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terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Adeus à linguagem, Imagem e palavra : o zero e o infinito de Godard

de Luiz Fellipe Almeida

Jean-Luc Godard é um poeta ensaísta. Sejam romances em forma de ensaios, sejam ensaios em forma de romance, como definiu seu trabalho, seu olhar sempre esteve sensível à palavra, ao poder da palavra, sua função de verdade, domínio, fruição, incógnita. Sua escrita, no entanto, transcende as falas, o roteiro, e contamina as imagens, que efetivamente operam como significantes por si mesmas, como bem notou Maria Rita Kehl1. Sua escrita é a filmagem.
Seus últimos filmes radicalizam a poesia de seu estilo, exacerbando o enigmatização do sentido e celebrando o equívoco; não para decretar o nonsense, mas para que a interpretação, que sabemos que não prescinde do sentido, siga e sustente os próprios equívocos da linguagem. É no intervalo entre os significantes-imagem que Godard nos tira da inércia da significação linear e nos coloca a trabalhar, assinando junto com ele o ensaio polissêmico que se produz na tela.
Adeus à linguagem (2014) e Imagem e palavra (2018): seus dois últimos filmes são o melhor acabamento dessa maneira aparentemente caótica de levar a significação às últimas consequências. Filme socialismo (2010) ainda sustém certa consistência em alguns personagens; ainda não é invadido por imagens transbordantes. Os diálogos ao fundo, às vezes à maneira dos filmes de Marguerite Duras, ajudam a manter alguma narrativa. Já os outros dois filmes rompem completamente com qualquer tentativa de identificação pelo espectador e mesmo com a paradoxal arguição indiferente que marca os personagens godardianos. A desordem reina — mas tudo de acordo com a autenticidade que só um fragmento pode carregar, como diz a citação de Brecht lida na voz de Godard. Migalhas de saber, diria Lacan, que aqui recebemos em seguidas explosões de imagem-som-palavra. Tudo de acordo com a temporalidade e a firmeza do despedaçamento dos ensaios.
Os filmes não saem nunca da estrutura de sonho, sua única exatidão. Mais precisamente, um estado hipnagógico; ainda estamos acordados, mas já estamos sonhando. As imagens do dia e o caldeirão psíquico já fabricando pensamentos a todo vapor. “Se você sonha, aceite seus sonhos. É o papel do dorminhoco”, Godard alerta em Imagem e palavra. O filme se divide em cinco partes, tal como os cinco dedos da mão: “a verdadeira condição humana é pensar com as mãos”. O animal simbólico está fadado à multiplicidade de funções em uma única parte de seu corpo, enumerou Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia (1977).
Em 1972, Lacan disse que o objeto a escapole das mãos em dois tempos: natureza e metáfora, as duas partes de Adeus à linguagem. Corpo e significante são aqui discriminados pelo olhar. Em boa parte do filme, acompanhamos Roxy, cachorro do próprio Godard, que vaga por imagens saturadas e sons desconexos. O filme explora o 3-D para subverter seu propósito hollywoodiano. A consistência da experiência imaginária a que a tecnologia costuma se destinar dá lugar ao desmonte. A mirada canina, às voltas com parcialidades, interrupções e desnivelamentos, escancara o significante enquanto ele não é idêntico a si mesmo; se diferencia, no filme, por combinação aparentemente aleatória. Somos convocados à busca da significação e à atenção flutuante. Nos esforçamos a compreender, mas relaxamos prazerosamente. Dessa encruzilhada de sentidos, o produto dessa experiência, menos melancólica que em Imagem e palavra, é esse único objeto, escorregadio, que a lógica é capaz de produzir, impasse de todo discurso.
Da reflexão entre democracia e totalitarismo à vadiagem de Roxy, há conversas esparsas de um casal sobre política, filosofia, matemática. “As duas grandes invenções: o infinito e o zero”, diz o homem. A mulher responde: “Mas não... o sexo e a morte”. Cita-se uma tal curva de Laurent Schwartz-Dirac que é infinita em todos os seus pontos, exceto em um onde é nula. São essas as dimensões que marcam esses filmes, mais do que outros de Godard, por serem as mesmas a que o significante nos leva, criando nelas seu impasse fundamental: o sexo e a morte. O infinito se sustenta nessa nulidade significante, indeterminação que nos obriga a criar objetos para além do princípio do prazer, encore, en corps, fora do corpo, fora do equilíbrio vital.
Não à toa, ambos os filmes se indagam sobre a guerra, a reprodução das guerras, a repetição da história. As cinco partes de Imagem e palavraRemakes, As noites de São Petersburgo, Essas flores entre os trilhos no vento das viagens, O espírito das leis e Região central-Arábia feliz — refletem sobre democracia, preconceito, barbárie, o mal-estar na civilização. Aqui não há sombras de personagens, mas trechos de filmes, imagens de guerra e documentações de destruição e protesto. O filme descostura e picota mesmo as suturas menos convencionais da forma. Como o próprio Godard disse uma vez sobre seu estilo, não se tratou de dizer algo, mas mostrar2. Sempre primordialmente preocupado com o talhamento e a renovação, o jovem cineasta de 89 anos não transmite apenas melancolia no filme: “Assim como o passado é imutável, também as esperanças permanecerão imutáveis”.
Eu não direi quase nada, eu busco a pobreza na linguagem”, diz o homem de Adeus à linguagem. No cantão de Vaud, na Suíca, onde mora Godard, “adieu” porta a ambiguidade de “salut”, dependendo da hora do dia ou de nossa entonação, como ele disse em entrevista3. Entre zero e o infinito do significante, onde um sentido se despede, no mesmo lance outro desponta.
Luiz Fellipe Almeida é psicanalista, mestrando em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP.
TRAILER : Adeus à linguagem 



TRAILER : Imagem e palavra

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

“Alphaville” : Jean-Luc Godard (1965) e a Segregação

de Christian Ingo Lenz Dunker

Em seu texto sobre a Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola[1], Lacan aponta três temas fundamentais para pensar o lugar da psicanálise no mundo: a identificação no Imaginário, o Complexo de Édipo  no Simbólico e a segregação no Real. Apesar da grande dedicação que os lacanianos tem prestado ao conceito real muito pouco se obteve até aqui sobre uma concepção psicanalítica da segregação[2]. Segregar não é apenas excluir ou negar, nem repudiar ou isolar. Segregar deve ser deduzido da operação de retorno no real, segundo a tese: o que não é inscrito no simbólico retorna no real. Há várias maneiras de não se inscrever no simbólico. A segregação é uma delas. Sua imagem topológica mais simples é a de um grupo psíquico separado, um círculo dentro de outro, um condomínio com muros que o separam do mundo do qual ele, contudo, faz parte.  Essa é também a visão intuitiva e ideológica do mundo como um conjunto de esferas, círculos, territórios, áreas ou disciplinas entre os quais nós podemos trafegar e aos quais nos pertencemos por origem ou direito.
Segundo Lacan a Garrafa de Klein é um modelo muito melhor para entender mundo moderno, no qual interior e exterior se comunicam, com pontos de passagem indeterminados, com sua confusão estrutural entre público e privado. Podemos pensar que a segregação tem a estrutura de uma falsa Garrafa de Klein, na qual interno e externo são determinados e concêntricos, reproduzindo a lógica do mundo a-cósmico, com suas esferas e pontos de passagem, mas sem pontos de saída.
            Alphaville: uma estranha aventura de Lemmy Caution” dirigido por Jean Luc-Godard, em 1965, é um filme sobre a segregação que descreve em detalhes a formação desta falsa Garrafa de Klein, formada por um universo fechado no qual sabendo-se tudo que importa sobre o passado, e onde todos são “escravos das probabilidades” neste presente que é a “única forma de vida”.
Godard começa a desequilibrar a redoma de Alphaville formalmente. Ele perturba a divisão habitual de gêneros, ao qual o público estava acostumado: policial noir, drama e ficção científica. Ou seja, não é apenas no conteúdo da narrativa que vamos encontrar uma solução para a segregação representada em Alphaville, mas também, e sobretudo, na forma da linguagem fílmica. Seu protagonista, Eddie Constantine, cujo nome se escreve Ivan Johnson, mas se pronuncia Lemmy Caution, o sucessor de Dick Tracy e Flash Gordon, é um espião que vem do mundo exterior disfarçado de jornalista do Pravda-Figaro, para investigar os planos de destruição feitos pelo professor Von Braun, arquiteto do programa de computador Alpha 60, que comanda e organiza Alphaville. Sua filha, Natasha Von Braun (Ana Karina), acompanha e vigia Lemmy até o ponto de se apaixonar por ele. Mas a paixão, assim como outras emoções, e tudo o que é ilógico, são atividades proibidas, puníveis com a morte. Há uma preocupação extrema com o uso da linguagem, pois “tudo está escrito, a não ser que as palavras mudem de sentido”. Para que tudo funcione é preciso dizer sempre “porque” e nunca “por quê?”.
Lemmy Caution atira contra perseguidores, com rosto impassível e sem deixar cair o cigarro da boca, como se estivesse espantando moscas. Eles aparecem no banheiro, atrás da porta, de carro no pátio, disfarçados de Sedutrizes, mas assim como os policiais de A Carta Roubada, de E.A. Poe, nada enxergam. O verdadeiro confronto entre Lemmy e Alpha 60 é um confronto de palavras e de discursos, que se concentra na cena do interrogatório. A máquina pergunta “o que você sentiu ao passar da Galáxia Exterior para Alphaville?” ao que ele responde, com Pascal “o silêncio eterno destes espaços infinitos me apavora”. “O que transforma a luz em escuridão?” pergunta a máquina. Lemmy responde: a poesia.
A trama termina com a fuga do casal Lemmy e Natasha, rumo ao exterior, enquanto Alphaville se asfixia envenenada pelo raio da morte. Final que parece ter inspirado Ridley Scott, em Blade Runner e também, antes dele, Fritz Lang em Metropolis[3]. Final que nomeia esta nossa grande utopia e forma maior da demanda, no mundo a-cósmico, que é a demanda de “sair”.
            Godard insistia que seu interesse não era tanto na ilusão de realidade, mas na realidade da ilusão. O real que se esconde ou se mostra na imagem do mundo, como uma realidade unificada e coerente, diante e nossos olhos, criando assim a perspectiva simbólica onde nos localizamos. Foi também este o ponto de partida de Lacan em seu texto sobre o Estádio do Espelho como formador da função do eu [Je] em psicanálise, de 1936 e 1949. A segregação acontece quando esquecemos o hiato entre a realidade e o Real, quando identificamos ambos ao custo de uma particularização simbólica. Logo no começo do filme somos apresentados à voz gutural de Alpha 60 que diz: “a realidade é complexa demais para sua transmissão oral”. É exatamente esta particularização simbólica que está em jogo na formação destes universos fechados, que podem ir do sistema de castas e acessos, como em Admirável Mundo Novo, publicado em 1932 por Aldous Huxley, até o próprio conjunto da terra e do espaço como em 2001, uma Odisséia nos Espaço, dirigido por Stanley Kubrick em 1968.  Ou seja, não estamos falando do espaço geométrico apenas, mas do espaço como linguagem.
            Diz-se que o cinema começou com os irmãos Lumière (1895), filmando, como um documentário, a realidade dos operários saindo de uma fábrica e com Georges Méliès (1902) usando truques de montagem, para criar a ficção científica de “Viagem à Lua”. Ou seja, ambos filmes sobre “saídas”. Saída do mundo do trabalho e saída do planeta terra. Contra esta repartição simples, Godard usa a ficção científica (no roteiro) de modo documental (sem efeitos especiais). Este processo se observará no uso da trilha musical, de Paul Miraki, que alterna o uso de artifícios tensionais, típico do suspense, usado em cenas de deslocamentos rodoviários banais, ao passo que as cenas de tiros e ação são pontuadas por uma paisagem sonora naturalista. Esta habilidade de “reunir arranjos cômicos com sonetos de amor em uma única sensibilidade singular[4] é própria do método de Godard para extrair a verdade do real.
Temos aqui as duas faces do Real, melhor dizendo, duas verdades das quais podemos extraí-lo, enquanto estrutura de ficção. Com isso argumento que o conceito lacaniano de ficção compreende tanto o que entendemos como ficção (romance, ficção-científica, drama) quanto o plano da história (documentário, descrição, fotografia). Aqui me refiro ao trabalho de Hal Foster que, usando a teoria freudiana do trauma em dois tempos e a concepção lacaniana do temo lógico, mostrou a íntima conexão entre as vanguardas dos anos 1930 e a sua retomada nos anos 1960 como uma espécie de “retorno do real”. As neovanguardas pop, retomam a temática da ilusão de realidade, enquanto os formalismos retomam o problema da realidade da ilusão. Lacan atravessou estes dois momentos, 1932 e 1966, das vanguardas e das neovanguardas, sem deixar que uma problemática do Real fosse substituída pela outra. Nosso atual estado de desgarramento entre a crítica baseada na autonomia da obra, de arte de um lado, e o sociologismo da autoria, por outro, é um efeito da incompreensão histórica da relação entre linguagem e lógica da segregação.  Lemmy ... consciência ... consciência .... destruir ... faça Alpha 60 destruir a si mesmo ... delicadeza ... salve aqueles que choram”. Esta é a mensagem cifrada que nosso herói usa para lembrar de sua missão, uma vez que outros espiões que o antecederam, esqueceram disso e ficaram perdidos em Alphaville. Esta mensagem, no fundo lembra que a arma fundamental de Lemmy contra Alphaville é a poesia. E se esta é também o antídoto contra a segregação precisaríamos saber algo mais sobre que tipo de poesia é esta.
Alphaville é organizada por uma lei, contida na bíblia das palavras que são permitidas. Um homem que chora pela morte da esposa é executado em um ritual “estético”. Há uma sala de recepção, garçons e recepcionistas, depois um camarote envidraçado de onde se vê uma piscina. O condenado faz sua declaração final, caminha na prancha e é abatido por tiros. Lindas mulheres de bikini, com facas na boca, pulam na água e estraçalham o que pode ter restado da vítima. O público bate palma. Para além da perturbação de gêneros, dos debates dos anos 1960 em meio à guerra fria e o papel do cinema no pós-guerra, Alphaville é um filme que recupera o surrealismo, não apenas como plataforma estética de investigação do Real, mas como antídoto político contra a segregação. Para isso teríamos que atentar para o volume que ele indica para Natasha, para “inocular” nela a cura.  “Capitale de la Doulor” é um dos livros principais de Paul Éluard [5], surrealista próximo do grupo de Breton, e amigo de Jacques Lacan[6]. É por meio de outro verso de Éluard que Lemmy seduz Natasha: “Por causa do amor tudo se move. Todos precisamos apenas avançar para viver, ir em frente para tudo o que você ama. Eu estava indo em sua direção. Eu estava indo perpetuamente em direção da luz”.
O problema em Alphaville é que, com a exceção dos tipos poéticos que vivem nos “setores condenados”, o que todos estão fazendo é simplesmente viver como ocupação de espaço e não “morrer” e principalmente “morrer de amor”[7]. Quando Alpha 60 pergunta: “qual é o privilégio de morrer?” Lemmy responde: “não continuar morrendo”. Para os surrealistas morrer de amor é a condição para continuar a viver, como tematizou Éluard em “Morrer de não mais Morrer” (1924). Daí que o condenado declame o seguinte trecho de Paul Éluard, antes de ser executado: “Escutem-me seus normais! Nós vemos a verdade que vocês não enxergamos mais. Esta verdade é que não há nada verdadeiro no home exceto amor, fé, coragem e ternura.” Daí também que o primeiro mandamento seja: “Alphaville: silêncio, lógica, segurança e prudência”, mandamento cuja prática é acompanhada pela ingestão contínua de pílulas pacificadoras.
Caution, torna-se assim o significante mestre para esta operação de confronto com a morte, sem medo e insegurança. Ele é o perfeito personagem surrealista. Não é o intelectual literário de gabinete enfurnado em sua erudição, mas um detetive prático de olhos atentos na transformação da realidade por meio de atos. Essa é a primeira dimensão esquecida do poema em Lacan, que aparece na década de 1930[8] e ressurge em seus últimos seminários da década de 1970: o poema é um ato de anti-crença contra o silêncio conformista. Por isso o que nele conta não é sua estrutura de ficção, mas a verdade em seu ato de produção. Se no caso da ficção extraímos a verdade do real, aqui é a verdade que cria um efeito de Real. São os dois pontos de torção invertido, das Bandas de Moebius que constituem uma garrafa de Klein.
Alhaville é a primeira reflexão sistemática sobre a vindoura vida em forma de condomínio. Uma forma de vida que antes de tudo expulsa a poesia, e recusa toda ternura, como dizia Éluard. O surrealismo em geral e Lacan em particular percebem que a segregação começa no discurso, nas estereotipias que impõe o ritmo á frase, “nas palavras, sílabas, sonoridades obsedantes e assonâncias”[9], como um automatismo no qual a linguagem não pode mais questionar o pensamento. A segregação termina nos muros, não é lá que ela começa, mesmo que seja dali que ela se reproduza. A segregação começa pelos maus tratos dedicados ao que não faz sentido, pela expulsão do não sentido para fora dos muros. E desde lá ele retornará como Real. Por isso precisamos urgentemente de menos lemas de condomínio e de mais heróis como Lemmy Caution e Lemmy Kilmister[10].


[1] Lacan, J. (1967) Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[2] Tentei contribuir para tratar desta questão em meu livro: “Mal-Estr, Sofrimento e Sintoma” (São Paulo:Boitempo, 2015)
[3] Particularmente os trabalhadores que escapam da cidade inundada.
[4] Andrew Sarris  You Ain’t Heard Nothin’ Yet”: The American Talking Film: History and Memory, 1927-1949”.
[5] Benedick, M. (2004) Jean-Luc Godard: uma antologia crítica. Dutton, et. Ali, San Francisco: Toby Mussman.
[6] “O Sr. A (filósofo) apareceu neste sábado, não sei de onde, para me apertar a mão e fez ressurgir o título de Tzara, da época Dada, ou seja, nada da futilidade que começou com Littérature. De boa vontade é imputado a mim um surrealismo, o que está longe de seu de meu agrado. Certo, provei disso, mas apenas contribuindo de forma lateral e tardia (o que zangou Breton), no entanto devo dizer que Édouard me enternecia.” Lacan, J.  (1980) Nota A. Ornicar 20-21. Paris: Seuil.
[7] “Nós vivemos no limbo da metamorfose. Mas este eco que corre por todo dia, este eco além d tempo, do desejo e do cuidado continua a pedir. Estamos longe ou perto, de nossa consciência.” Paul Elouard, tradução do autor.
[8] Tlatli, S. (2000) Le Psychiatre et ses Poétes – le jeune Lacan. Paris: Tchou.
[9] Lacan, J. (1932) Esquizografia: escritos inspirados. In Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
[10]  Ian Fraiser Willis (1945-2015) ou Lemmy the Lurch, foi um baixista e cantor inglês, conhecido por ser o fundador da banda de rock inglesa Motörhead. Era adorado pelos seus fãs por sua postura roqueira, estilo de tocar e timbre de voz marcante. 

Trailer do filme

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de vários livros, entre eles Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros  (Boitempo, 2015)

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Nossa Música : de Jean-Luc Godard

por Karin de Paula
Com um título desses, até os menos românticos são capazes de se animarem. Nossa música! Mas quem fazemos este “nós”? No escopo da cinematografia godardiana, trata-se de uma ambição derrisória, por evocar o coletivo humano em suas vísceras de crueldade e destruição... Homem de nem tantas palavras, Godard prima pela mostração:
É com Jean-Luc Godard que o cinema-ensaio chega a sua expressão máxima. Para esse notável cineasta franco-suíço, pouco importa se a imagem com que ele trabalha é captada diretamente do mundo visível ‘natural’ ou é simulada com atores e cenários artificiais, se ela foi produzida pelo próprio cineasta ou foi simplesmente apropriada por ele, depois de haver sido criada em outros contextos e para outras finalidades, se ela é apresentada tal e qual a câmera a captou com seus recursos técnicos ou foi imensamente processada no momento posterior à captação através de recursos eletrônicos. A única coisa que realmente importa é o que o cineasta faz com esses materiais, como constrói com eles uma reflexão densa sobre o mundo, como transforma todos esses materiais brutos e inertes em experiência de vida e pensamento.”.
(MACHADO, 2003: 10)

O 1º Reino: O Inferno
Então, são poucas palavras costuradas às muitas imagens. Imagens que nos assustam, nos impressionam, até mesmo nos aterrorizam, e nos revelam. Quem, que não nós mesmos, estivemos lá? Se não de corpo, mas de alma, ou por vestígios do outro em mim?
Assim, no tempo das fábulas, depois das inundações e do dilúvio, surgiram da terra os homens armados e se exterminaram...
Eles são terríveis aqui, com esta mania de decapitar as pessoas. O que surpreende é haver sobreviventes...
Fragmentos de violência, sob os riscos do Real. Obsceno, como diria Baudrillard...
Perdoem aos que nos ofenderam, assim como os perdoamos... Não de outra maneira.
Sim, como nós os perdoamos... Não de outra maneira...
Ficção e arquivo, mas não sem uma questão colocada sobre a morte: podemos encarar a morte de duas maneiras, como o impossível do possível, ou como o possível do impossível...
... “Você se lembra de Sarajevo?”...
Todo grande filme de ficção tende ao documentário e todo grande documentário tende à ficção e, quem optar por um, encontrará necessariamente o outro no fim do caminho” (Jean-Luc Godard)
... “Você se lembra de Sarajevo?”...

O 2º Reino: Purgatório
Algumas palavras, muitas imagens devastadoras -o que sobrou? O que sobrou de nós? Assemblage, bricolagem de nossos termos fragmentados – nossa música?-, tentativa de reconstrução, reconciliação entre perdas, ruínas, Roma, memória que não é só tua ou minha... afinal, a verdade tem estrutura de ficção. Ficção possível?
Segundo Machado (1999), Nossa Música é a versão godardiana da Divina Comédia, de Dante, e foi filmada a partir de elementos fragmentários da sociedade moderna, marcada pela guerra e pelo horror.
Segundo o rabino Nilton Bonder, e ao contrário da soberba humana, o perdão é a realização de uma perda grande... uma perdona...
Quando o imperativo categórico impõe a destruição, cabe nos interrogar a respeito?
Certa vez, ouvi um depoimento de um sobrevivente do Shoah, que já adulto dizia ter se surpreendido com um pensamento que lhe ocorrera no momento que se viu livre do campo de concentração quando criança. Teria pensado ele: Agora posso morrer! Para sua própria surpresa “temporária”, este, agora homem, realizara: Claro, morrer não é o mesmo que ser exterminado...
Assim, vimos nas imagens selecionadas por Godard, não só cenas de Memory of the camps (1985), mas também cenas lúdicas de batalhas infantis: arquivo e ficção...

De A vida secreta das palavras, dirigido por Isabel Coixet:
Há poucas coisas: o silêncio e as palavras.
A pergunta é: Como alguém vive com o que aconteceu?
Eu sei, terão que ir para o futuro... Alguns não conseguem.
Outros se recusam. Recusam-se a admitir que estamos todos no fio da navalha que corta a visada do mundo .
Ter o privilégio de dizer das visitas ao Real: repetir-se e reinventar-se, eis o desafio.
E há os livros... protagonistas no purgatório de Godard, empilhados, esparramados e, até mesmo, tomados como bomba na bolsa vermelha de Olga, eles constituem o que mais precisamente parece fazer parte do mundo que tenta se configurar como válido e responsável pelas vidas que ainda vigoram, embora haja empecilhos...
No cinema e na vida, ponto e contra-ponto ex-istem como meio de reflexão possível.

O 3º Reino: Paraíso
No cartaz original de divulgação de Melancolia, de Von Trier, estava escrito sobre a foto de Justine disposta como Ofélia de Hamlet: “O fim será belo”... Mas, Isso será possível? O que podemos fazer com Isso? Ou Dizer dIsso? Perguntas de uma análise...
Se é sim, não o é sem passar pelo inexorável fim admitido, quando terá sido fundamental ter lançado mão, como em Melancolia, Nossa música, ou ainda, Divina Comédia, da “caverna mágica” estabelecida por um puro designo nominativo. Este é o lugar da aposta de que seja factível ficar com o possível do impossível...
SP/ Dezembro de 2012

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo  Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.