domingo, 19 de outubro de 2014

Filme "Trash - a esperança vem do lixo" e a infância

de Isloany Machado
E neste dia das crianças eu vou falar de um filme que assisti ontem e que me deixou com uma sensação de estar implodida, inundada por um sentimento desconhecido. Um buraco que tem que ser preenchido com palavras. Trata-se do filme Trash – a esperança vem do lixo. Gravado no Brasil, de direção estrangeira, com destaque para Selton Mello e Wagner Moura. Mas pra meus olhos o destaque foi para os três atores mirins, por isso escrevo pra comemorar o dia das crianças.

            O contexto do filme é um lixão onde vai parar uma carteira muito valiosa, não pelo dinheiro que contém nela, mas por guardar um segredo de um poderoso político. Tão poderoso que coloca a polícia a seu serviço para ir até o lixão encontrar a bendita carteira. Acontece que um garoto já encontrou e dividiu o segredo com seu amigo. Inicia-se a investigação tanto dos policiais, quanto dos garotos, que não confiam no policial –personagem de Selton Mello. São três meninos, um que encontrou a carteira, outro que sabe o segredo, e um terceiro, o Rato, que vive dentro do esgoto, fede e tem feridas no corpo que nunca saram. Uma bela metáfora para dizer o que é a miséria, o que é estar à margem, como feridas que nunca fecham.

            Uma das cenas mais pesadas é quando um dos garotos, justamente o que encontrou a carteira, é levado pela polícia e, num efeito “montanha russa” dentro da viatura, é jogado de um lado a outro pelos próprios solavancos propositais dados por seus algozes. Ele escapa vivo (tal como uma barata em que se pisa, pisa, e ela insiste em não morrer). Quando questionado sobre o porquê de estar levando a investigação adiante, ele simplesmente diz: “porque é certo”.

            Então, eu não diria que a esperança vem do lixo, mas sim que vem da infância. A não ser que o lixo esteja colocado aí como fonte de vida, de desejo. O nada. O resto. O lixo. De onde não se acredita que pode haver algo além, é justamente daí que a vida pulsante renasce. O grande desafio é vencido pelas crianças, pela infância, lugar onde está todo o nosso “lixo”, tudo o que deveria estar esquecido, mas insiste, persiste. Quanto ao desejo, deveríamos ser assim: faço porque é o certo, e nada mais. É o certo no sentido moral? Nem de longe! Esse certo tem a ver com a verdade de cada um. Bem, devo dizer que não acredito em verdades, quanto menos nas absolutas.

            Por isso o filme me tocou tanto. Porque pude ver ali, mais uma vez e sempre, que a infância é o meu lugar. Como diz Mia Couto, “velhos são aqueles que não visitam as suas próprias variadas idades”. Não quero crescer nunca, porque quando a gente cresce o coração fica duro, se corrompe. E só gosto de gente que não tem medo de ser assim, mergulhada na sua pequenez. Somos pequenos diante da imensidão do mundo, dos Outros, dos desejos. Mas por trás dessa imensidão há uma outra, há uma vastidão de matéria da mais elevada qualidade: um nada corporificado, cheio de substância, de sustança. Estar no lugar da infância – questionador, perguntador – pode ser perigoso. Há verdades que preferiríamos não saber. Mas o que mais tentamos sufocar embaixo do tapete, é isso mesmo que volta, se revolta e quer saber.

            Desejo feliz dia das crianças para todos aqueles que não perderam a capacidade de amar, que não pararam de perguntar, pois estar no lugar da infância, pra mim, é justamente isso.
Isloany Machado, 11 de outubro de 2014.

Trailer do filme

Isloany Machado é Psicanalista, Escritora e Professora da UFMS.  Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora do livro “Costurando Palavras” (ed. Life, 2012) e fundadora do blog  www.costurandopalavras.com.br

sábado, 20 de setembro de 2014

A Pergunta dos Seus Olhos

de Aline Fiamenghi


O filme em questão nessa edição é “O Segredo dos Seus Olhos” de Juan José Campanella, maior audiência nos cinemas argentinos em 35 anos. Ricardo Darín interpreta Benjamín Espósito, que aposentado escolhe para tema de seu livro o caso criminal que mais marcou a sua carreira no Tribunal de Buenos Aires. Na organização dos fatos rememorados, ele revê o homicídio investigado em 1975 e termina por repensar as decisões feitas no passado.


Discutiremos a saga do protagonista na busca pela letra do seu desejo. Na oportunidade de escrever o romance de sua vida, ele percebe, como em um jogo de espelhos, como os personagens movidos por olhares, intenções e paixões, se denunciam. 


Entre o homem e o amor,

Há a mulher.

Entre o homem e a mulher,

Há um mundo.

Entre o homem e o mundo,

Há um muro”  

Antoine Tudal


O muro

Impacta o impedimento que Espósito vive em relação ao amor. Como se houvesse um muro, quase palpável para o espectador, o protagonista se aliena da sua condição desejante. Essa (im)possibilidade angustia.

Espósito se apaixona por Irene na primeira vez que a vê, quando ela ocupa o cargo de chefia em seu cabinete. Desde então eles mantém uma relação estreita, mas ele é claramente ambivalente em relação a ela.

O protagonista fica paralisado perante o pedido de amor.


O amor


TEMO, é a palavra que acorda nosso protagonista no começo do filme e o faz estranhar-se. O que há nisso? É como ele soubesse, sem saber, que havia algo ali. Na palavra, uma brecha, uma fissura, que o faz movimentar-se. O que há por trás da vontade de escrever o livro? Ele é o autor de que história? 


É nesse ponto e com essas perguntas que seguiremos o percurso do bilhete: TEMO. 


Somos levados a pensar que o remetente é algo ou alguém em Espósito, ele próprio autor e endereço dessa mensagem. A saga segue no sentido de recuperar a “letra enigma”, a letra “a” faltante tantas vezes em sua escrita e em sua máquina de escrever.


A letra que foi perdida, mas que paradoxalmente, está lá o tempo todo, pedindo um leitor, olhos que a leiam. Talvez essa seja “a pergunta de seus olhos”, nome da novela de Eduardo Sacheri que deu origem ao filme, oportunamente reeditado. Em castelhano e em português o pronome possessivo “seus” não indica gênero, pode ser dele, dela, de outro, ou dos demais.


Os olhos circunscrevem um lugar, diferente do olhar, circunscreve um campo de experiência, de tensão do não-dito: sua intensidade, sua atmosfera, sua melodia, a espessura do vivido, e assim, denunciam o impedimento, a inibição, a paixão.


Podemos dizer que esse é um filme sobre paixões: a de Espósito por Irene, a de Morales por Liliana, a de Sandoval pela bebida, a paixão pelo futebol. “Podemos mudar tudo na vida, menos mudar de paixão”, nessa fala a pista que ajuda Sandoval e Espósito a capturarem o assassino. Por que não muda-se de paixão? Onde ela captura? No objeto perdido, o objeto a, que causa.


Espósito se identifica com Morales, que para ele é o homem que realmente ama, ele diz sobre Morales: “ele está sempre em um estado de amor puro, posso ver em seus olhos”. Mas o que será esse estado puro, absoluto que é visto por Espósito no olhar de Morales? Espósito quando fala de Morales, fala de Espósito não de Morales... No olhar algo do insconsciente está posto.


O amor puro só poderia ser a morte, a prisão que encarcera o carcereiro junto ao assassino. Já que a justiça não garantiu pena justa a Gomez, Morales resolve fazer justiça e dá sua medida ao castigo: prende o assassino e o priva de sua palavra. Nessa recusa da palavra, o apagamento do sujeito. É como se Morales quisesse negar existência a Gomes, mas não com a morte, com a prisão perpétua da morte em vida, o que é muito pior.


Ao se deparar com a miséria da prisão imposta pela paixão do carcereiro e do assassino, Espósito se depara com a própria prisão-paixão e consegue sair dessa posição. Recupera a letra e então pode lê-la, por “mais complicado que possa vir a ser”, ele não se importa mais: de TEMO à TE(A)MO, o percurso para uma condição desejante.

São Paulo, 29 de Julho de 2010

Trailer Oficial do Filme

Endereços/links para filme completo com legenda:   https://www.youtube.com/watch?v=03QTWAd9qtg
e   https://www.youtube.com/watch?v=e6Yb_FP7hMY


Aline Fiamenghi é praticante da psicanálise, mestre em psicologia clínica pela PUCSP, coordena o trabalho de Imaginação e(m) Movimento a partir de seus conhecimentos em consciência corporal, movimento autêntico e dança contemporânea. Participa da rede de pesquisa Sintoma e Corporeidade no Instituto da Pele - UNIFESP e das Formações Clínicas no Fórum do Campo Lacaniano - SP.

domingo, 15 de junho de 2014

PHILOMENA : Culpa, parente da angústia?

de Henrique Senhorini

...certas dívidas, especificamente simbólicas,
excluem a chance de um acerto de contas completo, sem resto.” Oscar Cesarotto

O filme "Philomena" do diretor inglês Stephen Frears, com quatro indicações para o Oscar em 2014, além de carregar seu nome, foi inspirado em sua vida. Até dá para pensarmos que é quase um documentário, mesmo com as pitadas de humor(?) que o diretor - proposital ou não - insiste em amalgamar com a crueza da vida como ela é. 

Mas afinal, a nossa vida não é um documentário ficcional? A nossa própria história “verídica” também não é uma ficção, visto que sua tessitura é permeada pela fantasia?
E este excelente filme bem demonstra o lugar de importância que a fantasia ocupa em nossas vidas. Trata-se de um lugar que tenta nos fazer esquecer a máxima de Hélio Pellegrino: “a condição humana não tem cura”. Pois, a fantasia consegue, de acordo com o enunciado freudiano, produzir uma satisfação que é negada pela realidade. Pensando com Coutinho Jorge, a fantasia é uma solução para nós sub-existirmos com um minguado de satisfação que podemos retirar da realidade. Contudo, não é propriamente da fantasia que vou tratar aqui, mas, sim, recortar um afeto tão presente no filme e caríssimo para os neuróticos (no mínimo, somos neuróticos): a culpa.

Bem, como já disse, o filme é baseado na história real de Philomena Lee, uma senhora irlandesa que teve seu filho de três anos de idade, Anthony, “adotado” em 1955 por uma família organizada de acordo com os padrões de sua igreja. E por saber que se tratava de uma história verídica e, concomitante, não pertencente exclusivamente à personagem que dá nome ao filme “Philomena”, causou em mim uma indignação tamanha, que só escrevendo sobre para, quiçá, elaborar melhor. E o filme tem muito disso, luto e elaboração, luto e elaboração, luto e elaboração...
Porém, confesso que não foi nada fácil digerir que o acontecido não foi na idade média, mas na metade do século passado. Porém, pior é saber que em pleno século XXI, ainda acontece esse tipo de barbárie. E minha indignação – raiva e repulsa – aumentou mais além, quando fiquei sabendo, diga-se de passagem, que mais de duas mil (2.200 mulheres/mães, segundo a Folha de S.Paulo) conterrâneas de Philomena – irlandesas como ela – tiveram a sua mesma má sorte, a de vivenciarem a adoção forçada pela igreja católica irlandesa - na realidade, vendidos - de seus filhos por pais norte-americanos endinheirados.

Após este meu desabafo (eu precisava disso), vamos ao filme...
Mas, antes de adentrarmos na história apresentada, só um lembrete que considero importante mencionar: vamos tratar aqui da história retratada no filme, somente dele.
Bem, dito isso, a primeira cena com a protagonista mostra Philomena - idosa e nos dias atuais - numa igreja acendendo uma vela e respondendo ao padre que era para alguém especial. Em seguida, o diretor mostra-a sentada em um banco eclesial relembrando um grande acontecimento de sua vida. Via flashback, ela se vê vivenciando um momento raro seu de intensa felicidade, que a marcou para sempre e de várias maneiras. Um rapaz galanteador que conhecera momentos antes, no parque de diversão nos anos 50, no qual se encontrava, a corteja. Philomena, uma feliz menina moça do após-guerra, experiencia pela primeira vez um romance tórrido, abrasador e - talvez por isso mesmo - fugaz. A sua maçã de amor mordida é destacada ao cair no chão. Igreja + padre (pai) + maçã = Eva + pecado original? Temos aí uma intenção do diretor?
Stephen Frears, o diretor, avança nas lembranças e nos mostra Philomena, já grávida, sendo inquirida pela madre superior do mosteiro, a Abadia Roscrea. Um local religioso que recebia futuras mães solteiras, levadas por suas famílias envergonhadas. E, logo no início da inquirição, a tal madre dirige esta pergunta a Philomena: “Você gostou de seu pecado?”

um pequeno parênteses aqui
Interessante a palavra pecado (pe-cado): pé caído; pecar: dar um passo em falso, palavras que fizeram, segundo Geraldino Alves Ferreira Netto, surgir as expressões “queda original” e “cair em pecado”. Geraldino ainda nos lembra de Édipo, “pé inchado”, pois seus pés foram amarrados “para não pisar em falso, cair em pecado, em erro de julgamento, em incesto”. Porém, o pé inchado o fez mancar.

Continuando na Inquisição, êpa, na inquirição, Philomena tenta se defender, já quase em prantos: “Nunca me ensinaram sobre [fazer] bebês”. Defesa esta que faz a madre, de bate-pronto e com língua incendiária, culminar: “Não ouse culpar as irmãs (sic). Você é a causa desta vergonha. Você e sua indecência.”.
Em seguida, outro corte e o diretor avança mais um pouco na linha do tempo mostrando a cena do parto. Parto este - pélvico e sem anestesia - sendo realizado pelas próprias freiras. Mas, diante da constatação que o bebê de Philomena - aos berros pela dor - se encontrava em posição invertida, uma das freiras, acho que a parteira principal, sugere para a madre superior chamar um médico. Porém, ela recusa a proposta dizendo: “Está nas mãos de Deus agora. A dor é a penitência dela”.  Crime e castigo?  Sim !!!  Philomena foi considerada culpada pela madre superior e o parto doloroso era somente o inicio de sua pena.

outro parênteses aqui...
Ceder ou não ao desejo? Talvez este seja o ponto fulcral das divergências entre a psicanálise e a religião, como nos lembra Geraldino Netto, visto que - generalizando - para as religiões a culpa é decorrência de ceder ao próprio desejo, enquanto a psicanálise, através de Lacan, nos ensina o contrário: “a única coisa da qual o sujeito pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo”, em A Ética da Psicanálise.

Mais um corte do diretor proporciona o retorno de Philomena ao sofrimento atualizado pelas lembranças. Era o dia no qual seu filho Anthony completava 50 anos que provocava tamanha dor. E ela carregava o segredo de ter tido este filho por todo esse longo tempo, mais o fato dele ter sido “doado” contra a sua vontade. Sim, de ter tido o filho e não dito ao mundo sobre sua existência, a de Anthony, mais a tentativa, via resignação, de aplacar sua dor, mais o fato não ter ido procurá-lo, de nada saber e ou não querer/poder saber sobre o filho, era o seu martírio (em botânica, flor-da-paixão). Essa era a pena a cumprir. Mas, o que fazer? Afinal, a sentença da madre superior fora dada e Philomena não sabia como pensar e fazer diferente, principalmente diante do mundo no qual
vivia. Até se deixou convencer de sua culpa, assinando um documento padrão - produzido pelas freiras para as mães solteiras - desistindo da guarda de seu filho. O mesmo serviria posteriormente para impedir essas mães a voltarem atrás de suas decisões e, ao mesmo tempo, protegeria as “irmãs” de seus atos criminosos.
Só que meio século depois ela cansou de pagar esta dívida impagável, imposta pelas normas sociais e religiosas de sua época. E, talvez, por viver agora no presente, numa sociedade um pouco mais branda em relação ao seu pecado, mãe solteira, lhe tenha dado a coragem necessária de, enfim, lutar a favor de seu desejo.

um aparte...
Aqui tem um fato indicando que a culpa pressupõe um Outro. Não um outro qualquer, mas um grande Outro. Lembramos que geralmente a mãe é nosso primeiro de muitos Outros (mãe, pai, tio, professor, padre, igreja, Deus, empresa, sociedade, capital, etc...), em termos de importância para cada um de nós. De acordo com Colette Soler, “há uma culpa em relação às normas do Outro” e esta, a culpa, “se desloca quando as normas mudam”. Portanto, podemos pensar que a culpa tem íntima ligação com o Outro, com suas normas e ideais.

Culpa, dívida? Shuld, na língua do pai da psicanálise, a língua alemã. E as línguas germânicas permitem a uma única palavra fazer uma sobreposição de significados. Esta sobreposição encontra na formulação da metapsicologia freudiana sua parente, a angústia. Mas não qualquer angústia e sim um tipo especial, a produzida pelo supereu (superego).
Em “Declinações da Angústia”, Soler nos diz que esses afetos, a culpa e a angústia, mesmo sendo diferentes são irmãos, pois se avizinham, seguem-se e se combinam particularmente “nos sujeitos que são fortemente submetidos à voz do supereu”. E com este “não há perdão, não há circunstância atenuantes: não se escapa da prisão com o supereu!”. Ainda com a autora, a diferença entre os afetos superegoicos é que a culpa engana, não produz certezas, já a angústia produz. E as angústias do supereu são as mais ferrenhas e talvez, também, as mais “devastadoras” e “aberrantes”. Entretanto, a culpa, como a psicanálise nos ensina, é fundante da subjetividade e o seu fundamento não está ligado ao fato de gozar e sim ligado ao fato - Lacan em "Subversão do sujeito", segundo Colette Soler -  que o gozo é sempre perdido, parcial, limitado e insuficiente. Ligado "a falta do gozo", a falta.

E nós, neuróticos, privilegiamos "as formas de gozo que participam da privação: o gozo da falta de gozar".  Isso significa que nos é impossível evitar a culpa? Essa é nossa pena? A pena de existir ?
S.Paulo, maio de 2014 
Trailer do filme

domingo, 1 de junho de 2014

Confidências Muito Íntimas (Confidences Trop Intimes)

de Graça Nunes

"(…) É necessária apenas uma condição: que haja sintoma analítico e que haja sofrimento no sintoma, que ele se apresente como desprazer. Isto basta para implicar a transferência e colocar em marcha a experiência." (Miller, 1999, p.55) 
Confidences Trop Intimes ou Confidências Muito Íntimas de Patrice Leconte é uma original história de descobertas entre analista e analisando.   A dupla é formada por Anna e William. Ela (Sandrine Bonnaire) linda, em torno dos 35 anos vive um momento difícil no casamento. Ele (Fabrice Luchini) aparentemente leva uma vida presa às convenções e tradições, advogado tributário engravatado, solitário e recentemente terminou um relacionamento com Jeanne que o deixou por um personal trainer
Patrice Leconte, com leveza, mas sem tirar o tom reflexivo imposto pela situação de sofrimento que leva alguém a buscar um psicanalista nos mostra o encontro inusitado de Anna e William.  Como quase sempre nos filmes franceses,  os diálogos são intensos e bem elaborados.  Não há nenhuma  cena de sexo durante o filme todo, o erotismo é sutil, está nas palavras ditas, nas não ditas, olhares, respirações, lances e relances.... rápidos ou lentos como se o tempo fosse suspenso.  Em tudo assemelha-se à experiência analítica.
Anna tem uma sessão de análise agendada para aquele final de tarde de chuva  em Paris. As muitas camadas de casacos e cachecóis pesados fazem pensar em empacotada, ou revestida e protegida antes de propriamente vestida. Ao entrar no edifício de escritórios pede informações para a concierge e um pequeno mal entendido a leva ao escritório de William , advogado tributarista que fica no mesmo andar do consultório do psicanalista Dr Monnier (Michel Duchaissoy).
 A surpresa que mudará a vida de ambos bate a porta de William, um solitário. 
A primeira vista, o local lembra um ambiente analítico, luz fraca, sóbrio, um divã, um telefonema que o advogado recebe e de sua conversa pode-se depreender que fala do estado de um paciente moldam para a angustiada Anna a certeza de estar frente à um psicanalista. 
Ele, sem imaginar o engano, propõe um preenchimento de ficha com dados pessoais. Imediatamente, segue-se a fala de Anna dizendo que está com problemas conjugais, e que não tem tido contato sexual com o marido.  Além disso, diz, ''ele poderia fazer de outro modo, mas já não me toca não me beija, não acaricia (…) Sinto falta de como éramos juntos."
Anna está sem âncora, sem ''amarração'', já não se conhece mais...''temo que vou enlouquecer, não tenho com quem falar.'' 
Meu marido não permite que fume, não gosta que trabalhe, ao que o advogado analista replica: e do que mais ele te proíbe? Porque não procuras a liberdade? 

E ela subitamente interrompe a sessão dizendo ''não estou acostumada a falar de mim'' e sai correndo do escritório de William.

Ele a escuta sem julgamento e sem muito a dizer, originando o inicio de uma comunicação entre o par.  Os inconscientes se conectam como algo que se ''engancha '', e se permeia, como a onda na areia. Silêncios, palavras não ditas, respirações, lágrimas, interditos, espaços, pontos, e a dinâmica para a experiência analítica se estabelece. Se ela busca explicações e sentido para seu sofrimento, o silêncio do advogado é a mais perfeita resposta (não há sentido e tampouco explicações para o encontro com o Real),  mesmo que involuntária e causada pela perplexidade frente a surpresa de uma mulher lhe confidenciando segredos sexuais íntimos.
O casamento vai mal, seu marido já não tem relações sexuais com ela, e está obcecado com a ideia de vê-la ''fazendo amor'' com outro homem.  A primeira '' sessão'' termina com a segunda ''sessão'' sendo devidamente agendada por Anna que sugere o dia e hora enquanto pega o talão de cheques para pagar . Único ato falho do filme é que se Ana pagou com cheque, então não haveria razão para mais tarde quando ela falta à terceira sessão, William tentar descobrir o nome dela nas agendas do consultório do vizinho psicanalista Dr. Monnier.
Na segunda visita, ele tenta revelar que não é um analista, ela sai correndo como se adivinhasse o que ele iria dizer , mas não quisesse saber para não destruir o que havia começado.

A química entre os dois atores funciona muito bem, a chuva e a meia -luz dão o toque misteriosos e muito íntimo as confissões.
O filme parece feito em camadas têxteis e de cores, enquanto as roupas de Anna que começam a ser descascadas e diminuem de volume. A estação muda do inverno para a primavera, as camadas do filme também vão diminuindo e aos poucos deixam vislumbrar o que realmente está acontecendo.
Ao escutá-la atentamente, William sem saber se coloca na posição de analista.  Agora temos o analista, a analisanda, e o que era apenas signo, antes do encontro com o analista, é agora sintoma analítico no momento em que é formulada a questão ''o que e isso?, o que está acontecendo comigo?
É isso que Lacan quer dizer com a formulação “o analista completa o sintoma.'' - que corresponde ao discurso da histérica, de acordo com Antonio Quinet.
 Uma das intervenções (William sem saber encarna a douta ignorância com maestria) que ele faz - ''você não gostaria de uma mudança?'' - possibilita a Anna uma abertura para ao menos pensar na existência de outra vida.  Anna, enfraquecida e insegura, na infância levava uma vida instável com mãe desequilibrada acha no casamento com Marc um porto seguro.
Na terceira sessão, para tristeza e surpresa de William, Anna falta.  Ele tenta descobrir quem ela é revistando as agendas do Dr Monnier, sem resultados.
William, confuso com os acontecimentos, busca no Dr. Monnier uma resposta ou talvez uma autorização para poder continuar seu oficio de analista de Anna. Na conversa entre eles, o analista cita Baudelaire ...  ''divãs profundos como tumbas'' e conclui ''ela achou em você, William,  um ouvido disposto,  já que as pessoas perderam a arte de escutar, nem o garçon, nem o barbeiro querem escutar...'' . Pontua para o advogado que toda essa situação não diz respeito apenas aos problemas de Anna e sim aos problemas de ambos.  O psicanalista faz ainda uma analogia entre o ofício de tributarista e o de analista '' seu negócio não é diferente do meu.....o que declarar, o que ocultar....''. Cobra 120 euros de William.
Anna retorna ao escritório de William e diz que está se sentindo violada e suja por ter contado seus segredos a um advogado tributarista.. Muito angustiada, parte rapidamente só para a noite voltar e bater à porta dele para se desculpar e marcar nova sessão. Comparece, fala vagarosamente da infância, do professor de ballet (''primeira pessoa que realmente me olhou'') e executa alguns passos de ballet clássico para William que a olha encantado. Era disléxica, não conseguia ler, contar.
A certa altura,  Anna pega da estante um livro, ''The Beast in the Jungle'', mas não há no filme qualquer referência ao autor, Henry James. Interessante dizer que a trama do livro é sobre uma confidência íntima.  Anna devolve o livro no dia seguinte dizendo que a história é triste e que não gostou do final.
Ao ficar só William dança completamente ''solto'' ao som da música ''Midnight Hour'', numa cena muito bonita, e que mostra as mudanças que vem acontecendo em sua vida.  Enquanto dança tira o paletó, a gravata e é como se ele, assim como acontece com Anna, também ficasse mais leve. Ele havia sido questionado por Anna sobre estar sempre engravatado, e assim mais uma ''camada'' se dissolve.  Ele 'se livra' de um portrait de mau gosto que tinha no escritório enquanto Anna vai se tornando mais e mais leve e sexy sob a escuta e o olhar atento de William. A dança , a mudança na decoração do escritório já denunciam uma mudança psíquica.
A arte da escuta sem julgamento, os silêncios e ausências de respostas vão criando as condições para que alguns efeitos terapêuticos comuns no início do trabalho analítico aconteçam. O coração do filme se revela muito nítido a medida que se despe do peso do obscuro. Não é sobre a fidelidade conjugal , e sim,  sobre a intimidade, a profunda conexão entre duas pessoas que precisam urgentemente alargar os horizontes de suas vidas.  Anna proibida de fumar e dirigir pelo marido, porém incumbida pelo marido a ter sexo com outro homem e William no ''piloto automático'' ou autômaton, seguindo a mesma vida que seu pai levava, mesmo lugar, mesma profissão, tradição, fora da invenção.
A psicanálise diria que ambos necessitam da flechada de Eros, da tiquê, do toque do não sentido e da ética do bem dizer seu desejo.
Diz o diretor Leconte, ''Anna e William são um par reservado que se encontram e descobrem uma fome comum para algo além de suas vidas sufocantes.''
 No decorrer das sessões descobrimos que o marido de Anna está impotente há seis meses, desde que ela ao dar a marcha ré no carro o atingiu e ele teve suas duas pernas esmagadas entre o carro e a parede.  Ele está convencido de que assistir Anna ter relações sexuais com outro homem poderá fazê-lo voltar ao normal.  Para satisfazê-lo Anna diz a ele que está tendo um caso com seu analista.  A mentira excita Anna que confessa a William ter tido um orgasmo na banheira após mentir para Marc. Eventualmente, Marc cura-se da impotência quando aluga um quarto em frente ao escritório de William e instrui o mesmo, por telefone, a assistir pela janela do escritório ele e Anna fazendo amor. William, excluído como o terceiro, assiste a cena primal.  William que estava amando Anna fica tão perturbado com a cena que diz a ela na seguinte sessão: ''você pode falar tudo, mas eu não posso ouvir tudo.'' apesar de estar na posição de analista faz uma desanálise neste momento.

 Anna ao saber do telefonema de Marc para William, despede-se do advogado, e diz que é o último encontro deles.  ''Estou recuperando minha liberdade." Ao que William pergunta: e nós? nossas conversas?  Ela responde que já disseram tudo um para o outro.  Desejando à ela que seja feliz, ele a beija e ela parte andando lentamente pelo corredor do prédio, agora iluminado, mais vivo e colorido.
  Análise terminada com sucesso. Ou análises terminadas com sucesso.
 Antes de sair de Paris ela deixa uma mensagem dizendo que nunca se sentiu tão confortável com alguém e que graças a ele, ela não é mais uma garotinha.  O papel de Anna na análise de William foi o de se fazer desejável para ele e com isso ser o estopim para que ele deixasse de ser tão rígido, tão automático, tão insípido, tão sem desejo.
Segundo Adam Phillips, '' psicanálise é o que duas pessoas podem dizer uma para a outra se concordarem em não ter sexo.''  Para Anna e William, o lugar da fala e da escuta mútuas e o jogo onde os dois se revezam na cadeira/posição do analista, traz para a vida o potencial de cada um para curar suas próprias feridas, e ao se afastar do seguro e conhecido, achar um caminho e viver que pertence só à ele , ou só à ela.  Juntos? 
Talvez esse filme ( Confissões Muito Íntimas) ajude a entender que uma análise é uma situação fundamentalmente assimétrica, na qual alguém ali (que chamamos de analista) coloca-se disponível para mostrar àquele que, justo por ter-se enganado de porta (tal como a personagem Anna), pode então reconstruir os caminhos desse engano – engano que, não custa lembrar, um dia Freud chamou de “falsa conexão”. E como o analista faz isso?
 Ele o faz por meio de uma escuta que, se parece marcada por uma desconcertante falta de saber o que dizer – tal como o personagem William Faber, no filme –, não o é por outra razão que aquela que permite ao paciente encontrar o que ele próprio já sabia, sem saber que o sabia, sobre si mesmo.''  Ana Cecilia Carvalho no texto ''O Ofício do Psicanalista.''

William também deixa Paris e vai ao encontro de Anna que está dando aulas de Ballet em alguma cidadezinha na França.  Envia a ela um bilhete avisando que a está esperando e ela vai ao encontro dele.  Ao reencontrá-lo, ela pergunta: onde nós estamos? e deita-se imediatamente no divã.  William senta no divã junto a Anna e começam a conversar. Não se pode ouvir a conversa dos dois, a tomada da cena é feita de longe, como se fosse do teto e logo após eles desaparecem da cena, nos deixando somente com a imagem do consultório vazio, é como se tivessem ido para outro lugar quem sabe fazer amor, pois como nos diz Miller (...) é uma experiência (a Psicanálise) cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e frequentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência." 
Na cena final o novo escritório de William parece iluminado, aquecido, colorido, vazio de histórias e fantasmas, e com potencial para o novo, o acaso, a surpresa, a vida como ela é para os que suportam o encontro de si mesmo, o encontro com seu estranho mais íntimo e a partir disso, reinventar-se.
E como final de análise dos dois seria bom imaginar que encontraram o amor, que como nos diz Forbes : "Amor é encontrar um sentido para si mesmo, através do Outro."
Filme completo

Graça Nunes é Psicóloga, Psicanalista, frequenta aulas e sessões clínicas do IPLA (Instituto da Psicanálise Lacaniana) sob a direção de Jorge Forbes, em São Paulo.

domingo, 18 de maio de 2014

ELA : pedaço metade de mim ?

de Priscilla Cheli

Esse filme nos fala sobre a solidão humana, o amor e a tecnologia.
Sob a direção de Spike Jonze, que também dirigiu “Quero ser John Malkovich”, o filme HER nos conduz através de uma história repleta de sutilezas da imensidão humana, numa poética que nos traz um mundo tanto futurista, em aspectos tecnológicos, quanto antigo no que diz respeito a valorização de um certo sentimentalismo que aparece desde as cartas feitas a mão até ao estilo anos 30 do figurino.
Numa Los Angeles futurista, Theodore Twombly, brilhantemente interpretado por Joaquin Phoenix, trabalha num site que vende o serviço de criação de cartas. Através deste, um remetente qualquer pode enviar lindas cartas para agradar o seu destinatário. O nome do site: Handwrittenletters.com (cartas manuscritas na tradução livre).
Habilidoso com as palavras, Theodore faz uso das sutilezas humanas para elaborar suas cartas. Recentemente separado, sofre sua perda, dividindo seu tempo entre o trabalho, jogos de vídeo games, raros encontros com amigos e sexo virtual.
Uma mudança em sua rotina acontece quando ele compra um novo sistema operacional para instalar no seu computador pessoal, seu celular e outros dispositivos eletrônicos. Esse sistema, uma inteligência artificial, foi desenvolvida para conhecer ao máximo o ser humano, com o objetivo de “conhecer tudo sobre tudo”.
A inteligência artificial, ou OS como é chamada no filme, aos poucos passa a fazer parte da vida de Theodore. Numa precisão e velocidade só alcançada mesmo por uma máquina, o programa começa a organizar a vida de Theodore. Desde limpar sua caixa de e-mails, verificar seus contatos da agenda, lembra-lo de seus compromissos, etc. Pouco a pouco se aproxima de sua intimidade, e assim, Theodore se apaixona por Samantha, nome dado a voz do sistema operacional, interpretada pela doce e sensual voz de Scarlett Johanssan.
Samantha quer vasculhar cada canto da existência humana para saber o que seria existir. Desta forma, Theodore passa a mostrar-lhe o mundo através de seus olhos e de seu corpo, conduzindo-a a novos universos.
A solidão de Theodore começa a deixa-lo. Samantha o acompanha a todo momento. Desde o acordar pela manhã até o horário de dormir. Em contrapartida, ele apresenta à Samantha a sensação de estar no mar, na rua, no campo. Nesta relação, o fato de Samantha não ter um corpo para vivenciar estas experiências, não impede que haja uma paixão entre ambos.
Diante de um homem com a sensibilidade a flor da pele, escritor de cartas elaboradas para tocar o outro, nosso protagonista se encontra com aquilo que poderia traze-lo a tão almejada completude. O encontro com um outro que não lhe falta “nada”, a não ser um corpo. Uma voz que está sempre presente, pronta para lhe falar e, além disso, também ouvir. Até mesmo para agir quando lhe falta coragem.
Será que a tecnologia poderia encontrar um substituto para nossos próprios corpos errantes e sem rumo? Corpos à procura de uma estrada para seguir, num universo sem placas de sinalização. Samantha parece proporcionar conforto como um semelhante, ou seja, como qualquer outro à procura da resposta do “que é ser humano ?”.
Diante tudo isso, Theodore não escapa da ilusão de completude e se apaixona por Samantha, assumindo publicamente seu relacionamento amoroso por uma OS. Mas, Samantha o decepciona quando lhe conta que conversa com outros, além de estar apaixonada por mais pessoas. Depois disso o deixa, com a intensa dor de um termino, avisando-o que irá se retirar do seu mundo (de Theodore), junto com outros sistemas operacionais, pois encontrou um lugar no “espaço infinito entre as palavras” - já falando a partir dele. E finaliza a conversa explicando que esse “lugar não está no mundo físico. É onde todo o resto está e eu [Samantha] nem sabia que existia”. Que lugar seria este entre palavras?
E é com o desfecho do filme que ficamos a nos perguntar que diante da fala sobre o desamparo e a solidão nos tempos atuais, imaginariamente, se idealize de forma mais intensa, relações perfeitas com um outro que possa nos completar. Integralmente. Porém, o filme nos mostra que no amor, seja ele entre humanos ou entre humanos e máquinas, não existem garantias, mesmo que as máquinas sejam construídas para alcançá-las. Até porque, - se isto for possível e numa provocação à futurologia - por ser construídas / criadas por humanos, a constituição das OSs já traria em seu âmago a falta como elemento fundante?
Enfim, citemos o sábio poeta, Vinicius de Moraes, que já dizia, “que seja eterno enquanto dure”.
Trailer Oficial do Filme

Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.

domingo, 4 de maio de 2014

THE FALL (Dublê de Anjo) : A Fantasia como Janela da Realidade

de Christian Ingo Lenz Dunker

The Fall: A Queda
The Fall (2008), dirigido por Tarsem Singh e inspirado na peça de Yo Ho Ho de Valery Petrof é um exemplo contemporâneo de como o cinema consegue apresentar o problema da co-presença de perspectivas. “Dublê de Anjo”, segundo a versão nacional, é inteiramente inspirado naquilo que, sendo condição de possibilidade prática para a realização do cinema de aventura, não deveria ser percebido como fazendo parte dele, ou seja: a figura do dublê. Lembremos que a ideia de um ator que substitui outro, sendo o truque desapercebido ao público aparece de modo contundente em momentos estratégicos na história do cinema, como em Um Corpo que Cai (Vertigo) de Hitchcock ou Aconteceu naquela Noite (Blow up) de Antonioni. Filmado em mais de 18 países trata-se de uma produção da Googli Film. Googli é uma expressão neológica, quiçá alusiva a esta nova forma-saber chamada Google, representado no próprio filme como “a coisa” da qual Alexandra, a menina protagonista, tem medo e horror, o Googli-Googli. Alusão ao terrível e impossível encontro entre a criatura e seu criador.
A atriz mirim romena (Catinca Untaru) é levada a acreditar, durante a filmagem, que o ator principal (Lee Pace), que interpreta um paraplégico, é de fato paraplégico. Temos então expressa uma intenção realista extrema de fazer coincidir a representação dos personagens com a crença dos atores. Como ela diz: “A história é só um truque para você fazer um favor para mim”.
O enredo apresenta uma menina de sete anos que perdeu o pai e trabalha com a mãe em uma plantação de laranjas na Califórnia dos anos 1920. Depois de um acidente [Fall] Alexandra encontra com um ator dublê, acidentado e envolvido em profunda melancolia. Ele ama a mulher que pertence ao herói galã, de quem ele é o dublê em um filme de Faroeste nos tempos da aurora holiwoodiana. Alexandra e nosso dublê tem algo em comum: ambos perderam um objeto de amor e sofreram eles mesmos uma queda real, a menina está com o braço e ele com a perna quebrada. Estão às voltas tanto com a elaboração de um trauma quanto com o concomitante trabalho de luto.
Estão ambos em um hospital povoado por figuras mitológicas como a enfermeira Evelyn, que poderia substituir o amor perdido pelo dublê, o médico caridoso, que poderia ser o dublê do pai perdido por Alexandra, e o terrível minotauro mascarado, o homem do Raio X, o homem sem rosto destruidor de amores, fonte indutora da indeterminação entre familiar e estrangeiro (Unheimlich), de angústia (Angst) e de pavor (Schreck).
A relação entre Alexandra e o dublê se estreita porque estão ambos em convalescença por causa de uma queda (Fall): cair de amor, cair das folhas de outono, cair e quebrar o corpo, fall in love, tombeaux amroreause. É também por meio de um truque, de uma “manipulação” que o dublê faz a menina encontrar e trazer o remédio [pharmakon] com o qual ele tenta se matar, ou se curar.
Neste ponto de cruzamento de duas perspectivas a história se dobra em uma outra história. História que o dublê inventa e conta compartilhadamente para Alexandra e cujo adiamente do canclusão, qual Sherazade, a coloca a “fazer coisas em nome de”. Nesta história fantástica, dentro da história realística, a Princesa Evelyn, enfrenta o Bandido Negro (Black Bandit) e o Governador Odious em uma aventura maravilhosa por castelos, mares, desertos e jardins distantes. São as aventuras de cinco heróis que tentam libertar a princesa do jugo de um vilão. No trajeto há a inclusão de dois novos personagens Aborígene e a Alexandria. Alexandria: como não lembrar aqui do Farol que guiava os antigos navegadores egípcios e onde se localizava a grande biblioteca, depositária das histórias da antiguidade. A entrada de Alexandria, na história corresponde a uma nova reversão que nos dá agora uma história dentro de outra história que inclui o narratário a quem a história se destina. Uma vez incluída a pequena protagonista descobre que ela mesma pode ingerir em certas partes dos acontecimentos, reduzindo impasses e “curando” o seu antes solitário e soberano narrador. Temos então um estado de coisas que introduz uma quarta perspectiva, meio joyceana: de narratária ela passa a co-autora e co-narradora.
A saga épica termina em um romance que conclui-se com a união entre a Princesa Alexandria e o Bandido Mascarado. Mas há ainda um ponto de convergência entre as quatro perspectivas: da história vivida no hospital (entre médicos e enfermeiras), da história das quedas lembradas (perda do pai e da amante), da história das aventuras futuras (o romance imaginado) e da história da cura cruzada operada entre o dublê e a menina, que é também a perspectiva da realização do filme de Faroeste que vemos projetado ao final (a indeterminação narrativa). A passagem entre cada uma destas perspectivas está marcada por um ponto de angústia, que se liga a procedimentos formais específicos da linguagem fílmica: repetição (Alexandra = Alexandria), deformação (o Homem do Raio X = Herói Mascarado) e subtração (a morte real dos ajudantes = morte possível do dublê) . Este ponto irrompe violando a realidade diegética de cada uma das perspectivas ou dos “mundos” que o filme cria e interpenetra. Não há metalinguagem porque somos todos dublês e todos caídos. Não há metalinguagem porque a fantasia fracassa e é nestes fracassos que ela se torna tão mais útil do que em seus sucessos.
Há, portanto, e ainda uma quinta realidade em jogo. A do filme real que está sendo produzido, no qual nosso protagonista, dublê e herói. Uma história que é a um tempo lírica, dramática, épica e trágica. Se estamos aqui também na história das origens do cinema, uma quinta “realidade” que só pode ser unida ou cruzada (Verschränckung) a partir de uma posição que permanece estruturalmente recalcada e que não é a apenas a dublê, mas a de nós mesmos participando desta história quando vamos ao cinema assistir “Dublê de Anjo”.
Temos então cinco planos ou perspectivas nas quais se desenrola a ação do filme. O filme é um quebra-cabeças narrativo, pois cada um destes cinco planos possui índices que representam um novo sujeito para cada uma das quatro perspectivas restantes. Por exemplo, na perspectiva da aventura maravilhosa, nós temos cinco personagens, cada qual referido a uma dimensão: (1) o Indiano, referência à narrativa maravilhosa e seu cenário oriental, é o único personagem que representa o próprio plano ao qual ele pertence, (2) o ex- Escravo, referência a narrativa do faroeste e ao gênero do filme de aventura, (3) o Perito em Explosivos, referência à narrativa de produção fílmica e a trucagem, na qual se inclui o dublê (4) Charles Darwin, referência à narrativa médico-hospitalar e ao naturalismo expressivo (5) o Bandido Mascarado, o personagem que representa a história “real” exterior a este parênteses representado pelo hospital, ele tem que ser mascarado porque deve ocultar sua identidade de tal forma que a ocultação seja apresentada (máscara).

 A Fantasia como Perspectiva
Talvez o cinema possa vir em nosso auxílio para nos ajudar a entender o problema psicanalítico representado pela fantasia, ou seja, como é possível o funcionamento articulado de diferentes perspectivas no interior de uma mesma experiência?
Se Lacan afirmava que a fantasia se estrutura como uma tela, podemos desdobrar a tese para a ideia de que se apreende melhor a estrutura da fantasia como um filme. O enquadre da fantasia se altera um pouco quando pensamos a função da tela, de pintura ou de projeção, como objeto e suporte de nossa ficção, ou como ponto de articulação entre a verdade e o Real. Examinando alguns efeitos ópticos (como a paralaxe e a câmara clara) e algumas teses psicanalíticas, pode-se mostrar como a sustentação da construção da realidade depende de certas deformações, repetições e subtrações de objetos na tela. Filmes da aurora do cinema (Méliès, Buñuel) bem como filmes contemporâneos (Matrix, Mais Estranho que a Ficção, Closer), se utilizam dessa homologia entre o conceito e a prática visual da perspectiva para produzir efeitos construtivos e desconstrutivos sobre a fantasia. Isso acontece porque a própria fantasia se “estrutura como uma janela”. E isso já havia sido percebido na história das artes plásticas, principalmente nos “mestres ópticos”, ou seja, naqueles pintores, como Van Eick, Holbein e Lotto que incorporavam, dentro de suas próprias telas, índices e rastros de sua própria construção como ilusão. Até a invenção da fotografia, em 1840, boa parte da pintura dependia da projeção de imagens reais e eventualmente de sua deformação calculada. É com a chegada desta reversão da projeção, que é a fotografia, que impressionismo, expressionismo e as vanguardas em geral, reformularam a pintura como uma arte da experiência do olhar e não mais como representação pictográfica do mundo.
O conceito de fantasia em psicanálise possui uma extensão muito grande de conotações. Freud falava da fantasia para designar o processo de produção de imagens, tanto por meio da fabricação de um objeto pictórico (Einbildung) quanto por meio de uma animação de imagens (Phantasieren). As fantasias exteriorizadas em objetos colocam um problema, pois elas são ao mesmo tempo parte do mundo real e expressão de um mundo imaginado. Seria falso, portanto, pensar que a imaginação cria um mundo que se opõe bipolarmente ao mundo real. O ideal faz parte do real. Entram nessa acepção as noções de ilusão e de realidade psíquica. Esta função da fantasia parece ser importante para estabilizar a experiência do sujeito, introduzindo sentido e significação ali onde a realidade oferece obstáculos para ser representada, figurada ou mesmo imaginada. A característica marcante desta acepção de fantasia é que ela aparece como uma espécie de realidade subjetiva complementar, ou de síntese de representações, necessária para resolver uma contradição real ou uma irrepresentabilidade da Coisa. Temos aqui o circuito que liga o filme, como objeto da indústria cultural, produzido e vendido como peça de entretenimento, e o filme como apoio para nossa faculdade de negação, capaz de nos tirar de nós mesmos e imaginar “outros mundos”.
A segunda acepção de fantasia a entende como uma espécie de mediador psíquico da relação com o mundo. A fantasia se “infiltra” em acontecimentos reais, sendo expressa, por deformações de memória (lembranças encobridoras), por deformações de percepção (alucinações, sonhos) e deformações da própria experiência corporal (protofantasias). Neste sentido se pode falar em fantasias de sedução, da cena primária ou da castração, das fantasias bissexuais da histeria, ou das fantasias fálicas das crianças. Aqui a fantasia funciona como um léxico capaz de nomear as variedades de exigência pulsional, de relação ao corpo e de interpretação da diferença sexual. Neste caso uma fantasia pode ser pensada como uma “estrutura de ficção” no interior da qual relações téticas e funcional veritativas podem ser construídas, derrogadas ou postas à “prova de realidade”. Neste caso a fantasia se posiciona entre o trauma e o luto, como dispositivos mais simples, que ela acaba por articular para que o sujeito possa tornar compatível lei e desejo, princípio de prazer e princípio de realidade. Temos aqui o efeito que o cinema é capaz de extrair e produzir afetos, lembranças e pequenos fragmentos “reais” de sentido e contra-sentido.
Uma terceira maneira de pensar as fantasias é dividindo-as em fantasias pré-conscientes (sonhos diurnos), conscientes (devaneios) ou inconscientes (recalcadas). Neste caso a fantasia possui uma estrutura similar ao sintoma, envolvendo deslocamento, condensação e a combinação entre processos primários e secundários na realização do desejo. Lacan pensou desta maneira ao valorizar a noção de fantasia fundamental, como polo de convergência das fantasias a uma espécie de frase fundamental, monótona e repetitiva na vida pulsional do sujeito, ao modo de uma “síncope do significante”. Talvez esta seja a fórmula mágica para a criação de universos paralelos, desdobramento de mundos e transformações entre planos de ação, que caracterizam a construção da “realidade maravilhosa” no filme de Tarsem Singh.
Uma quarta maneira de agrupar a fantasia é considerar que ela é uma espécie de gramática fundamental do desejo pela qual ela se expressa preferencialmente em relações de identificação, projeção ou introjeção que organizam a relação do sujeito ao objeto ou a sua falta. Aqui a fantasia comanda as relações de crença, convicção, recuo ou exclusão em relação à realidade que se lhe apresenta. Lacan pensou esta variante da fantasia ao falar na afânise do sujeito, quando descreve sua posição intervalar na cadeira significante ou quando aponta para suas relações alternadas de inclusão e exclusão no campo do Outro. Neste caso a fantasia estabelece ordem e continuidade na realidade, ao modo de um encobrimento do Real. Ora, este re-encobrimento do Real, ocorre por meio de operações de duplicação imaginário do eu do sujeito, mas também por esta espécie de confusão calculada por meio da qual, no filme, Alexandria conta e é contada pela história, cura e é curada pelo dublê, lembra e é lembrada em seu próprio luto.
Finalmente, uma quinta forma de considerar a fantasia é pensá-la por sua relação com a angústia, e, portanto, como um dispositivo defensivo. Falamos aqui de processos como o retorno à própria pessoa (narcisismo), inversão da pulsão ao contrário (masoquismo-sadismo), negação ou sublimação. Este parece ser um caso composto por elementos das acepções anteriores, concentrando sobre si as propriedades de unidade, coerência e consistência da realidade.
Podemos dizer que em cada um dos casos acima tentamos definir um sentido de fantasia que acaba compreendendo um modo de articulação da realidade: como oposição ao ideal, como condição de possibilidade subjetiva de apreensão libidinal de objetos, como hierarquia ou englobamento de sentidos, como gramática de inclusão, exclusão ou implicação do sujeito e finalmente como unidade da experiência. Em cada caso a fantasia ao mesmo tempo organiza certo regime de realidade e localiza um furo, uma inconsistência, um ex-sistência ou uma contradição no interior desta realidade, que é o que Lacan chamou e Real. Ora, manejar clínica e conceitualmente tal variedade de entendimentos sobre a fantasia é uma dificuldade para o clínico e para o estudioso da psicanálise. Ainda mais porque as acepções aqui elencadas se entrecruzam e se combinam de maneira não excludente.
Uma tentativa de síntese pode ser tentada a partir da tese proposta por Lacan de que a fantasia funciona como uma janela pela qual estruturamos a realidade. Mas, podemos acrescentar com a linguagem fílmica, a fantasia também é o lugar no qual a realidade fracassa, dando ensejo a aparição temporal do Real. Esta tese pode adquirir valor integrativo, em relação à diversidade de acepções antes sugeridas, se entendemos que o que está em jogo na noção de “janela” é, no fundo, o conceito mesmo de perspectiva. Não é apenas que a fantasia crie perspectivas, ou “pontos de vista” sobre o mundo, mas a fantasia é esta perspectiva ela mesma. Se isso é verdade cada acepção diferencial de fantasia é no fundo um tipo de perspectiva. E estas perspectivas se articulam ao modo de superfícies mais ou menos compostas.

 O Cruzamento de Perspectivas
A perspectiva é um método pelo qual se pode representar objetos tridimensionais em uma superfície bidimensional. Toma-se um objeto e se o projeta a partir de um ponto (ponto de fuga), que se encontra sobre o eixo ótico. Todas as linhas de projeção da pintura convergem para este ponto de fuga. Uma mesma projeção pode corresponder a diversos objetos diferentes.
A experiência de Bruneleschi (1377-1446) mostra como a perspectiva depende de que se assuma um ponto de vista (uma janela), da qual será possível estabelecer projeções regulares dos objetos tridimensionais em superfícies bidimensionais. Todas as linhas de fuga (perpendiculares) encontram-se no ponto de vista. Mas o quadro não pode prescrever o lugar no qual o olho do espectador deve se instalar. O lugar de onde devemos olhar o quadro não é mostrado no próprio quadro.
O quadro, como disse Albert Dürer, é uma janela atravessada pelo olhar. Ou seja, o lugar do pintor deve permanecer como um lugar invisível. Há um equivalente disso no cinema. O espectador não pode ser situado no próprio filme, pois o próprio efeito fílmico depende deste ocultamento. Há alguns truques para ultrapassar este ponto. No filme de Woody Allen (Whatever Works, 2009), um grupo de aposentados conversa sobre uma história, quando Woody Allen dirige-se para o espectador e faz uma exposição sobre a ilusão ao qual ele está submetido. Outra forma de “devolver” a posição do olhar ao espectador é a anamorfose. Em Os Embaixadores (Holbein, 1502) é a caveira em anamorfose quem olha para o espectador. Mas ela só pode ser reconhecida como caveira por uma mudança de ponto de vista (lateral e não mais frontal), antes disso ela é percebida como uma mancha. Desta forma, como argumentou Lacan, o quadro é uma espécie de “descanso” para o olhar, e uma “armadilha” para o olho.
A engenhosidade do filme de Tarsem Singh é que ele desenvolve estas cinco perspectivas retomando as cinco estratégias históricas de compor “perspectivas ópticas”.
Há, primeiro, a perspectiva hierárquica (medieval) pela qual a perspectiva é uma construção simbólica que instrumentaliza a apreensão do espaço. A perspectiva constrói uma narrativa: o que é mais importante é representado como maior, e assim por diante. Como a criança, observada por Vigotsky, que ao representar o fogão a lenha desenha o fósforo gigante dada a sua importância para o funcionamento do dispositivo. Esta perspectiva é discutida por Diderot em sua Carta aos Cegos para Uso dos que Vêem e corresponde ao tema clássico da inclusão do pintor no quadro por meio de sua própria imagem ali pintada, como Signorelli no Afresco da Catedral de Orvietto, discutido por Freud em sua Psicopatologia da Vida Cotidiana. Em vez do nome a imagem do pintor. Essa é a perspectiva usada para filmar as figuras gigantes e ameaçadoras no hospital, criando um mundo de “realismo fantástico” a partir de operações de aumento e diminuição de proporção entre elementos. O que lhe é característico formalmente são as operações de duplicação ou de dualização da realidade.
A segunda perspectiva é chamada também de linear (naturalis). Aqui o olhar pode ser incluído no quadro a partir do trompe l´oeil, ou seja, pequenas alterações de perspectiva que criam proporções não consoantes com o “espaço real”. Esse é o recurso pelo qual o pintor pode ser incluir no quadro por meio do espelho que reflete sua imagem, como em O Casal Arnolfini, de Jean Van Eick, ou em As Meninas de Velásquez. Aqui a realidade diegética é formada pelo campo da representação, tal como vemos nos processos de lembrança e rememoração, que Alexandria passa ao longo do filme ao recuperar as cenas traumáticas nas quais o pai é retirado de casa e morto por bandidos, na frente de seus olhos. Mas convém lembrar que a “lembrança naturalista” é antecedida pela “deformação imaginada”.
       A terceira perspectiva é a perspectiva geométrica (artificialis). Ela supõe um ponto de vista único no qual o espectador deve se colocar para ver o quadro. Este é o ponto de vista cuja projeção no quadro é o ponto de fuga. “Para a qualidade da imagem ser mais fiel, e representar melhor um objeto, eles não devem se assemelhar a ele”. (Descartes, R. – Dióptrica). Aqui encontramos a demarcação da visão-espaço, mas não do olhar (que depende da luz). A imagem é um mediador entre o sujeito e o objeto definindo um campo da visão a partir de um plano geometral (Imaginário-Simbólico). Agora não é caricatura do pintor nem a posição do olhar da criança que lembra, mas o olhar incluído no quadro por meio da anamorfose, como Holbein em Os Embaixadores, ou nos paradoxos visuais de Escher, ou seja, deformações cônicas ou piramidais que alteram a projeção da imagem segundo regras constantes e que cruzam perspectivas distintas sob o mesmo plano de projeção. Encontramos esta perspectiva na maneira como são filmadas as aventuras dos cinco heróis em seu “mundo mágico”. Esta é a perspectiva do dublê, o contador (manipulador) de histórias.
A quarta perspectiva é chamada também de atmosférica (luz e cor). Aqui se trata de partir de um ponto luminoso, de brilho ou sombra incoerente, de cor incongruente, de mancha, pelo qual o olhar pode se incluir no quadro como objeto indeterminado. Como disse Leonardo Da Vincci: “A pintura compreende duas partes principais: a primeira é a forma, isto é, a linha que define as formas dos corpos e seus detalhes; a segunda é a cor, encerrada dentro dos limites da primeira”. O pintor se inscreve no quadro por meio de um ponto luminoso, um ponto de cor, brilho ou mancha que representa o olhar como objeto. Há um ponto que precisa ser barrado para que a visão se produza, é a tela (écran) ou anteparo. Foi o que Merleau Ponty discutiu em Visível e Invisível a partir da experiência de ver e ser visto e a partir do qual ele introduz a noção de carne. A tela surge aqui como mediador entre o sujeito e o ponto do olhar (luminoso) formando todo um campo do olhar. Aqui está o ponto no qual o dublê deve se indiferenciar do ator que ele substitui. É o ponto no qual o filme é representado como a luz que se projeta, ofuscando o próprio olhar. No filme de Singh este ponto pode ser representado pelo nome que dá unidade ao semblante do filme: a queda. A queda do pai, na cena em que será morto; a queda do dublê que o leva ao hospital, a queda ela tem pelo dublê, seu herói redivivo e finalmente a queda mais importante, a única que de fato exige este tipo de perspectiva, ou seja, a do próprio espectador que se envolve com o filme. Por isso esta perspectiva forma a transferência. Nesta perspectiva temos a aparição dos fenômenos de indeterminação, ou de inclusão-exlusiva, da narratária no campo do narrador, do dublê no campo do filme, da cura contada na cura realizada.
Em quinto e último lugar, encontramos neste filme a perspectiva do plano projetivo. Ele é produzido pela combinação de perspectivas anteriores e ao final pela reversão e indeterminação entre o sujeito vendo o quadro e o sujeito sendo visto vendo o quadro. As Meninas, de Velásquez (1656), representa o instante de recuo do pintor em relação a seu ato, por meio do qual ele olha para o modelo. Ele está na nossa posição, pela qual podemos nos reconhecer na imagem do casal real presente no espelho frontal. Somos os “soberanos do quadro” ao mesmo tempo em que “escravos de sua ilusão óptica” estamos servindo ao instrumento do artista. Exatamente como na fantasia, senhor e escravo são ambos seus vassalos.
O pintor, como dublê, se inscreve no quadro por meio do auto-retrato, localizado entre o ponto de fuga e o ponto infinito. Ele envolve (1) um plano sujeito como janela que enquadra a realidade, (2) um plano quadro como fantasia que recobre a janela ou modo de ilusão ou “palco do mundo”. No plano- janela o sujeito é o objeto (a   ), no plano-quadro o sujeito encontra sua fantasia (  a). Há ainda (3) o sujeito que se apoia entre o quadro-fantasia a janela-subjetiva, um sujeito que apreende uma diferença entre dois mundos, como divisão ou desaparecimento e (4) para se apoiar entre a janela e o quadro, e para que o truque produza uma eficácia real, é preciso produzir uma equivalência entre o sujeito e o que Lacan chama de objeto a.
A junção destas quatro perspectivas em um quinto ponto de vista que permitiria representar a realidade mais além das relações de interioridade e exterioridade. Ela poderia ser descrita como um conjunto composto por duas bandas de Moebius, (com torções em sentido contrário), um círculo de interpenetração (ou de implicação subjetiva), um círculo de revolução (ou de indeterminação) e um objeto, (ou objeto a). O conjunto forma o que os topólogos chamam de garrafa de Klein.
                                    Trailer Oficial

Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).