacob Pinheiro Goldberg. Ruth tem uma compulsão, conclui Luiz Alberto Hans. E postula uma contabilidade que para mim soa estranha: transar com cinco é uma coisa, já com 30 é outra. (?)
Os psicanalistas também gostamos muito de falar e às vezes beiramos pelas bordas de certo exibicionismo. Quiçá seja porque o dispositivo nos obrigue a permanecer tanto tempo em silêncio. Todavia, neste caso, Ruth não quer saber (não demandou nenhuma explicação, pois ela “sabe” gozar) e é provável até que se divirta com os disseres dos peritos. Porque, para Ruth (a despeito de Lacan) a Relação Sexual existe! E é nessa tão estranha contabilidade incompreendida por Hans – para ela, certamente, um pequeno Hans – que ambos (ela e seu marido) realizam em Áurea Proporção, o encontro com o Número de Ouro da substância gozante: o objeto “a”. E a perspectiva da Castração apenas acena marcada numa existência temporal (futura) que será postergada enquanto a bundinha e os peitinhos permanecerem duros. Ou seja, enquanto possa se manter – dentro de uma lógica masculina – a Idade Viril.
Eu desconfio que seja dentro desta lógica que assim caminhe a humanidade globalizada. E que esta represente a tal corrida contra o tempo proposta pelo capitalismo tardio, pós-modernidade, globalização, neoliberalismo, para todos os proletários, atuada por Ruth36 às quintas feiras num jogo incessante de repetição que não resulta tão estranho se nós levarmos em consideração a parte que nos cabe neste latifúndio da existência contemporânea. Como define Bauman, tão líquida. Tanto, que escorre pelo vão de nossos dedos entrelaçados. Afinal, embora ainda não fôssemos capazes de inventar algum novo discurso eficaz sobre o amor, já tornamos a enobrecer a pulsão, como os antigos, mas quiçá só gozemos degradando o objeto. 

Itaquaciara, 16 de novembro de 2013

Arnaldo Domínguez de Oliveira é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida e médico de formação.

sábado, 1 de junho de 2013

Depois De Tudo : Homossexualidade e Envelhecimento

por Arnaldo Domínguez

“Atraso. Hoje eu acordei tão ontem
que me esqueci. Um amanhã já passou por aqui” 
– Samuel Malentacchi

Os organizadores da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo gentilmente me convidaram para falar sobre o tema destacado no título deste artigo. Eu possuo mais de um atributo que, supostamente, me autorizaria a tratar do assunto em questão. Fui médico geriatra do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) durante boa parte da década de 1980, em cujo entardecer, iniciei estudos de Gerontologia Social no Instituto Sedes Sapientiae e, logo a seguir, Sexualidade Humana no Instituto H. Ellis. Ao mesmo tempo em que ingressava na formação informal em Psicanálise, iniciava minha análise pessoal e participava da militância do Movimento GL de São Paulo, por intermédio de nosso Projeto Etcétera e Tal, debatendo ativamente em favor daquela sigla que ofereceria mais visibilidade às lésbicas em vez do anterior Movimento Brasileiro de Homossexuais, tão “masculino”.

Um bom lugar para início de conversa.

Movido por esses estímulos, fui à internet em busca de trabalhos teóricos a respeito do assunto para poder me atualizar dentro do meu escasso tempo “disponível.com”. E me surpreendi ao constatar que a maioria desses estudos trata de temas relacionados à saúde, contágio do HIV na terceira idade, idosos portugueses que acabam sendo separados dos parceiros ou das parceiras de longa data quando necessitam do amparo institucional e se deparam com locais de discurso oficial homofóbico e heterossexista. Idosos brasileiros que nem sequer podem contar com essas instituições preconceituosas e, quando dispõem da possibilidade de consultar um médico, não revelam sua “orientação sexual”. Dados ainda semelhantes aos de uma pesquisa que realizei entre 1990 e 1992 e que foi, na ocasião, amplamente difundida em revistas científicas e outras destinadas ao público em geral1.
Um dado significativo de minha pesquisa era que 70% dos médicos clínicos consideravam a homobissexualidade uma doença, e 50% não perguntavam nada sobre a sexualidade dos pacientes nas consultas. Os médicos não perguntam e os pacientes não falam. Silêncio promissor. “Na escuridão, surge o vaga-lume; NO SILÊNCIO, O GRILO”, escreveu Júlio Paulo Calvo Marcondes, o Faquir Loquaz, em publicação póstuma realizada para homenageá-lo, dentre outros, por sua namorada que foi minha analisante. Ela me presenteou com esse livro tão encantador.

