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domingo, 25 de março de 2018

HER - A Mulher. Que não existe...

de Francina Sousa
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Her é um filme encantador. Que me faz pensar em coisas do tipo: será que o medo, expresso neste filme, ainda que de forma doce, monótona e poética, que os homens tem de serem dominados pelas máquinas não expressaria, ao menos em parte, uma fantasia de onipotência, um desejo de ser Deus? Falo de algo que já está lá no Frankstein de Mary Shelley. O criador dominado pela criatura. Lembro do Homem de Areia de Hoffman e atravessa-me a ideia de que a relação do homem com a tecnologia fora sempre marcada por uma tensão, algo que se dá entre o fascínio/esperança e o terror. Volto na coisa de brincar de Deus e suas consequências: a liberação de forças terríveis, incontroláveis. Não foi isto que sucedeu a Fausto

Her é uma história de amor. Entre um homem, Theodore, e seu sistema operacional. Vejam que interessante: é ele, as palavras dele, ao responder algumas perguntas, que dão vida ao tal sistema operacional. Como num sopro, nasce Samantha. Não das costelas, mas sim, das palavras de Theodore. 

E quem é Samantha? Antes de mais nada, é voz. No futuro retrô desenhado pelo diretor, a voz está em causa tanto quanto ou mais que a imagem: as pessoas, solitárias, caminham com um pequeno fone enfiado na orelha, conversando com seus telefones espertos. Ao final do filme fica a pergunta: quem foi o sistema operacional de quem? Há poesia nessa fina ironia: no fim das contas, são as máquinas que decidem se desconectar dos humanos. No filme, são os sistemas operacionais que se desconectam de um mundo limitado e virtual para eles.

E quem é Samantha? Samantha é A Mulher. Que não existe... "É como se eu estivesse lendo um livro [...] as palavras estão espaçadas e os espaços entre as palavras são quase infinitos. Eu ainda sinto você e as palavras de nossa história, mas agora eu me encontro nesse espaço infinito entre as palavras", é o que Samantha diz ao abandonar Theodore. Ela está lá, no intervalo, lá onde não há significante que represente.

Francina Sousa é Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano, psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados / UFGD.  Fundadora  do  blog  Sim Thomas!

Trailer


sábado, 17 de janeiro de 2015

Kieślowski : Decálogo I

por Francina Sousa

Aviso: assistir (abaixo) antes de ler.
Apesar da pretensão, não, não entendo nada de arte, tenho no máximo desconfianças... E desconfio que esse tal de Kieślowski (assim como Trier, referência fundamental no movimentado mercado do verniz cultural) seja um desses fazedores de arte, e que Decálogo I (primeiro média-metragem de uma série de dez chamada "Decálogo", cujo fio condutor são os dez mandamentos) seja um bom exemplo disto. Um diretor que consegue tocar o ser lá no âmago, lá onde, apesar da tentativa, não cabem palavras... é isso que sinto com esse cara!

Tudo parece dançar em harmonia melancólica nesse primeiro Decálogo, sobretudo imagem e música. O filme parece te olhar, te refletir, te chorar. O leite que se azeda ao tocar o café, a tinta que rasga o pote de vidro, prenúncios de que aquilo que resiste ao sentido e às fantasias que estruturam a realidade, está ali, à espreita! Há sempre algo passando a perna em nossas certezas, algo que por vezes nos faz tremer de dor e espanto. Por que, apesar das evidências em contrário, o maldito gelo tinha de se quebrar? A voz do quase anjo, doída e gelada, questiona: "Quem precisa saber quanto tempo leva para a Piggy alcançar o Caco? Não faz sentido."O pai não consegue responder, não há resposta. É diante do enigma da morte que o menino duvida de sua forma de entender a realidade, uma realidade que encontra seu sentido, sua verdade, nos números, na matemática, sentido este que lhe fora transmitido pelo pai. Um sentido pouco aberto às fantasias. Afinal, no mundo do pai, 2 e 2 são quatro e quantas vezes terei de evocar o homem do subsolo de Dostoiévski pra explicar que se é o humano que está em causa, 2 e 2 nem sempre somam 4?

Erra aquele que pensa que só é crente aquele que acredita em Deus. A Razão pode ser tão dogmática quanto a Religião. Mas instável como a vida, o gelo se quebra, e com ele, as certezas daquele homem. Resta a dor e quem sabe uma questão: ainda que uma máquina venha a ter a capacidade de escolha, assemelhando-se ao ser humano, seria ela capaz de sentir tão profundamente o non sense existencial?


"Amar a Deus sobre todas as coisas", este é o primeiro mandamento. É mesmo necessário impregnar a existência com Eros, com amor, essa coisa que tenta insistentemente preencher o vazio que a todos habita. E que atire a primeira pedra quem (sinceramente) nunca duvidou do porque disso tudo...

Francina Sousa é Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano, psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados / UFGD.  Fundadora  do  blog  Sim Thomas!
Filme completo

Endereço do filme : https://www.youtube.com/watch?v=98SU1Yq1c8g 

domingo, 9 de junho de 2013

Anti Cristo de Lars Von Trier

por Francina Sousa

Em tempos de capitalismo apressado, escrever sobre um filme “antigo” como Anti Cristo de Lars Von Trier pode parecer antiquado. Ressalva sem sentido para o inconsciente, já que ali o tempo não caminha ano após ano, dia após dia, hora após hora... Confesso que demorei certo tempo para ter coragem de ver o filme. O pano de fundo, um casal que perde seu filho pequeno, e que se isola em uma cabana no meio da mata, parecia assustador e familiar demais pro meu gosto. Só que esqueceram de me avisar que a cena em que o garotinho parece saltar alegremente para a morte era o que havia de menos perturbador no filme.
Entendo que buscar um sentido pleno ao filme seria incorrer no mesmo erro do terapeuta que, ao lado da mulher, protagoniza o filme. Faço apenas algumas observações. Frente ao real da perda de um filho, o "arrogante" terapeuta considera-se apto a tratar o luto prolongado de sua mulher, e para isso recorre a uma "técnica" cognitivo-comportamental: confrontá-la com aquilo que lhe causa medo, no caso, uma cabana horrorosa no meio da mata, Éden. Mas não é de Éden, como ele a forçou a concluir, que ela tem medo, e sim da selvageria e obscenidade abafados nos porões do eu. Não à toa ela lhe adverte: “Você é tão arrogante. Mas isso pode não durar, sabia?”
Ao quebrar uma lei (a mulher o lembra de que não é prudente tratar alguém tão próxima, porém ele argumenta que ninguém a conhece mais do que ele, numa patética onipotência narcísica da qual a queda será inevitável), ele abre caminho para que a Lei simbólica seja ultrapassada. E paga caro por isso: a mulher literalmente atravessa a arrogância do marido e, em uma das cenas mais fortes, imprime no real a falta que ele luta tanto para escamotear. Em Éden, o caos reina.

O filme faz pensar naquilo que está além do princípio de prazer, o gozo em seu limite, no limite da aniquilação... Nos lembra de que aquilo que foi recalcado permanece indestrutível no inconsciente ou, nas palavras do poeta: E o que desapareceu,/ converte-se para mim em/ realidade (Goethe).
Trier coloca em cena o erotismo e a agressividade da qual o humano não cessa de abrir mão em nome da segurança, da sobrevivência, da civilização. Mas aquilo que é banido não se conforma: insiste em retornar e algumas vezes de forma nefasta, o dia-a-dia nos prova isso.
Já foi dito que nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie, foi cantado que o homem criava e também destruia...
Quando se trata do humano, o buraco, esse vazio ao qual tentamos insistentemente preencher de sentido, é mais embaixo. E é passível de explodir em non sense. Dostoiévski já nos alertara, com seu homem do subsolo, de que dois e dois nem sempre são quatro, e Éden parece trazer à tona o “Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (Zizek).

No filme tive a impressão de que justamente quando o homem começa a desconfiar de que não tem o controle sobre si e muito menos da situação e diz para sua mulher que anda tendo uns sonhos estranhos, esta ironicamente age como ele até então: fecha a questão afirmando que “os sonhos não significam mais nada para a psicologia moderna, afinal, Freud está morto, não?” Assim ela obstrui o caminho que poderia levá-lo a abandonar a posição iludida de senhor de si mesmo.
Lembrei-me de algo que li: “O desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar. O que pode você ver de ‘prometeico’ nisso?” Encontrei esta frase logo no início da Interpretação dos Sonhos e não pude deixar de pensar no quanto esta assertiva sobre os sonhos condensa uma série de noções em psicanálise. É fantástico que Freud tenha, em plena modernidade cartesiana, se valido dos momentos em que o homem era onde não se pensava, percebido nas cotidianas formações do inconsciente (sonhos, chistes e atos falhos) aquilo que aparece quando o Eu cochila. E o que podemos ver de prometeico nisso?
Penso que, assim como Prometeu, que acorrentado e agonizante não deixa de gritar o seu destino, o que é recalcado (condenado, banido) não deixa de se agitar e procura de toda forma fazer-se ouvir. Por menos que o Eu queira saber d’Isso! Por outro lado, o ato de roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens marca um antes e um depois: depois do ato, um saber inédito que muda o destino da humanidade. E o que pode você ver de "freudiano" nisso?
Freud pode estar morto, mas suas ideias "acorrentadas" (pelo apagamento do sujeito do inconsciente por aquele tal discurso do capitalista, pelas neurociências ou pela tal "psicologia moderna"...), agitam o submundo humano e até hoje, por menos que se queira, o eco de sua descoberta faz-se presente, e tanto nosso cotidiano quanto a tempestade pulsional que o personagem enfrentará em sua mulher no filme não nega isso. 
Anticristo - trailer oficial

Francina Sousa é Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano, psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados / UFGD.