domingo, 14 de junho de 2020

PREMATURE - Ver-se gozado : trauma e repetição no filme de Dan Beers.



de Tiago Sanches Nogueira

Em sessão, um jovem cruelmente torturado por seu padrasto, mostra-se aprisionado em uma ficção muito semelhante àquela apresentada em um filme que ele diz adorar. Trata-se de um filme chamado Premature (2014), cujo título foi traduzido para o português como Precoce”. Nele, o protagonista também adolescente, está pronto para entrar para a faculdade e prestes a sair com a garota mais bonita da escola. Em outras palavras, está prestes a enfrentar a entrada no mundo adulto que coloca em xeque suas próprias insígnias fálicas.

O filme inicia com um sonho do rapaz, no qual ele transa com uma jovem de três seios. No momento do ápice sexual com aquela que para ele era uma mulher perfeita, o jovem desperta do sonho em pleno orgasmo e se depara com sua cueca molhada de sêmen. Neste exato momento sua mãe adentra ao quarto e flagra desconcertada o seu filho completamente “gozado. A única coisa que ela pode dizer a ele é: Just put those sheets in the laundry, honey (só coloque esses lençóis para lavar, querido).
A cena que inicialmente parece banal, passa a fazer sentido a posteriori, sobretudo quando acompanhamos o desenrolar do dia do jovem. Enfrentando os desafios de alguém marcado por uma sexualidade masculina típica daquilo que no lunfardo argentino chama-se pollerudo1, o rapaz, além de humilhado pelos valentões, é também intimidado pelas belas garotas da escola.
No entanto, uma bela jovem que transpira sexualidade convida-o para ir à sua casa com o pretexto de estudar. A moça deseja transar com o garoto. Contudo, este encontro seria no mesmo dia em que o jovem combina com sua melhor amiga de assistirem juntos a um tradicional concurso de soletração. O garoto se vê diante de um dilema: sair com a garota de reputação duvidosa, aquela que realizaria seus mais íntimos desejos carnais; ou encontrar uma amiga pela qual ele nutre um sentimento especial, uma amizade que se transformará, posteriormente, em amor.
O jovem decide escolher a “garota pra transar” e não a “garota pra amar”. Ele vai até a casa dela e, sentado na cama de seu quarto, sofre investidas da moça. O ponto que aqui nos chama atenção é que o encontro com essa mulher, na verdade o encontro com o toque desta mulher, produz uma ejaculação precoce no garoto. Um simples toque em seu pênis leva-o imediatamente para a cena inicial do filme, na qual o garoto “gozado” na própria cama, desperta deste que agora descobrimos ser um sonho “realizado”. Novamente vemos a mãe entrar no quarto e dizer a frase do início: “só coloque esses lençóis para lavar, querido”.
A cena será repetida infinitamente durante todo o filme. A vergonha diante do olhar materno - este outro que o vê “gozado” - revela que o sentido daquilo que será repetido intermitentemente apresenta o caráter de uma cena traumática, na qual o encontro com o sexo inicia e termina, prematuramente (eis o nome do filme), nos olhos do Outro que o flagra.
Estamos diante, portanto, de um desses filmes em que o personagem fica preso no tempo, no qual a repetição do dia se dá em função de um instante marcado pelo encontro com determinado acontecimento. Toda a vez que o sujeito encontra com tal acontecimento, ele é lançado automaticamente à um momento anterior, no qual o sentido é ressignificado e, ao mesmo tempo, também colocado em questão devido aos excessos provocados pela repetição.
Há uma tradição de filmes que apresentam este tipo de narrativa: “Feitiço do Tempo” (1993), “Meia-noite e um” (1993), “Inferno na Estrada” (1997), “Efeito Borboleta” (2004), “Contra o tempo” (2011) e até o blockbuster “No limite do amanhã” (2014). Tais filmes são exemplos de histórias em que seus protagonistas ficam presos em uma espécie de looping temporal. Todos os roteiros de tais filmes trazem consigo a marca da dubiedade da experiência de repetição, na qual reconhece-se a malignidade do aprisionamento em um tempo infinito, mas que também produz intervenções cujos efeitos modificam a própria experiência repetida.
Os personagens em um primeiro momento vivenciam uma estranheza, na qual não se reconhecem ou se reconhecem como loucos. Mais ainda, pensam que estão em um sonho. Primeiro tempo marcado pela experiência de ilusão e pela pergunta “o que está acontecendo comigo”? O não-reconhecimento da própria experiência é seguido por um momento de cálculo, no qual se percebe o instante que se repete. Este segundo tempo promove um tipo de aprendizado - não sem sofrimento - que permite ao sujeito realizar pequenas modificações nas cenas que se repetem, já que descobre por tentativa e erro que os objetos dispostos nestas cenas estão lá quase como se fossem autômatos - objetos da ficção.
A satisfação inicial causada por essas pequenas mudanças acionam no sujeito uma sensação de liberdade que logo prescreve, pois rapidamente ele descobre que tais modificações não impedem o reencontro com aquilo que dispara o looping temporal. Dá-se início a um momento de extrema angústia na qual a inevitabilidade do encontro com o “acontecimento-gatilho” lança o sujeito em uma passividade quase absoluta, na qual ele se vê aprisionado.
Aqui o filme torna-se mais interessante, pois neste momento nos deparamos com a estratégia que o garoto utiliza para “sair de cena” e voltar ao início da história. Qual estratégia será essa? Produzir um reencontro com o “acontecimento gatilho”, que no filme está associado ao ato de gozar. Comportamentos inadequados e bizarros como o de masturbar-se na frente do diretor da escola, ou ser agredido na região genital de forma tão intensa a ponto de lhe produzir um orgasmo - ambos realizados intencionalmente com o objetivo de dar um reset na história – apresentar-se-ão, ao mesmo tempo, como causa e efeito de suas repetição infernal.
Ao colocarmos uma lupa sobre este instante traumático marcado por uma repetição perpétua, notamos que se trata de um paradoxo provocado por um excesso extremo de tensão. Aprendemos com Freud que esse excesso produz formas de repetição. Quantas vezes não presenciamos nas análises que conduzimos a reiteração incessante de um tema que, além de ter função de elaboração (recordar, repetir e elaborar), também cumpre a função de escoar a tensão acumulada pelo impacto de determinado estímulo perceptivo (fonte de excitação). Tal constatação recupera a ideia de Zilberberg (2011) de que a repetição é a confirmação do esperado.
Nesses casos, a repetição parece surgir como uma forma de proteção contra a subtaneidade desta alguma coisa a advir. Se, para Freud, o princípio de prazer é uma tendência que opera para reduzir as excitações no aparelho psíquico, a compulsão à repetição serve para dominar retroativamente as excitações que, na ocasião de um trauma, fizeram efração no aparelho psíquico:
Quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes contra os estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento do organismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis. (FREUD, 1920/1976, p. 45)  
Constatamos, portanto, que a repetição cria um efeito de parada na progressão da narrativa do filme. A entrada de algo novo dentro das próprias repetições do personagem vão transformando o sentido da repetição, que passa a ser a preparação para a mudança, o caminho sem surpresas para uma virada de impacto. Eis o ponto em que um certo real da repetição pode ser sobrepor à realidade através do trabalho ativo do trauma (DUNKER, 2006). Será neste ponto fértil da repetição que o analista poderá operar importantes transformações, permitindo que o sujeito traumatizado possa repetir de maneira diferente.
1 “Filhinhos da mamãe”, um registro da sexualidade masculina maravilhosamente descrito por Ricardo Estacolchic e Serio Rodríguez em “Pollerudos – Destinos en la Sexualidade Masculina” (2011).

Referências Bibliográficas
Contra o tempo (SOURCE CODE). Direção: Duncan Jones. Produção: Mark Gordon; Jordan Wynn; Phillippe Rousselet. Estados Unidos, França e Canadá. Summit Entertainment, 2011.
DUNKER, C. I. L. A função terapêutica do real: trauma, ato e fantasia. Pulsional. Revista de psicanálise, ano XIX, n. 186, junho/2006.
Efeito Borboleta (The Butterfly Effect). Direção: Eric Bress; J. Mackye Gruber. Produção: Anthony Rhulen; Chris Bender; Ashton Kutcher; J.C. Spink; A. J. Dix. Estados Unidos, New Line Cinema, 2004.
ESTACOLCHIC, R & RODRÍGUEZ, S. (2011) Pollerudos Destinos en la Sexualidade MasculinaBuenos Aires: Ed. de la Flor.
          Feitiço do Tempo (Groundhog Day). Direção: Harold Ramis. Produção de Trevor Albert e Harold Ramis. Estados Unidos, Columbia Pictures, 1993.
           FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. In. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução J. Salomão vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Inferno na Estrada (Retroactive). Direção: Louis Morneau. Produção: David Bixler; Brad Krevoy; Michael Nadeau; Steven Stabler. Estados Unidos, Orion Pictures Entertainment, 1997.
Meia-noite e um (12:01). Direção: Jack Sholder. Produção: Bob Degus; Jonathan Heap; Cindy Hornickel. Estados Unidos, New Line Home Video, 1993.
No limite do amanhã (Edge of Tomorrow). Direção: Doug Liman. Produção: Erwin Stoff; Tom Lassaly et al. Estados Unidos, Warner Bros, 2014.
PREMATURE. Direção: Dan Beers. Produção: Aaron Ryder; Karen Lunder. Estados Unidos, IFC Films, 2014.
ZILBERBERG, C. Elementos de semiótica tensiva. Tradução de Ivã Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011. 

Tiago Sanches Nogueira é Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica pela USP, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autor do livro "Ensaio sobre um Infinito: Música e Psicanálise"; Músico-criador, autor do Álbum Musical ESGRITOS: ROMANCE DE FORMAÇÃO e de trilhas sonoras para teatro. Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política USP. tiagosanchesnogueira@gmail.com

Trailer

domingo, 10 de maio de 2020

Hiroshima mon amour e a descontinuidade

de Luiz Fellipe Almeida

Alain Resnais (1922-2014) e Marguerite Duras (1914-1996) têm uma coisa em comum, além de Hiroshima mon amour, marco da nouvelle vague de 1959: o gosto pela ambiguidade e pela ruptura. Seus filmes giram em torno do corte que os governa. Repetições, retornos, duplicidades e estranhezas são o lugar comum onde o ano passado em Marienbad e as leituras ilimitadas de Agatha buscam dizer sem dizer, informar sem comunicar, falar sem pronunciar, isto é, buscam dizer d’Um dizer que é a própria evanescência do pensamento e a impotência do racional. Ou seja, são obras maciças e ocas ao mesmo tempo; a força de sua mensagem está na certeza de sua fraqueza.

Oxímoro que, no título de Hiroshima mon amour, traz a singularidade do novo que é inevitavelmente o mesmo, contorno irredutível que orienta nossa frouxidão no sentido. Uma atriz francesa está de passagem em Hiroshima para gravar um filme sobre a paz, 14 anos após a guerra. Apaixona-se por um arquiteto japonês. Não sabemos seus nomes; ambos vivem a experiência a partir da dor de cada um, sobretudo a perda do primeiro amor da atriz, um soldado alemão morto. Trancafiada por seus pais como castigo, ela compartilha a solidão e a angústia do confinamento ao mesmo tempo em que tenta dar um sentido ao absurdo do que viveu. Exprime sem exteriorizar, rememora porque quer esquecer. Não há sentido em qualquer coisa que ela possa dizer, assim como não há sentido em amar. Ela deve partir no dia seguinte, mas recua; finalmente ambos se nomeiam, segundo sua origem: Hi-ro-shi-ma, Ne-vers.
Aí o filme termina, nesse corte em que “Hiroshima” e “Nevers” condensam o absurdo, a impotência e um savoir-faire. “Nevers” não quer dizer nada em francês, explica a atriz; quanto a “Hiroshima”, ela também nota que estranhamente, a partir desse caso, a palavra pode expressar o amor. Aqui a repetição do texto de Duras expõe com claridade a escuridão do dizer, a precariedade das versões e inversões da realidade. Ambos colam e descolam esses significantes em diferentes tentativas de amarração durante o filme. Ao final, resta a pura plasticidade da significação, a potência em finitizar o infinito e instantanear o inenarrável na pontualidade do discurso.
“O que ‘Hiroshima’ significou para você, na França?”, pergunta ele. “O fim da guerra... completamente. Perplexidade por eles terem ousado, perplexidade por terem conseguido. E, para nós, o começo de um medo desconhecido. E então, indiferença. E medo da indiferença também”, ela responde pensativa.
Filme-documentário, inicia-se com imagens da bomba, corpos transfigurados, rostos descaracterizados, peles descascadas, esvaziamento e ruínas. A ruptura que as tragédias iniciam, obrigando o senso-comum a reavaliar seus pressupostos. Milhares de mortos, número em nada distante da pandemia de nosso tempo, ela também obra da insensatez de nossos projetos. Penetrado no organismo humano a partir do animal não falante, submetido aos efeitos da expansão econômica cuja exclusiva finalidade é a multiplicação do capital12, o vírus é o mesmo inimigo desconhecido que explode uma cidade ou um pulmão, o contexto varia, mas ele só chega aí pela invisibilidade do gozo que reproduz a história. O que dá a ver, em seus efeitos, retroage no questionamento dos modos de vida capitalistas.
Ou deveria retroagir, para ressoar a opacidade das certezas que até então organizaram nossa existência. Olga Tokarczuk, Nobel de literatura em 2018, escreveu na revista New Yorker há algumas semanas: “We believe we are staying home, reading books and watching television, but, in fact, we are readying ourselves for a battle over a new reality that we cannot even imagine, slowly coming to understand that nothing will ever be the same3.
Toda a ficção das verdades de nosso tempo advém do mesmo impossível que modelou as possibilidades que desembocaram na indiferença, necessidade da economia psíquica de um mundo que tem o dom da retórica para justificar a perversidade de sua máquina. “Defuntas crenças convocadas”, seguimos todavia “vagarosos, de mãos pensas”, como Drummond4. Esquecer é preciso às vezes, senão sufocamos, diz Nevers. A “eternidade” de seu confinamento levou ao deslizamento simbólico que fez o significante “Hiroshima” sustentar o paradoxo da própria vida: “Você está me matando; você me faz bem”, a atriz repete ao arquiteto. O nome próprio justamente vem para obturar, dando uma “falsa aparência de sutura”, disse Lacan em 19655. Fica a questão de saber se sustentaremos a vital falsidade dessa aparência, quando o cotidiano refizer sua “normalidade”, em meio à possibilidade de esquecermos de ter medo da indiferença.


Luiz Fellipe Almeida

Abril, 2020
1... disease emergence is largely a product of anthropogenic and demographic changes, and is a hidden ‘cost’ of human economic development”: https://www.nature.com/articles/nature06536
2... zoonotic EID (emerging infectious disease) risk is elevated in forested tropical regions experiencing land-use changes and where wildlife biodiversity (mammal species richness) is high”: https://www.nature.com/articles/s41467-017-00923-8
4 A máquina do mundo (1951), in Drummond de Andrade, C. Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras.
5 Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965) (C. Lemos et al., trads.). Recife: CEF.

Luiz Fellipe Almeida é psicanalista, mestrando em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP.
Trailer



domingo, 5 de abril de 2020

O Poço - El Hoyo

de Priscilla Cheli Mendes

**Alerta de MUITO spoiler**
O poço, ou El Hoyo, nome original em espanhol, é o primeiro filme dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, jovem diretor de 36 anos. Estreou em 2019 no festival de Toronto e chegou recentemente à Netflix trazendo muito o que se pensar.
Trata-se de uma estrutura em formato de torre com mais de 200 andares. Cada andar abriga 2 pessoas e cada dupla permanece em um determinado andar por exatos 1 mês. No meio dessa estrutura vertical há um furo, um buraco, no qual todos os dias, uma plataforma com comida desce permanecendo em cada andar por 2 minutos.
A comida é meticulosamente preparada, passando do primeiro andar para os demais. Ela seria suficiente se cada um usufruísse de uma parte conscientemente, no entanto, isso evidentemente não acontece. Portanto, os de cima comem desenfreadamente, e quanto mais se desce, mais escassa fica a comida. Aos últimos andares, nada resta.
O filme acompanha o protagonista Goreng, interpretado por Iván Massagué, desde seu primeiro dia no poço, ou Centro Vertical de Autogerenciamento, nome oficial daquele lugar. Goreng divide a plataforma número 48, a princípio, com Trimagasi (Zorion Eguileor), um senhor que está ali por causar a morte de uma pessoa quando ainda estava fora da torre.
Desde o início da relação dos dois, Trimagasi deixa claro que só pode dar algo de si se receber algo em troca. Sua palavra preferida é “obvio”. Para ele, sua posição subjetiva é marcada pela clareza de que ele está em primeiro lugar, acima de todos.
Cada um podia levar consigo para o poço um objeto. Trimagasi leva uma faca. Goreng leva consigo o livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, não à toa, já que ao longo da trama, toma para si a incumbência de mudar aquela estrutura, pondo-se a serviço da comunidade em detrimento de si mesmo, tal como no livro.
No mês seguinte, Goreng e Trimagasi acordam no andar 101. Ali a comida já não chega mais. Goreng acorda amarrado à sua cama, e Trimagasi explica que não tem a intenção de matá-lo, apenas precisam, ambos, comer partes do seu corpo. Nesse cenário surge Miharu (Alexandra Masangkay), uma moça. Trimagasi é morto e Miharu ajuda Goreng a se alimentar do parceiro.
Vale aqui colocar algo muito relevante no filme, que é o impacto sobre o espectador. É impossível não se afetar com repugnância ou algo parecido às cenas de canibalismo, à comida remexida e cuspida.
Goreng divide em seguida o andar com uma mulher, que assim como ele, escolhe estar ali. Ela trabalhava na organização anteriormente e disse que se acaso a solidariedade se desse dentro de cada um e, portanto, se cada andar comesse somente uma porção, a comida seria suficiente diante da colaboração e sacrifício de todos. Goreng alerta que isso não acontecerá espontaneamente. Ela se suicida e o protagonista se alimenta de sua carne também. Tanto a mulher, quanto Trimigassi, passam a assombrar os pensamentos de Goreng em forma de alucinações.
Seu terceiro parceiro de andar é Baharat (Emilio Buale), que tal como ele, não se conforma com a estrutura daquele lugar. Goreng propõe que desçam para os andarem mais baixos, fracionando as porções e, organizando assim, essa sociedade vertical de forma mais justa. Essa tentativa de nova organização não acontece sem violência, e à medida que descem, percebem que aquele buraco era muito mais profundo que o previsto tornando aquele sistema fadado ao fracasso. Na última camada, a mais profunda, encontram uma menina, intacta. Goreng a coloca na plataforma como uma mensagem aos organizadores, de forma que percebam a falha daquele sistema. Nesse sentido, talvez a criança represente a esperança que novas gerações construam novos arranjos de organização social.
Pois bem, esse poço realmente tem muitas dimensões. Ele nos mostra, tal como no filme Parasita, ganhador do Oscar 2020, a luta de classes e como é estar em cada lado da mesma moeda. Mesmo que, de forma mais áspera e desprovida de humor, que tantas vezes nos serve de anteparo a angústia, provoca também uma reflexão acerca do distanciamento social entre pobres e ricos, da luta de classes e da ideia de que a mobilidade social é uma ilusão, ou seja, não se sustenta.
Zygmunt Bauman, em “A riqueza de poucos beneficia todos nós?”, nos diz que o mercado, desconsiderando as diferenças sociais, econômicas e intelectuais dita nossas escolhas e nos isola, impedindo, ou ao menos, tentando impedir, que questionamentos advenham. Por consequência, todas as variedades de desigualdade social brotam da divisão entre ricos e pobres, como observado no livro de Cervantes escolhido pelo protagonista.
Segundo dados trazidos por Bauman, em 1998, os mais ricos consumiam 86 por cento de todos os bens produzidos, enquanto os pobres, apenas 1,3 por cento, e desta data em seguida, essa diferença só vem aumentando. Esse enriquecimento dos que já são muito ricos se sustenta pela ideologia do individualismo, que por sua vez, impulsiona o consumo. O padrão sonhado é viver como as celebridades em suas roupas, casas, carros e barcos de luxo. Mesmo em meio às crises econômicas, os mais ricos enriquecem ainda mais, enquanto os pobres, só empobrecem.
No filme, como já mencionado, a cada um mês, as duplas se movem dento da estrutura para outros andares. Esse cenário intriga, já que na nossa sociedade a mudança para um nível mais ou menos abastado é pouco frequente. Talvez seja a representação de que sempre haverá um outro que nos supera e um outro subjugado.
Goreng tenta instituir uma distribuição mais justa a todos os pavimentos, mas se depara com um buraco muito mais profundo. É lá no fundo do poço, possivelmente num viés religioso do próprio inferno, que resgata algo que pode possibilitar uma mudança, que seja uma mensagem ou um apelo para que alguém lá de cima mude radicalmente aquela estrutura.
Uma pergunta se sucede, que é o que as pessoas fariam se pudessem trocar de lugar com as outras? Parece que fariam exatamente a mesma coisa que seus antecessores. E por que é assim em sua grande maioria? Há algo ali que insiste em se repetir, como se guiado tal qual um sistema pulsional pelo automaton e tique. Lacan, no seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” nomeia duas faces da repetição: automaton e tique. O primeiro seria guiado pelo princípio do prazer, enquanto a segunda, indica algo para além do princípio do prazer, apontando para o real.
Goreng nos leva a crer que ele se incumbe de ser aquele que quebrará esse circuito, não por uma via pedagógica, como sugerido pela organizadora que dividiu a plataforma com ele, mas sim, pela via da violência para se chegar num ponto de esperança, vislumbrando a possibilidade de que as pessoas que estão ali percebam que poderiam fazer de outra forma, tal como que os organizadores se deem conta do grande erro.
Talvez a inocência do protagonista seja justamente em acreditar que algo do real possa ser inteiramente simbolizável, que a partir do momento em que todos percebam sua mensagem, imediatamente a estrutura se desmonte, se desconfigure. No entanto, algo ali no final, possa nos conduzir a um outro caminho, a presença de uma menina, nos aponta para algo que seria mais passível de aposta. A aposta no não todo. Não há o Um que simplesmente aniquile um sistema, mas talvez, como uma aposta, o cada um, a loucura de cada um, aquilo justamente não possível de assimilação, a própria singularidade. Se isso se reverbera realmente em uma mudança social, é uma questão.

Priscilla Cheli Mendes é psicanalista; psicóloga com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.
* colaboração de Alice Pitteri Mantovaneli

trailer


terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Adeus à linguagem, Imagem e palavra : o zero e o infinito de Godard

de Luiz Fellipe Almeida

Jean-Luc Godard é um poeta ensaísta. Sejam romances em forma de ensaios, sejam ensaios em forma de romance, como definiu seu trabalho, seu olhar sempre esteve sensível à palavra, ao poder da palavra, sua função de verdade, domínio, fruição, incógnita. Sua escrita, no entanto, transcende as falas, o roteiro, e contamina as imagens, que efetivamente operam como significantes por si mesmas, como bem notou Maria Rita Kehl1. Sua escrita é a filmagem.
Seus últimos filmes radicalizam a poesia de seu estilo, exacerbando o enigmatização do sentido e celebrando o equívoco; não para decretar o nonsense, mas para que a interpretação, que sabemos que não prescinde do sentido, siga e sustente os próprios equívocos da linguagem. É no intervalo entre os significantes-imagem que Godard nos tira da inércia da significação linear e nos coloca a trabalhar, assinando junto com ele o ensaio polissêmico que se produz na tela.
Adeus à linguagem (2014) e Imagem e palavra (2018): seus dois últimos filmes são o melhor acabamento dessa maneira aparentemente caótica de levar a significação às últimas consequências. Filme socialismo (2010) ainda sustém certa consistência em alguns personagens; ainda não é invadido por imagens transbordantes. Os diálogos ao fundo, às vezes à maneira dos filmes de Marguerite Duras, ajudam a manter alguma narrativa. Já os outros dois filmes rompem completamente com qualquer tentativa de identificação pelo espectador e mesmo com a paradoxal arguição indiferente que marca os personagens godardianos. A desordem reina — mas tudo de acordo com a autenticidade que só um fragmento pode carregar, como diz a citação de Brecht lida na voz de Godard. Migalhas de saber, diria Lacan, que aqui recebemos em seguidas explosões de imagem-som-palavra. Tudo de acordo com a temporalidade e a firmeza do despedaçamento dos ensaios.
Os filmes não saem nunca da estrutura de sonho, sua única exatidão. Mais precisamente, um estado hipnagógico; ainda estamos acordados, mas já estamos sonhando. As imagens do dia e o caldeirão psíquico já fabricando pensamentos a todo vapor. “Se você sonha, aceite seus sonhos. É o papel do dorminhoco”, Godard alerta em Imagem e palavra. O filme se divide em cinco partes, tal como os cinco dedos da mão: “a verdadeira condição humana é pensar com as mãos”. O animal simbólico está fadado à multiplicidade de funções em uma única parte de seu corpo, enumerou Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia (1977).
Em 1972, Lacan disse que o objeto a escapole das mãos em dois tempos: natureza e metáfora, as duas partes de Adeus à linguagem. Corpo e significante são aqui discriminados pelo olhar. Em boa parte do filme, acompanhamos Roxy, cachorro do próprio Godard, que vaga por imagens saturadas e sons desconexos. O filme explora o 3-D para subverter seu propósito hollywoodiano. A consistência da experiência imaginária a que a tecnologia costuma se destinar dá lugar ao desmonte. A mirada canina, às voltas com parcialidades, interrupções e desnivelamentos, escancara o significante enquanto ele não é idêntico a si mesmo; se diferencia, no filme, por combinação aparentemente aleatória. Somos convocados à busca da significação e à atenção flutuante. Nos esforçamos a compreender, mas relaxamos prazerosamente. Dessa encruzilhada de sentidos, o produto dessa experiência, menos melancólica que em Imagem e palavra, é esse único objeto, escorregadio, que a lógica é capaz de produzir, impasse de todo discurso.
Da reflexão entre democracia e totalitarismo à vadiagem de Roxy, há conversas esparsas de um casal sobre política, filosofia, matemática. “As duas grandes invenções: o infinito e o zero”, diz o homem. A mulher responde: “Mas não... o sexo e a morte”. Cita-se uma tal curva de Laurent Schwartz-Dirac que é infinita em todos os seus pontos, exceto em um onde é nula. São essas as dimensões que marcam esses filmes, mais do que outros de Godard, por serem as mesmas a que o significante nos leva, criando nelas seu impasse fundamental: o sexo e a morte. O infinito se sustenta nessa nulidade significante, indeterminação que nos obriga a criar objetos para além do princípio do prazer, encore, en corps, fora do corpo, fora do equilíbrio vital.
Não à toa, ambos os filmes se indagam sobre a guerra, a reprodução das guerras, a repetição da história. As cinco partes de Imagem e palavraRemakes, As noites de São Petersburgo, Essas flores entre os trilhos no vento das viagens, O espírito das leis e Região central-Arábia feliz — refletem sobre democracia, preconceito, barbárie, o mal-estar na civilização. Aqui não há sombras de personagens, mas trechos de filmes, imagens de guerra e documentações de destruição e protesto. O filme descostura e picota mesmo as suturas menos convencionais da forma. Como o próprio Godard disse uma vez sobre seu estilo, não se tratou de dizer algo, mas mostrar2. Sempre primordialmente preocupado com o talhamento e a renovação, o jovem cineasta de 89 anos não transmite apenas melancolia no filme: “Assim como o passado é imutável, também as esperanças permanecerão imutáveis”.
Eu não direi quase nada, eu busco a pobreza na linguagem”, diz o homem de Adeus à linguagem. No cantão de Vaud, na Suíca, onde mora Godard, “adieu” porta a ambiguidade de “salut”, dependendo da hora do dia ou de nossa entonação, como ele disse em entrevista3. Entre zero e o infinito do significante, onde um sentido se despede, no mesmo lance outro desponta.
Luiz Fellipe Almeida é psicanalista, mestrando em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP.
TRAILER : Adeus à linguagem 



TRAILER : Imagem e palavra

domingo, 1 de dezembro de 2019

PARASITE - um filme de BONG JOON HO (Parasita)


de Alfredo Rollo.

Parasita, do ponto de vista da biologia, significa um organismo que se associa a outros para deles obter alimento ou algo que garanta a ele a sobrevivência, causando, na maior parte das vezes, grandes danos aos hospedeiros. Parasitismo é o nome dado a essa relação. Carrapatos, pulgas, vermes, e outros seres, são largamente conhecidos por suas características parasitárias.

Ocorre que o termo passou a ser empregado pelos seres humanos, para designar o indivíduo ou grupo que se aproveita de outras pessoas para explorar, abusar, manipular e viver às custas de suas riquezas e esforços. E é exatamente isso que o filme de Bong Joon Ho, cineasta coreano, tenta explicitar no filme, cujo nome, Parasita, retrata uma família em situação de grande precariedade, morando nos porões de um bairro pobre, atravessando um momento de extrema dificuldade financeira.
O filme começa com essa família praticamente sem recursos, que perde o sinal de wi-fi “parasitado” de outro lugar próximo de onde moram. Com isso, pode-se perceber o quanto o contato com o mundo virtual anestesia ou mesmo suprime a percepção do mundo que os rodeia, escape de uma realidade dolorida e portanto, desagradável e indesejada. Freud nos contava que as experiências incômodas e de ordem traumática, habitam os porões do inconsciente, sendo reveladas ou revividas através do que ele chamou de “o retorno do recalcado”. Este retorno se dá pelos chistes, sonhos, lapsos e atos falhos e também pela fantasia.
Não fica claro o histórico psíquico da família que aparece no início do filme, mas pode-se inferir que as ferramentas psíquicas utilizadas para lidar com os conflitos sociais, estão a serviço do trauma, uma vez que a repetição de posturas e soluções para lidar com a pobreza, passeiam pelos chistes e fantasias.
Mas quando o filho de Ki-taek recebe um convite para dar aulas de inglês a uma moça de uma família rica, todo um rol de estratégias de infiltração, falsificação e parasitismo social são utilizadas pelos familiares de Ki-taek, com o intuito de explorar a boa fé dos ricos contratantes. A partir dessa premissa, o embuste, a mentira, a perversidade tornam-se elementos necessários para efetivar o plano parasitário. À medida que o processo de simbiose vai acontecendo, as famílias vão perigosamente se aproximando e segredos terríveis são revelados, culminando num desfecho trágico e violento.
Parasita é um filme que joga na nossa cara a falência das classes sociais, a tragédia da vida cotidiana e a psique absolutamente comprometida a qual estamos à mercê. Metáfora do inconsciente e de suas vicissitudes, o roteiro prende e não solta nunca mais. Sem dúvida há uma exacerbação desta metáfora, retratada pelos porões e segredos entre as famílias, que resultam na expressão da pulsão de agressividade, elevada ao seu grau extremo, que rompe todas as barreiras egóicas e triunfa tragicamente, como uma advertência da insolubilidade a qual estamos mergulhados no momento social e político atuais.
Após um dramático final, a redenção dos personagens demonstra uma tentativa de reordenar e deslocar as pulsões que ainda restam. Diante de uma grande descarga de tendências psicopáticas que se materializaram, o gozo se transforma em poesia e o caminho para uma improvável sublimação se desenha a partir da figura totêmica do pai.
Embora traga o parasitismo como um mecanismo usado pelas classes sociais, como se fossem as responsáveis diretas deste fenômeno, o filme destaca nas entrelinhas, o verdadeiro e cruel parasita de nossos tempos, não como um indivíduo, mas como um sistema: o capitalismo e suas diversas expressões parasitárias, entre elas o neoliberalismo.
Apresentando situações completamente absurdas, mas ao mesmo tempo, perfeitamente plausíveis, Parasita, ao meu ver, fecha o ciclo de filmes que escancaram as chagas sociais e psicológicas da sociedade atual, iniciado com Bacurau e seguido por Coringa.
Necessário.

Alfredo Rollo é psicanalista - www.asrpsi.com.br
TRAILER