E o grilo é: tudo indica que ainda persiste um panorama desalentador para todos/as os/as velhos/as, independentemente da modalidade de investimento libidinal de cada um deles. Provavelmente, agravada nos (ditos) homossexuais, pois, se na atualidade são idosos, certamente, pertencem a uma geração muito mais oprimida pela intolerância social e familiar, como revelam os entrevistados por Naélia Forato e Romulo Osthues, jornalistas que foram a Buenos Aires coletar depoimentos de casais homoafetivos cujos interesses rondavam a igualdade pelo direito do casamento civil2. Cidadãos de primeira, agora – finalmente –, amparados pela lei que os autorizou a se casar depois de uma parceria de mais de 40 anos.
Em contrapartida, as agências de turismo contemporâneas oferecem roteiros gays de maneira pouco discriminatória ou até claramente destinada aos “coroas”. Os mais velhos, quando conseguem uma boa colocação profissional, ganham mais e gastam menos com despesas escolares, médicas em planos de saúde para filhos etc., representando uma boa fatia para o “Deus Mercado” poder morder.

Então, nesse recorte que ora inicio, já tenho como separar dois aspectos da sexualidade que podemos destacar: o que a nega, considerando que velhice e sexualidade são critérios antagônicos; e o que a valoriza, ao apostar nesse público consumidor, que dispõe de bons recursos. Como disse doutor Casimiro, um obstetra de 94 anos, na ocasião em que o convidei para falar sobre “sexualidade na terceira idade” – se eu não me equivoco, em 1989, no Sedes Sapientiae: “Para se manter sexualmente ativo na minha idade, é preciso dispor de uma boa aposentadoria!”. Todos riram!

Todavia, antes de avançar mais nesse raciocínio, vou lhes apresentar uma rápida noção do que é sexualidade em Psicanálise. E, para elaborar tal critério, tenho de ir aos primórdios dessa disciplina. Viagem rápida.

Envelhecer leva muito tempo, contudo, geralmente, quando percebemos o tempo, que não para, esse já passou enquanto nos distraíamos em busca do objeto perdido. Freud concluiu que o objeto está perdido para sempre quando abordava o discurso da pulsão nos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, publicados em 1905. Sendo sexual por excelência a pulsão, nisso consiste a diferença fundamental com respeito ao instinto. A pulsão não ter objeto significa que qualquer coisa pode ocupar o lugar de “causa do desejo” e, frente à impossibilidade da “relação sexual”, no sentido de incompletude narcísica, representar o objeto perdido.

Com essa descoberta fantástica, Freud elevou à condição de objeto digno da designação de “erógeno” qualquer segmento do corpo, qualquer peculiaridade que pode ser transformada em uma significação fálica: seios, bunda, pênis, beleza, juventude etc. Mas, também, podem uma ruga, uma estria, uma calvície, uma voz etc., desde o real, desempenhar essa função imaginária e simbólica. Como o objeto do desejo é metonímico3 e empurra a pulsão a exercitar múltiplos deslocamentos, encontraríamos, aqui, uma razão para a poligamia (denominada promiscuidade em muitos contextos moralistas), para a compulsão sexual, para o consumo de produtos nos sex shops ou nos mercados do sexo.
Por outro lado, diferentemente do instinto que está atrelado sempre aos ciclos circadianos4 da biologia e, portanto, alienado a uma sobredeterminação bioquímica pré-datada, a pulsão é atemporal e, em consequência, não envelhece a despeito do corpo. Eis o trágico da condição sexuada da humanidade.

Um freio simbólico a esse eterno deslocamento é o amor. Outro, imaginário e da ordem da inibição, é o isolamento ou o adoecimento que aparecem como despedida no famoso tango: “Adiós, muchachos, compañeros de mi vida, (...) mi cuerpo enfermo no resiste más”. O amor, quando é por outro, implica em uma renúncia ao gozo imposto pela pulsão. Se, para Freud, a pulsão era uma mitologia que funcionava como intermédio entre o biológico e o psíquico, para Lacan, trata-se de um dos conceitos fundamentais da Psicanálise destinado a intermediar a articulação entre o corpo e o significante. Portanto, também, podemos avançar desde o narcisismo do amor rumo à renuncia desse gozo autoerótico e privilegiar na estrutura um lugar para a alteridade. Para o “hétero do amor”, algo tão difícil de imaginar.
Um dos fins principais da experiência psicanalítica consiste na perspectiva de mudança na posição subjetiva, digamos, naquilo que da gramática estávamos atrelados às bordas da pulsão. Freud apresentou-a ativa, passiva e/ou reflexiva. Por exemplo, do olhar: ver, ser visto, ver-se. Do sadismo oral, protótipo do amor materno: comer, ser comido, comer-se. Assim, estabelece-se no fantasma do sujeito uma posição subjetiva que aprisiona. Mal visto, mal comido, para pensarmos pela via do pior, que é o mais comum na clínica. Ou, então, como se diz popularmente, “fodido e mal pago”, “cagado” etc. Resulta muito difícil e trabalhoso modificar essa sobredeterminação – psíquica no caso. Tanto quanto sua oposição ativa e cínica: “Cagando e andando”; “Perco o amigo, mas não perco a piada”; “apertei a tecla ‘foda-se’”.
A grande maioria dos falantes quer parar de sofrer (como prometem os religiosos), mas não topa abrir mão dessa velha e conhecida prisão gramatical na qual goza. Digamos que são pouquíssimos os fala-seres (como define Lacan, os “parletres”) que podem tornar-se “hétero” – permita-me brincar com o sentido desse significante, sem pretender ofender a nenhuma militância por direitos humanos. Se hétero indica que haverá um lugar para o outro sexo (a sexualidade do outro com todos esses meandros) e, assim, na parceria, sejamos (por fim) dois, será preciso que haja uma renúncia em buscar “alguém que caiba no meu sonho”, como cantava Cazuza. Eis aqui a única perspectiva de que o amor seja por outro e de que se torne possível o encontro amoroso que rompa com a solidão humana cada vez que ele (o encontro) se produza.

A grande maioria dos humanos – pertençam à categoria sociológica que pertencerem – chega à velhice sem ter sequer se questionado a tal respeito. Nada como acompanhar os (não) submetidos ao público através das Comissões da Verdade para compreender, perfeitamente, que os canalhas também envelhecem. Imutáveis.

Pimenta para os olhos
Yo soy como el chile verde, llorona, picante, pero sabroso...”
Trecho da música mexicana “La Llorona”.

Pesquisando pela internet descobri:

- A pesquisa de Júlio Assis Simões, “Homossexualidade masculina e curso de vida: pensando idades e identidades sexuais”, do Departamento de Antropologia da USP.

- Andrea Moraes Alves, em “Envelhecimento, trajetórias e homossexualidade feminina”, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

- Siqueira, M. S., em “Arrasando horrores: uma etnografia das memórias, formas de sociabilidade e itinerários urbanos de travestis das antigas”, tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. Uma de suas entrevistadas, Sarita, conta que, pela Cinelândia “andávamos de uma ponta a outra, desfilando para lá e para cá. Foi quando eu conheci todo mundo. Fui para a Cinelândia, conheci a Rogéria, a Valéria, a Eloína e a Veruska, aquela turma da antiga, mesmo. Foi ali que eu me achei, ver que aquilo ali era o meu ambiente”.

- O curta-metragem “Depois de Tudo” (2008), dirigido por Rafael Saar e que tem Nildo Parente e Ney Matogrosso como intérpretes dos personagens principais. Em síntese, é apresentada uma relação (pelo visto, longa) de dois homens idosos que se encontram para um jantar trivial, para assistir ao mesmo filme, “Quando voam as cegonhas”, pela décima vez, para transar, calmamente, como corresponde a dois velhos e, depois, separar-se mansamente sem saber quando se reencontrarão. O velho e conhecido “me liga, tá?”, que remete ao “olá, como vai?” do “Sinal Fechado”, de Chico Buarque. Ou que remete aos “Diálogos sobre os prazeres do sexo”, obra em que o filósofo Michel Foucalt afirma que o melhor momento do amor (homoerótico) é quando o amante vai-se embora no táxi.
O filme é bonito, tranquilo. Apresenta sem pudor os corpos envelhecidos de dois amantes masculinos. Mas também apresenta uma “comidinha caseira”, insossa, que origina a pergunta: – O que falta?
Pimenta! Responde Ney, depois de provar sem se queimar.
Tá bom. Vai tomar seu banho!

E eu me recordei, mais uma vez, das espanholas de minha infância que haviam ido tão longe de sua terra natal, negociadas entre os pais e os viúvos galegos da Patagônia Argentina. Contou-me uma delas, que, desde Buenos Aires, ao descer do navio, telefonavam para as amigas que já estavam lá e perguntavam se o candidato a marido (por procuração) tinha “sal e pimenta”. O que significava, decodificando, “posses econômicas e potência sexual”. Caso não os tivesse, era melhor ficar na capital como domésticas, e até nos lupanares (do amor, onde o coração é o principal proxeneta).

Que falte pimenta, como sugerido nesse filme, talvez seja revelador do fim de “A idade viril”, como escreveu Michel Leiris, dedicado a Georges Bataille. (Ed. Cosac & Naify):

A seguir, a ideia de morte, na qual mergulhei pouco a pouco, pensando no declínio inevitável daquela mulher alguns anos mais velha que eu. Nunca, antes de ter perdido a virgindade, eu havia me preocupado a tal ponto com o envelhecimento. Essa obsessão me veio a propósito do ato erótico que, ao cabo de certo tempo, me pareceu uma derrisão, pensando na feiura que nossos corpos, capazes até então de serem vistos sem aversão, acabariam por adquirir. Cheguei assim a uma espécie de estado místico, condenando – em nome da morte – o amor físico em geral, sem ousar confessar-me claramente que era de um amor particular que me cansava. Dessa época datam minhas primeiras aspirações à poesia, que eu via, propriamente falando, como um refúgio, um meio de atingir o eterno escapando à velhice, e de recuperar, ao mesmo tempo, um domínio fechado e exclusivamente meu, no qual minha parceira não teria como se imiscuir”.

Para o meu gosto, e aqui vai uma provocação, essas são revelações absolutamente masculinas, que não permitem que a mulher (o feminino) venha a se imiscuir, a não ser por meio da poesia. Assim sendo, a pimenta que falta é a da irrupção da feminilidade na relação. Da falta em si que abra perspectivas para um universo da criação.

Que uma relação finalize nesse “acordo de cavalheiros”, sem nunca uma espelunca, nunca mais blues, nunca mais romance, nunca mais drink no dancing, nunca mais feliz, me parece absolutamente desolador. Uma espécie de “estamos conversados”, “passar bem”, sem o grand finale de um desencontro fundamental – sobre o amor que se move, escreveu a poeta Hilda Hilst. Da dimensão da feminilidade que faz transitar o transitório da nossa condição humana.

Por fim
MEU QUERIDO E AMADO JOVEM ADOLESCENTE, não liga não. Sempre está tarde demais, sempre é hora de ir embora, mas eu – já são horas de acabar de ser jovem
Júlio Paulo Calvo Marcondes, em Faquir Loquaz

[Uma dedicação especial à] todos/as aqueles/as que colaboraram para a realização oficial do evento de 1995, quando, na Praça Roosevelt, em Sampa, nós colocamos “triângulos rosas” nos braços dos que por ali passavam. O sentido era muito sério, mas, por fim, o povo ria. Transformávamos em comédia a tragédia da vida cotidiana de tantos/as – não – falantes do que, quase que até então, nem ousavam dizer seu nome: o amor. Esse célebre informal que, insistentemente, é aprisionado em campos de concentração.

Afinal, será o amor, o trabalho ou a velhice que nos farão livres?

Como disse Rita Lee, “livres outra vez no xadrez”. Shalalá-shalalá..


Itaquaciara, 12 de maio de 2013.


"Depois de Tudo” (2008), de Rafael Saar - com Nildo Parente e Ney Matogrosso

ARNALDO DOMÍNGUEZ é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida

sábado, 30 de junho de 2012

A Homophobia

de Arnaldo Domínguez
Tudo, todas as coisas que eu entendo,
eu entendo somente porque amo”.
Leon Tolstoi.

A moralidade é uma resposta perversa no neurótico, no sentido de perversão de caráter. Assim, ao situá-la em tal campo, considero que tal resposta representa uma “contra-vontade” manifesta e atuada, semelhante ao que Freud teorizou na Comunicação Preliminar.
Trata-se do negativo da expressão do desejo. Por exemplo, a mãe de uma jovem analisante disse-me, com ostensiva reprovação: “Ela é muito sensual!”. Corroborando a reação, também descrita por Freud, desse momento em que a sexualidade da filha está em clara ascensão e a da mãe, em declínio.
O que denominou-se “Homofobia”, com o propósito de definir a formação reativa originada no preconceito e intolerância contra aqueles/as sujeitos que amam e/ou gozam de modo diferente ao exigido pelas convenções morais, não pertence, definitivamente, ao capítulo das fobias, senão, das perversões.
A fobia é um sintoma que se instaura no sujeito perante o declínio da função paterna e o aumento da onipotência materna. Abordaremos e aprofundaremos de modo multidisciplinar esta questão, numa Jornada sobre “Mal-estar na cultura: o medo”, que realizaremos em São Paulo e em Ilhéus, no próximo mês de setembro, junto à comunidade indígena Tupinambá.
Nessa particularidade o pequeno Hans foi sagazmente revelador. Seu pai, cúmplice e amoroso, demandante do reconhecimento e da aprovação do Outro e sua (bela) mãe, insaciável e insatisfeita, pronta para devorar o seu produto.
Freud apresenta-nos a atitude do discípulo das quartas-feiras, pai de Hans – na Análise de uma fobia em um menino de 5 anos, texto publicado em 1909 – cindida entre o 'carinho afetivo' e o 'interesse científico'.
Estariam, Freud, Max e Herbert Graf (Hans) em busca de reconhecimento e de amor?
Uma importante perspectiva de “fixação” ao significante, o que situa tal busca do lado do inconsciente estruturado como uma linguagem, ou seja, mais próximo do amor que do mais além do princípio do prazer (Gozo, em Lacan), é apresentada por Elisabeth Roudinesco no dicionário da psicanálise que elaborou com Plon.
O sintoma de Hans consistia no temor dele com respeito à queda e a mordida dos cavalos. Quando completou seu 3º ano de vida Hans ganhou um cavalo de balanço, significativo presente do Professor Sigmund Freud, amigo da família. Herbert, o Grande Hans, morreu aos 70 anos de idade, vítima de uma queda e sofrendo de uma lesão das vias urinárias (wiwi-macher: o faz-pipi). Afecção que certamente o “morderia” ao urinar.
Dentre muitas contribuições importantes, o Professor também procurava neste relato de caso que supervisionava (embora Herbert dissesse, no final de sua vida, que o pai era apenas o intermediário da sua análise infantil), a psicogênese da homossexualidade masculina. Finalmente pode constatar, com alívio (?), que Hans se transformara num “homem de verdade” (?) com tendência viril a poligamia.
Me resulta preocupante – para dizer o mínimo – que muitos/as psicanalistas permaneçam prisioneiros da moral (vitoriana?), logo, surdos psiquicamente, e escrevam que os homens são polígamos por natureza (próximos do pólo do gozo no matema lacaniano do fantasma: $<>a). Isto confirmaria o que afirmou Lacan, que “o amor é a perversão polimorfa do macho”? O amor está no pólo do sujeito barrado, que o oposto. Por isso que amor e gozo não se entendem muito bem, como tampouco amor e uniões consagradas. Podemos confirmar esta assertiva num texto de Freud denominado “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”, aonde apresenta uma das primeiras sínteses da sua teoria do Édipo.
Será que os ditos machos, quando investem no amor, regridem tanto?
Também muitos teóricos afirmam que as mulheres, mais ligadas ao amor, são fieis e monogâmicas.
Não é bem isso que a soberania da clínica revela para o bom escutador.
Pois bem, retornando à fobia. Ela nos é apresentada como sendo a transformação da libido em angústia (irreversível) e que encontra um objeto substituto no material chamado fóbico.
Os designados “homossexuais” seriam substituto do quê na homofobia?
Quando não somos capazes de entender alguma coisa – alerta Freud – procuramos desvalorizá-la com críticas”. E cita como exemplo o anti-semitismo e o sentimento de superioridade masculina perante as mulheres.
Teremos compreendido o que Hans nos revelou através dos escritos de seu pai?
Fico com medo porque você (papai) me disse que eu gosto da mamãe, quando eu gosto é de você!”
E o Professor entende que “Aquilo que é hoje o objeto de uma fobia no passado deve ter sido também a fonte de um elevado grau de prazer”.
O homossexual masculino identifica-se com a mãe, teoriza Freud, e gostaria de repetir as ternuras recebidas.
Hans responderia algo assim: Ah! Esses cavalos (adultos) que estão tão orgulhosos! Tenho medo de que caiam.
Medo de que nada disso se sustente.
Quem, afinal, não gostaria de receber de novo todas essas ternuras? Certamente que os perversos não gostariam, por isso são tão acossados pela solidão.
E a perversão polimorfa dos machos Hans resolveria com a seguinte solução: O papai se casará com a vovó de Lainz e eu com a minha mamãe. E pronto.
Porém, embora constatemos que a fobia, que se produz num espaço intermediário em que a barreira contra o incesto, ao mesmo tempo em que se faz sentir, não constitui ainda verdadeiramente uma interdição, permanecendo então um lugar de violência, opõe-se diretamente à perversão.
Quero dizer, frente à falta no Outro, o objeto fóbico protege do desaparecimento do desejo enquanto que o fetiche representa a condição absoluta do gozo. O fóbico defende-se do gozo aferrando-se ao amor com unhas e dentes. O perverso, ao contrário, defende-se do amor transformando-se num Mestre do Gozo. Esse que sabe “tudo”.

Dentre tantas conclusões apresentadas por Freud na discussão da análise de Hans, destaco duas.

1º, a propensão humana ao sadismo (crueldade e violência), suprimida na fobia e desenvolvida maravilhosamente no texto do Mal-estar na cultura. “O homem tenta satisfazer sua necessidade de agressão à custa de seu próximo, explorar seu trabalho sem compensá-lo, utilizá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, infligir-lhe sofrimentos, martirizá-lo e matá-lo”.

2º, o desejo de ser maior (Hans) representado pela hipótese que de existe somente um tipo de órgão genital.
Não estaríamos, aqui, autorizados a afirmar que a “Inveja do Pênis” é, fundamentalmente, masculina, então?
Assim entenderíamos porque o genital masculino se “regozija de ser olhado”, como aponta Lacan. Olhado como ímpar, como um pai. (Père).
Uma versão do pai. Père-version.
Os cartazes colocados nos mictórios masculinos dos Shoppings que proíbem atos obscenos, referem-se ao olhar.
Não olharás teu pai nu”. Como ocorreu ao filho de Noé.
Tampouco “olharás tua mãe nua”, como Acteão e Diana.
Se foi proibido isso implica em desejo (exacerbado) de olhar.

Antes de finalizar esta síntese, emitirei uma antítese.
Direi que, em Hans, brincar de morder o pai significava identificar-se com a mãe (ao contrário do que postula Freud), já que o pai é o cavalo que cai.
E sentar-se sobre a girafa, mais do que tomar posse da mãe (de novo, Freud), indica identificar-se com o pai quem, ao cair, esmaga Hans, transformado em girafa amassada.
Se o pai (simbólico) não se sustentar, o sujeito terá que enfrentar o vazio absoluto da psicose. E em lugar de fantasia, terá o delírio e a alucinação. Horror manifestado tanto pelos neuróticos quanto pelos perversos, cada qual com sua defesa.
Nesse sentido digo que a homofobia é uma perversão (como qualquer racismo). Seu mecanismo implica na recusa em reconhecer a realidade de uma percepção negativa, negando-a enquanto diferença.
Entendo perversão como essa tentativa de abolição das diferenças como modo de defesa contra a ameaça representada pelo desejo do Outro.
De tal modo que projeta a castração no outro, “inferiorizado” diria Freud, e que terá que ser eliminado ou transformado em instrumento de gozo. É neste ponto que se confunde com fobia. Mas o fóbico jamais agirá como Équs, cegando todos os cavalos para que não o vejam. Pelo contrário, ficará trancado em casa e bem longe dos estábulos que, talvez, tanto apreciara um dia que passou.
A perversão é intolerante perante o desejo, pois este implica em perda de completude gozosa. Assim como a neurose também é intolerante, pois para ela o desejo representa perda da completude amorosa (narcísica), permanecendo insatisfeito na histeria e impossível na neurose obsessiva.
E a saída contemporânea é pela via do cinismo e da ignorância. Tomei emprestado de Collete Soler o termo “narcinismo” que tão bem define a lógica da atualidade globalizada no capitalismo tardio.
Amor e gozo. Ética e moral.
Esses são os pólos da fantasia humana e ali, no gozo, é que temos que situar o discurso moralista enquanto resposta perversa. A homofobia é uma contra-vontade que expressa uma lógica fantasmática da completude. Portanto, não se trata de uma fobia senão de uma perversão.
Brasil sem homofobia? Só se for uma legislação elaborada no intuito de proteger as vítimas. Apesar de sabermos que o perverso sempre dará um jeito para burlar ou transgredir a lei.
Pois isto é da natureza dele.

No livro “A morte de Ivan Ilitch”, de 1855, Tolstoi escreve assim: “Faremos o que for necessário – afirma o médico – sempre de maneira idêntica para todos os pacientes”. E o narrador conclui: “tudo se passava exatamente como no tribunal”.
Itaquaciara, 26 de maio de 2012.

ARNALDO DOMÍNGUEZ é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida

domingo, 10 de junho de 2012

Tudo Pode Dar Certo

por  Arnaldo Domínguez

O que pode dar certo?

“Por nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis” – Lacan, A Ciência e a Verdade.

O niilismo, termo que teve origem durante o período imediatamente precedente à Revolução Francesa e que designava, em princípio, a atitude daqueles que não se posicionavam nem a favor nem contra a revolução, estendeu-se à uma certa filosofia negativa da existência humana que parece alastrar-se em nossa época globalizada. O niilismo existencial, aonde nem a vida nem a morte teriam algum sentido ou valor e, consequentemente, os suicídios ou homicídios ocorreriam massivamente e por pura imitação ou por inércia, ou então, como afirmava Durkheim, cumpririam uma função social necessária a toda cultura, apresenta-se – para muitos – como um atual “sem saída”.
Entretanto, a psicanálise propõe uma saída para a compulsão à repetição e o que nela se insinua de pulsão de morte. Algo desta ordem, também, encontramos na arte. Contudo, são propostas que nem sempre dão certo!
“A posição do psicanalista não deixa escapatória – diz Lacan – já que exclui a ternura da Bela Alma”. Trata-se da divisão entre o Saber e a Verdade. E acrescenta: “A redução (do sujeito) constitui o objeto da ciência”. Assim, a ciência se endereça ao “sentido absoluto”.
No próximo passado sábado 02 de junho de 2012, respondendo a um convite do Prof. Sidnei F. de Vares, da UNIFAI, quem coordenou o ciclo de debates “Cinema e Psicanálise”, comentei o filme de Woody Allen “Whatever Works”, de 2009.  Tal expressão idiomática da língua anglo saxônica recebeu, nas legendas em português, diversas traduções. A primeira é destacada no título “Tudo pode dar certo”. Outras, no interior dos diálogos, são “faça o que for preciso” ou “qualquer coisa que funcione”.
Portanto, percorrem a dialética desde o lugar de um quantificador universal, “tudo”, “qualquer coisa”, até o imperativo categórico que emula uma certa animação neurolinguística. O bom conselho, quiçá, a la Shinhashyki: amar pode dar certo!
Tem um “pode” ou um “quase” que apontam para a impossibilidade da completude, o que causa certo alívio. Sempre me lembro daquele cinéfilo (obsessivo) que suportou até o final o filme “9 e meia semanas de amor” graças a delimitação temporal oferecida pelo simbólico do título. Isso tinha hora marcada para acabar.
 Allen ficou famoso inicialmente por satirizar na “telona” a neurose cosmopolita da metrópole de New York, semelhante a qualquer outra. Neste filme, Boris Yellnikof, interpretado magistralmente por Larry David, no ato de quebrar a quarta parede, como dizem, ou seja, ao revelar que ele tem um canal direto de comunicação com os espectadores (é o único do elenco que consegue nos ver), alerta-nos: Não se trata de um espetáculo destinado a que se sintam bem. A autoajuda ou o entretenimento não são seus propósitos, digamos.
Contraria, nisto, aquele filme de Benigni: “La vita é bella”, de 1997, no qual o “belo” escamoteia o “horror”, apesar de que no jornal A Folha de São Paulo dessa época tenham anunciado que “o riso nos salva” (?).
Nesta película Boris grita o horror: da condição temporária, da miséria neurótica que transformou a humanidade numa massa de estúpidos reprodutores de clichês (o mundo está tão cheio de gente estúpida que ser inteligente, como ele, é um fardo), dos preconceitos da sociedade (pseudo) puritana dirigidos contra os negros, os judeus, os gays, etc. Todo esse sem sentido da existência humana e suas crenças religiosas idiotas.
Representante da encarnação do último niilista verdadeiro resgata as sinfonias de Beethoven e até a Bossa Nova para se proteger de um universo massificado de jovens, niilistas também, mas aos quais não sobrou nada para poder negar.  A “balada” que frequentam, por exemplo, chama-se “Esfíncter Anal” e sugere a metáfora direta de: um gozo de merda.
Boris parece ser o único sobrevivente do naufrágio da pureza intelectual, capaz de renegar os valores metafísicos redirecionando sua força vital à destruição da moral para que, finalmente, tudo caia no vazio que nos levará à espera da morte ou ao ato de causa-la.
Somente ele compreende a insignificância das aspirações humanas e o caos do universo. Ele também despreza a ternura das Belas Almas tendo se transformado no Homem do Ressentimento que busca, no isolamento, a proteção necessária para seu desamparo. Projeta-se sobre todos nós naquilo que temos de arrogância, de desmesura, de suicidas, quer seja por vias “Egoístas” (dos desamparados do laço social); “Altruístas” (imersos na consciência coletiva) ou “Anômicos” (perante uma mudança súbita de lugar social), como classificou Durkheim em 1897. Casualmente, o mesmo ano em que Freud dissera a Fliess não acreditar mais em sua neurótica.
Essa “cota de sacrifício” exigida pelo laço social e suas forças morais reguladoras externas, afinal, é um ato particular endereçado ao Outro. Pois a pulsão de morte é presença silenciosa no sujeito e no laço. O inconsciente é o discurso do Outro. O inconsciente é o social.
Poderíamos situar aqui algo que emana desde a origem da crueldade infantil, que, ao dizer de Freud nos três ensaios “é referida a uma pulsão de dominação que originariamente não teria por objetivo o sofrimento alheio, mas simplesmente não o levaria em conta”. Boris tampouco busca o sofrimento alheio, senão, pelo contrário, é vítima da perfeição e do abandono. É um excluído do bando, portanto, uma exceção.
Ao se referir ao Rei “torto” de Shakespeare, Ricardo III, Freud diz que ele representa uma enorme ampliação de algo que acontece com nós todos.  Tem o direito de fazer o mal!
Boris não assume tão descaradamente esse direito. Apenas o exerce com as “criancinhas retardadas” às que ensina xadrez. É uma espécie de antigo “Maestro de Escola”, aliás, como muitos ainda o são ou como tantos analistas, quando na violência da interpretação psicologizante jogam pela janela um suposto saber que desconhece o/ao outro.
Satiriza aquele que, de acordo com Lacan, não existe: “O homem da ciência”, e também a alguns psicanalistas que denunciam a “foraclusão generalizada” propondo uma espécie de retorno messiânico do Pai Imaginário. Os demonizadores, de que fala Jurandir Freire Costa.
Convoca o paradigma da loucura da ciência que rejeita a subjetividade por razões metodológicas.
“A ciência está louca – diz Coutinho Jorge – mistura espécies, clona os animais e quer fazer isso com o ser humano. O ápice da loucura é tentar transformar a reprodução sexuada em assexuada”.
Se, por um lado, Boris representa aquele que “sabe tudo o que interessa”, debochando da mediocridade dos homens e atingindo também aos Eminentes Senhores da Academia sem poder se espelhar no símio de Kafka e nem usufruir do ato de Sartre ao rejeitar o Nobel de literatura, por outro, seu amigo professor de Filosofia faz um atravessamento discursivo perpendicular promovendo o saber e o valor no outro tido/dito como semelhante. Nesse caso, sua futura amante, a sogra de Boris, que o filósofo compartilhará com outro amigo numa “terceirização” do desejo insatisfeito, mais do que numa “ménage à trois”.
O espanhol Juan Antonio Rivera, professor de filosofia, invocou Sócrates num livro para interpela-lo sobre o que ele diria a Woody Allen e seus filmes. Allen que foi expulso do curso de filosofia na Universidade de Nova York em 1953.
Pois, digamos (antes de ler o livro de Rivera) que Boris transgride o Banquete de Platão e cede perante a insistência do amor transferencial de Melody (Evan Rachel Wood), jovem e bela quem, ao estilo de Alcebíades, parece ter encontrado o Ágalma (objeto a) na suposta genialidade hipocondríaca de seu benfeitor.
Melody é o retrato da Bela Alma, feliz em sua paixão pela ignorância e “enfermeira” que cuida e sustenta o Gozo do Outro. No caso, um outro atormentado pelo saber no lugar da verdade.
Orham Pamuk, num recorte que gentilmente enviou-me Íris Moraes Araújo e extraído de “Outras Cores”, escreveu: “Minha biblioteca não é motivo de orgulho, mas de vingança contra mim mesmo e de opressão”.
Estará toda cientificidade intelectual condenada à loucura? Exemplos disso não são poucos. Mas, será por conta disso que Boris se defronta, no final, com a magia? Tenta desastradamente um novo suicídio quando Melody o deixa pelo jovem ator (do desejo materno) e cai sobre uma “vidente” que se fratura em seu lugar. Bela metáfora para a mulher enquanto sintoma do homem. Afinal, o que é um homem para uma mulher? Ora, um estrago!
Na magia o saber está velado e, diz Lacan, a magia é sempre magia sexual. Longe do Viagra, neste caso. Uma tentativa extremada do diretor para arrancar-nos da condição farmacológica em que pretendem nos transformar.
Mesmo considerada uma falsidade ou algo sem grande valor, a magia (a ilusão) provoca, no final, feliz para tantos, uma chatice para Boris e aqueles que comungam de sua lógica, uma comemoração. O fundamentalista homofóbico se torna gay, a do desejo insatisfeito goza à rodo, e Boris esquece de cantar Parabéns a você enquanto lava as mãos ou o Hino Nacional ao sentar-se na privada, o que ficaria muito cômico no caso do Brasil. Ouviram do Ipiranga as margens plácidas..? Tudo pode dar certo?
Magia e  religião vão à sombra da ciência.
Logo, como cantava Atahualpa Yupanki: às vezes sigo minha sombra, às vezes (ela) vêm detrás. Coitadinha, quando eu morra, com quem vai andar?

“A veces sigo mi sombra / a veces viene detrás
Pobrecita, cuando muera / com quién va andar?”

07 de junho de 2012 – Itaquaciara, Itapecerica da Serra.

ARNALDO DOMÍNGUEZ é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida