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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

JULIETA, de Almodóvar - Silêncio!

de Olivan Liger

Um tecido vermelho pulsante, volátil que enche a tela, suave em seu movimento, que sugere a intimidade do feminino desejante, a sensualidade e as entranhas da dor marcada pelo sangue, pela paixão e pelos afetos. Assim começa o filme.
Julieta é uma história de dor crônica, a dor que se põe como entrave à existência, dor de uma ausência sempre presente...  uma história sustentada pela ausência de trilha sonora que induz o telespectador a entrar em contato com o vazio de Julieta, com a presença constante da ausência de Antía (Blanca Parés), sua filha. Um silêncio incapaz de passar despercebido, que vai mostrando ao longo do filme, uma sucessão de objetos e elementos que se fazem captar num segundo plano e na expressão corporal dos personagens o que já é conhecido e pensado. Cores como vermelho, azul e preto que aparecem em distintos objetos constroem um outro tipo de comunicação sem palavras.
Uma trama de personagens que interagem de forma complexa criando vínculos que além de necessários para a sobrevivência física e emocional, tem o governo soberano do desejo, ainda que este apareça sempre em falta.
Julieta (Adriana Ugarte e Emma Suárez) carrega o peso de suas perdas, culpas e luto durante todo o filme. A culpa pela falta de atenção dada à um estranho em um vagão de trem, que se suicida durante uma viagem; a perda inesperada de Xoan (Daniel Grao), o marido e a partida voluntária e não avisada da filha. Segundo Nasio: “Se a pessoa do amado não está mais aqui, então falta a excitação que escandia o ritmo do meu desejo”. Vive uma vida sem entusiasmo, cheia de lembranças da filha e esperanças do seu retorno, uma vida que se consome entre afastar-se e aproximar-se da dor, estagnando-lhe a vida e estabelecendo seu gozo.
A dor pela ausência de Antía valida e ressignifica todas as dores e perdas anteriores. 
Para Freud, “O luto leva o eu a renunciar o objeto (desaparecido), declarando o objeto morto”, entretanto a falta de Antía é permanentemente sustentada pela incerteza de sua volta, um luto que não pode avançar na sua elaboração pela esperança que se faz de um possível retorno.
A devastação de Julieta aparece de forma ritualistica ao comprar bolos de aniversário para a filha, ano após ano e atirá-los no lixo. A cada ano, a esperança do retorno e a fúria pela expectativa contrariada dão significado à cena do bolo de aniversário e refaz o ciclo de dor do personagem central. A dor de Julieta é uma condição de vida, é a forma que experimenta o mundo.
No começo do filme, Julieta escolhe o livro “O amor” de Marguerite Duras para levar na sua mudança para outro país. As mudanças e deslocamentos no espaço físico são constantes no filme como tentativas de se livrar de sua dor, a dor do amor que leva consigo simbolizada no livro de Duras.
O encontro com Bea (Michelle Jenner), amiga de infância de Antía, faz emergir aquilo que deveria estar esquecido, a partida de Antía, provocando uma decisão radical de permanecer em Madrid. Convictamente afirma, na esperança de que o vento leve suas palavras até a filha: -Aqui estoy e aqui estaré!
Após decidir permanecer em Madrid, na esperança de um reencontro, Julieta tenta estabelecer um diálogo imaginário com a filha, escrevendo-lhe uma carta na qual vai desvelando toda a sua história e consequentemente, a de Antía, tentando dar continuidade ao seu trabalho de luto que nunca se concluiu.
Curiosamente, o título inicial para esse filme era “Silêncio”. Nada mais justo para uma trama onde os personagens são encarcerados pelo silêncio, a ele são submetidos, nada perguntam e pouco dizem. O silêncio que se faz na escrita da carta para a filha contando-lhe sua vida, o que só pode ser dito fazendo letra.
“Cada silêncio é um indicador  em negativo da existência de uma palavra possível” cita Anna Aromi. O silêncio e a espera são o gozo de Julieta. Escrever para Antía é a forma de aproximação do seu gozo.  Para Julieta, falar da perda é entrar em contato com a dor, com a morte em vida, é perder algo que a constitui, assim o silêncio é a manutenção do gozo, uma vez que “A palavra mata a coisa”.
O primeiro contato com Xoan acontece na viagem de trem, numa experiência de dor, culpa e incerteza frente ao testemunho de um suicídio. A partir dai, Julieta e Xoan já estarão conectados pela concepção de Antía.
Após conhecer Xoan e ameaçada de perder seu emprego, Julieta decide buscá-lo para falar de sua gravidêz. Chega no dia da morte de Ana, a esposa em coma. Para algo nascer, é preciso que algo  morra... e é confrontada por um feminino amargo, de caráter territorial, invejoso e hiperrealista de Marian (Rossy de Palma). Um feminino que faz uma oposição ao feminino de Julieta. Uma das características dos filmes de Almodóvar é justamente fazer emergir os aspectos mais profundos da alma feminina.
Após o nascimento de Antía, Julieta se aproxima dos pais e se depara com a enfermidade de Sara (Susi Sánchez), sua mãe, enclausurada no quarto acometida de Alzheimer, tráz no olhar a tristeza, o desamor, o esquecimento e a melancolia. O pai, envolvido com uma serviçal vive sua vida independente e afastado emocionalmente da esposa. Julieta passa a funcionar como um ego auxiliar para a mãe durante os dias que permanece com os pais. A mãe vive antecipadamente o que Julieta viverá no futuro, a dor do abandono traduzida no sintoma do esquecimento do Alzheimer. O silêncio devastador e a depressão será o sintoma de Julieta para sua dor.
Uma tempestade estar por vir... é anunciada e conhecida...se faz à mostra pela ravia de Marian ao ser despedida e questionada por Julieta e se concretiza na morte de Xoan, de forma inesperada, em alto mar. Julieta e Antía são inundadas pela tristeza e pela culpa.
Um relógio quebrado junto ao corpo de Xoan nos sugere a suspensão da tempo cronológico. A partir da sua morte, o tempo pára... vai e volta numa tentativa de dar conta de uma dor sem fim, instalando o gozo do silêncio e da expectativa, mesclando passado e presente num só registro que parece excluir o futuro, a cessação da dor e do conflito psíquico.
- Por qué Papá salió a pescar si había estallado la tormenta? - indaga Antía ao tomar conhecimento da morte do pai. De que tormenta fala Antía? Do que queria o pai livrar-se buscando a morte no mar?
E assim, quando completa dezoito anos, diante da partida da amiga Bea, Antía perde o sentido da vida. Ao lado da mãe, está em contato direto com a dor que assola a ambas e a morte que não conseguem superar. Parte para um retiro espiritual em busca do sentido perdido e não mais retorna.
Entre idas e vindas, a história de Julieta vai se construindo e tem como eixo central as perdas, especialmente a perda da Antía que a mantém num estado de suspensão, do qual não pode voltar  e nem tampouco seguir adiante, a ausência da filha preenche sua vida e a destrói por completo.
Antía não quer contato com Julieta, mas lhe impõe o conhecimento de que está presente na sua ausência através dos envelopes vazios que manda para a mãe, como se quisesse apenas pontuar que ainda existe, que ainda está viva.
E Ava? Um personagem secundário, mas não menos importante. Funciona como um receptáculo de afetos, os quais canaliza em suas esculturas. Tem em Xoan, com quem mantém encontros esporádicos, a inspiração para sua arte, esculturas vermelhas por fora e de sólido metal por dentro.  É à Ava que Julieta conta em primeira mão sobre sua gravidêz. Sempre presente em momentos importantes, acompanha Julieta para derramar as cinzas de Xoan sobre o mar. É também quem preenche as lacunas de informações para Julieta sobre a profunda mágoa de Antía acerca do conflito do casal que precedeu a morte do pai. Ava é um catalizador, um elo de ligação entre Xoan, Julieta e Antía. Mais uma faceta feminina que Almodóvar tráz em cena, um feminino dócil, aparentemente frágil, porém forte como o metal interno de suas esculturas.
Mas o que separa pode também unir. Diante da perda do filho mais velho, Antía recorre à Julieta que vai ao seu encontro. A morte do pai e marido as separou e ficou a cargo da morte de um filho e neto uní-las.
Poderíamos pensar num final feliz, mas a vida não é felicidade... uma mescla de momentos de prazer, os quais chamamos felicidade, contrastado com momentos de angústia... assim vivemos, assim ratificamos nosso gozo. O gozo de Julieta é ratificado quando diz à Lorenzo (Dario Grandinetti), a caminho do encontro com a filha: -”No voy a preguntarle nada”. - segue o ciclo do silêncio, daquilo que não tem nome, que não pode ser compreendido e nem representado, do Real da vida que opera fora da nossa consciência e desejo e que pode levar-nos a construir ou destruir nossas vidas.

Assim, eu assisti “Julieta”, saí da sala de exibição em silêncio e com muitas perguntas sem respostas, embalado pela voz de Isabel Vargas na canção “Si no te vas”, que permeia a última cena.
Referências bibliográficas:
 - Aromi, A. Palabra y silêncio em Psicoanálisis. 1ª CONVERSACION DE LA ELP. NOVIEMBRE 2000. BARCELONA. "ENTRE PALABRA Y SILENCIO"
 - Freud, S. Luto e melancolia, in Edições Standarts das obras completas de Sigmund Freud, vol. 12. São Paulo: Cia. Das Letras, 2010
 - Nasio, J.-D.  A dor de amar. Rio de Janeiro: Zahar, 2005

Olivan Liger é psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ. 

Trailer



domingo, 30 de novembro de 2014

ÁLBUM DE FAMÍLIA (August: Osage County)

de Olivan Liger

O filme do diretor John Wells teve duas indicações ao Oscar, Meryl Streep como melhor atriz e Julia Roberts como melhor atriz coadjuvante.
O cenário são as pradarias do condado de Osage em Oklahoma, Estados Unidos. Superfícies planas e secas. Agosto: condado de Osage é o título do filme. Um filme duro, seco e quente como um verão nas pradarias de Oklahoma, onde se confirma a natureza destrutiva do ser humano e através dessa natureza destrutiva e auto-destrutiva, histórias se constroem, vínculos se perpetuam.

Como o título em português, o filme vai nos revelando os traços, a história construída e segredos da família, como se folheássemos um álbum onde cada foto nos revela a história da construção dos vínculos que (des)unem os personagens desse filme.
-”A vida é muito longa” (T. S. Eliot) é a frase que Beverly, o patriarca, fala no início do filme e começa a narrar a sua história. Pouco a pouco, vamos entendendo que a vida é muito longa, quando se abre mão do desejo. Bev é casado com Violet, um casamento que segundo Bev - “Foi nosso acordo; um parágrafo do contrato matrimonial. O fato é que minha esposa toma pílulas e eu bebo”, ou um casamento de sintomas mediado pela predominância da escolha narcísica de objeto em ambos. Ainda na narrativa inicial, Bev fala para a empregada, Johnna, que está contratando para tomar conta de Violet: - “Os livros como meu último refúgio”. Abrir mão do desejo implica na impossibilidade do investimento libidinal nos objetos e confronto com o indizível do real, a falta. A bebida e escrever poesias são aquilo que condensou tudo o que restou do desejo e encobriu a falta em Bev.
Violet ingere todo tipo de pílulas e no decorrer do filme, fica claro a sua dependência química instalada há anos. Tem um câncer de boca que curiosamente nos sugere a ligação com o oral, com a fala e a palavra. Fala para a filha mais nova Ivy: - “Minha boca está ardendo para caramba, minha língua está em chamas”- significantes que traduzem o seu veneno e o quanto vai tentando destruir cada um a sua volta, de forma ferina e cruel, como um dragão que cospe fogo e destrói tudo ao seu redor, mas ao destruir o outro, se destrói.

O casal tem três filhas, a mais nova Ivy, a filha do meio Karen e a mais velha Bárbara. Cada uma das filhas usou de defesas próprias contra a disfuncionalidade da própria família onde encontramos um homem/pai depressivo, alcoólatra e desistente da vida e uma mulher fálica, controladora, viciada em medicamentos e dominada pela pulsão de morte, evidenciada na sua agressividade contra si mesmo e principalmente contra todos à sua volta. Ivy é a filha que vive e cuida dos pais, na tentativa de ser reconhecida e amada, de deixar de ser o lixo da mãe. Karen, uma mulher madura porém regredida que se comporta como uma adolescente todo o tempo e que encontra no perverso Steve, 10 anos mais velho, a idealização do homem perfeito que casará e passará a lua-de-mel em Belize, seu único objetivo de vida. - “Eu vivo o agora”, este é o mote de Karen, como uma adolescente perdida e apaixonada. Bárbara, segundo a descrição do marido que a traiu com uma mulher bem mais jovem, razão de estar separada desde então: - “Você é tão moralista, você é atenciosa, mas não é acessível. Você é ardente, mas é dura”, é a filha que foi favorita do pai e que “bate de frente” com a mãe. O significante “bate de frente” faz jus ao ataque à mãe durante o jantar do funeral de Bev, o qual planeja e cumpre o suicídio. Bárbara tem uma filha adolescente que fuma maconha e que reproduz na sua relação com a mãe, a relação de Barb com Violet.

Outros personagens rodeiam a família nuclear do filme, a irmã de Violet, Mattie Fae, seu marido Charlie e o filho Little Charlie. Esta família imita a família nuclear. Uma mulher fálica que inferioriza o filho todo o tempo, tratando o como um deficiente. Little Charlie tem algo em comum com Ivy, tenta todo o tempo ser perfeito para responder a demanda da mãe e assim ser reconhecido, se identifica com o pai afetivo, mas sem força de lei.
Assim, Violet, Barb e Mattie Fae são desenhadas como mulheres duras e fálicas.
O jantar do funeral é um dos pontos cruciais do filme. Violet, sob efeito de medicação, faz todo tipo de ataque violento a cada um dos membros da família. Fala da infância difícil dela e do marido: - “Este é o nosso problema. Tivemos uma vida difícil demais”. Sugere que o mundo lhe deve algo, lhe deve honras pela história difícil, lhe deve reconhecimento, lhe deve autoridade. Escancara-se nesse momento a luta pelo poder, pelo falo entre ela e a filha Barb. Não é uma mãe, exceto pela condição biológica, é uma competidora a quem a filha se identificou. Barb a ataca fisicamente para tomar-lhe as pílulas e diz - “Eu é que mando agora”. Violet nos reporta ao mito de Chronos, que nunca deixa seus filhos assumir o trono. Quando estão prontos para assumir o trono do rei, este os devora para nunca permitir a circulação do falo.

Numa conversa entre irmãs, vai se desvendando segredos como a histerectomia de Ivy devido a um câncer e sua relação afetiva com Little Charlie. Ivy é o bode expiatório da família, o lado frágil que não conseguiu deixar o ninho, o sintoma familiar, e sonha abandonar tudo aquilo em troca de uma vida de amor com Little Charlie em Nova York. Ninguém quer a responsabilidade de cuidar da mãe tirana e cruel e nessa conversa, se referindo ao vínculo com as irmãs, Ivy diz: - “Não sinto que seja uma ligação muito forte.” Um engano do sentir... uma verdade se idealizarmos relações amorosas e suaves como única forma de criar vínculos, mas os vínculos se fazem de outras formas, com afetos como raiva, medo, submissão e destrutividade. É uma ligação forte, muito forte que até então foi regida com maestria por Violet e Bev. Ligação forte pela competitividade da mãe e filha, pela tirania da mãe sobre as filhas, pela demanda por um pai ausente e submisso que interdite a mãe, imponha a lei e faça o falo circular. Ligação que transcende o espaço e o tempo, pois mesmo distante Karen busca o pai capaz de valorizá-la em Steve, de quem espera ser a escolhida para o casamento e uma lua-de-mel em Belize. Presas pela história todos são regidos pela compulsão à repetição da pulsão de morte.

Numa cena seguinte, Charlie repreende Mattie Fae pela sua destrutividade em relação ao filho, única cena que se faz lei. E mais uma parte da história vai se revelando quando Mattie conta a Barb que Little Charlie é irmão dela e não pode estar envolvido com Ivy. Little Charlie é a lembrança viva de um deslize, de uma imperfeição, de uma traição da mãe, por isto precisa ser combatido, destruído tão cruelmente. É o rastro de uma falha que precisa ser apagado. É o obstáculo ao recalque que faz da lembrança, o ato vivo que se presentifica todo o tempo para Mattie Fae.
Como uma chama de vela que vai se tornando uma tocha e iluminando toda a história, os segredos e as patologias de cada um vão aparecendo. Há uma permanente ameaça a integridade psíquica e física dos membros dessa família. Jean, 14 anos, filha de Barb fumando maconha e aceitando o assédio do perverso Steve são testemunhados pela empregada. Karen, usa da defesa de negação para não desmantelar a sua idealização de Steve como um homem bom que a escolheu. Prefere sustentar a ilusão do casamento e a lua-de-mel em Belize a admitir a estrutura perversa de Steve. É o que lhe resta pois não foi a favorita do pai e é ignorada todo o tempo pela mãe. Saem assim da história.
No momento seguinte, Ivy decide contar para Violet sobre seu namoro com Little Charlie e Violet lhe diz que são irmãos, que sempre soube disto. Uma vitória para Violet que se mostra no controle todo o tempo, nada lhe passa oculto, está sempre um passo adiante de todos. Parece não perceber o desmoronar da filha frente a verdade de que seu amado é seu meio irmão. Goza por mostrar seu controle, seu sintoma, mas se trai ao deixar escapar sobre o bilhete que Bev lhe deixou antes de morrer, no qual lhe contava o hotel que estava e sua intenção de suicídio. Violet nada fez para impedir. Primeiro foi retirar todo o dinheiro do casal no cofre do banco e quando ligou para o hotel, Bev já tinha partido no seu barco para morrer afogado no lago. Queria se livrar da presença masculina para que triunfasse o seu poder feminino? Para Bev, a vida era longa demais. Para Violet, a vida parecia curta para dominar a todos e a tudo. Tenta responsabilizar Barb pelo suicídio do pai que ressentido do seu abandono, abandonou o estatuto de sujeito desejante. Era Bev o duplo do espelho que ameaçava o trono narcísico de Violet? Ou diante de sua resignação a submissão, deixou de ser importante para desafiar Violet? E na sua onipotência narcísica, Violet diz - “Quando não restar mais nada, quando tudo se for e desaparecer, eu estarei aqui.”

E quando nada mais restou e todos se foram, Violet estava lá para se render nos braços acolhedores da empregada Johnna, com quem não precisa competir, com quem não se sente ameaçada e desafiada a mostrar seu controle e poder, para quem a sua fragilidade e solidão não são armas usadas contra si.
Poderíamos entender a necessidade de controle e poder de Violet como a defesa ao delírio persecutório decorrente de anos de dependência de medicamentos ou ainda refletir acerca de uma forma de assegurar o não retorno a uma história de vida miserável e cheia de sofrimentos.

Assim é um álbum de família, onde registros indeléveis das mazelas de cada um aparecem nas fotos envelhecidas e desvanecidas pelo tempo e a história vai se construindo a cada foto/cena e mostrando a condição humana de destrutividade e angústia como elementos estruturantes e vigentes.

trailer oficial


Olivan Liger, psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ.

sábado, 16 de novembro de 2013

DO FILME “AMOR”; DAQUILO QUE PERMEIA A VIDA E A MORTE.

de Olivan Liger

     Escrever sobre o filme “Amor” na tentativa de fazer uma análise do seu conteúdo sob uma perspectiva psicanalítica começa pela sensação que senti ao deixar a sala de projeção: algo incômodo e inquietante... algo que não se traduz, indizível por si só... que não se simboliza, mas dilacera... dilacerante como o próprio filme. Algo que induz a uma inquietação silenciosa, sombria que me fez, por minutos, me sentir sem saber se descia ou subia a Rua Augusta e onde tinha deixado meu carro.
Um filme de Michael Haneke para ser engolido a seco... sem trilha sonora...longas pausas escuras de espera, como a vida é. Um filme que fala de amor, de vida e de morte... ou melhor, um filme que fala do amor que permeia a vida e a morte.

     “Se começo (e termino) pelo amor, é que o amor é para todos, por mais que o neguem, a grande coisa da vida” (Baudelaire): é o começo quando o amor que faz suplência à relação sexual; é o meio através das repetições e tentativas de aprisionar o amor perdido nos primórdios, é o prêmio que nos é conferido quando aprendemos a conviver socialmente e também é o fim... quando não há mais saída e nos submetemos à castração final... é ai que buscamos reconciliar com o mundo e confessar os amores não ditos por uma vida toda, portanto o amor permeia a vida e a morte. O amor é a promessa daquilo que falta.

    O filme começa mostrando um casal, Anne e George, que se confunde numa platéia de um concerto de um ex-aluno de Anne. O amor vai se delineando no filme nas cenas que mostram o cuidado e gentileza de um para com o outro, no deleite pela música, pelo bom vinho e na cumplicidade expressa no olhar profundo e amoroso, no compartilhar um apartamento parisiense onde cada tela na parede, cada cd ou livro na estante articula a história desse casal.
      A história vai se revelando e mostrando o casal de aposentados, desfrutando a vida e o amor (um pelo outro, pela música, pela vida) e lentamente vai escancarando a precariedade da ordem do humano através da lenta aproximação de Thanatos cumprindo a máxima: A finalidade de toda a vida é a morte. Inseparável companheiro de Eros, um não pode existir sem o outro, assim como George parece não poder existir sem Anne. Thanatos é o invasor metaforizado na tentativa de arrombamento do apartamento. É o que invade, que chega de surpresa ou furtivamente para tirar algo do outro, é sempre o desconhecido... aparece também no sonho de George, no qual alguém chama à sua porta, mas é alguém que não pode ser visto, que não pode ser representado, alguém que lhe toma de surpresa levando-o ao terror.

    O filme pode ser dividido em três partes distintas, mas interligadas: o casal octagenário saudável e desejante num primeiro momento e em flashes de lembranças durante o filme; o segundo momento inicia-se com a primeira isquemia de Anne, a dificuldade de aceitar sua limitação, seu isolamento e dependência relativa; e o momento final na qual a perda da fala, a perda do controle dos esfincteres e a entrada da metáfora delirante parece mostrar momentos que oscilam entre a cessação do desejo e a expressão do mesmo, a vida começa a se esvair do corpo e o desejo do psiquismo.

     A cena inicial do filme é justamente o seu fim ilustrando que o ínicio da vida, o princípio de nirvana perdido é algo a ser encontrado no final. Tudo começa onde tudo termina ou tudo termina onde tudo começa.
       O casal é tomado de surpresa por algo que se interpõe ao desejo: a primeira isquemia de Anne e as sequelas de sua cirurgia. Anne pede a George que prometa não levá-la mais a um hospital. Compromete George através do Amor. Mas sendo o amor uma promessa de algo que não se tem, Anne, diante da limitação física, implícita na promessa que pede de George, a segurança que lhe falta diante da sua limitação. A dificuldade de Anne em aceitar sua limitação é perfeitamente compreensível diante do trauma, da surpresa daquilo que não se espera e que torna o sujeito impotente e incapaz de evitar. É o momento em que Anne se perde e se torna a própria doença, esquiva-se de falar sobre si mesma, isola-se e parece não se dar conta do que realmente lhe aconteceu. Tenta resgatar sua independência deixando a cadeira de rodas quando George está no funeral do amigo Pierre e caída no chão do vestíbulo é encontrada por George. É nesse momento que Anne é chamada a confrontar a sua finitude. Pede a George que lhe conte sobre o funeral de Pierre... um funeral bizarro, desorganizado, cheio de improvisos, constrangedor... um funeral que se assemelha ao seu estado... Ao se dar conta de si, Anne diz: - “ Não há razão para continuar vivendo”. Ainda um sujeito desejante, que vislumbra na antecipação da morte a saída para sua impotência diante da própria finitude.
     A vida é vivida através das lembranças da infância de George e dos álbuns de fotos de Anne. Uma vida virtual na impossibilidade do resgate do momento anterior à enfermidade.

     O momento final começa com a perda do controle dos esfincteres e uma segunda isquemia que toma de Anne a palavra falada; aquela que mediava a relação de Anne e George; que em forma de sussurros apaziguava a angústia da filha Eva, assegurando-lhe a união dos pais; que convocava um ao outro e que nos momentos finais de Anne, a palavra de George era um apaziguador para algo que doía. E na metáfora delirante, Anne repetia várias vezes - “dói...dói”, mas o que doía não era físico, talvez por ser indizível, estar fora da representação do inconsciente, nenhuma outra palavra foi encontrada para contar sobre a proximidade da morte. O casal se isola do mundo externo sugerindo uma estase da libido. A pulsão é oscilante e frágil, a dependência do outro é total, a dor de um é a dor do outro, o delírio de Anne se torna o delírio de George quando asfixia Anne para evitar a dor... a dor supostamente sentida por Anne diante da sua impotência? Ou a sua própria dor diante do vislumbre da morte psíquica da amada? A morte física se torna uma opção para evitar a dor da morte psíquica.
     A respiração que é o primeiro ato de independência do ser humano é também a razão da sua morte quando desta privado (ou privado da sua independência relativa?)

     E qual é o amor que o filme nos propõe ver? Este significante que une vida e morte está presente na filosofia, na antropologia, na psicologia, na psicanálise e em todas as ciências humanas.
   Para a sacerdotisa do amor, Diotima de Mantinéia, Eros é um intermediário entre os homens e os deuses, era sua função interpretar e transmitir aos deuses o que vinha dos homens e aos homens o que vinha dos deuses. Eros era o que completava o todo unindo as partes. O amor não se dirigia ao belo, mas a geração e a gênese do belo. Para Bauman, não é desejando o belo que o amor se manifesta, mas encontra seu significado no estímulo de participar da gênese das coisas, do belo, o amor é visto como a transcendência. E quando esta possibilidade de vivenciar o amor é tomada, a vida se extingue.

     Para George, o amor transcende... transcende a vida física quando veste e enfeita o corpo sem vida de Anne. Quando amando, delira. Um amor que se constitui pela falta. O filme nos propõe ver Amor e não o amor.

trailer oficial "Amor"
Olivan Liger, psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ.