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domingo, 10 de julho de 2011

Cisne Negro

um olhar de
Henrique Senhorini


O filme do diretor Darren Aronofsky – o mesmo de outras películas não menos provocantes como Réquiem de Um Sonho e O Lutador vem ao encontro a uma das variantes da proposta deste blog na sua apresentação pessoal: tentar compreender o que a priori se mostra como contrário, mas, no caminhar, apresenta-se como complemento.

Este inquietante thriller psicológico, logo de início, mostra o sonho de Nina dançando o prólogo - quando há o feitiço - do Lago dos Cisnes e, em seguida, revela sua expressão de prazer ao acordar. Estaria esse diretor nos provocando mais uma vez, apontando - de imediato - um índice de desejo da protagonista?
Nina é a garotinha de 28 anos da mamãe Erica. Virgem, pura, doce, meiga, inocente, reprimida e obediente (para não dizer submissa), cuja a vida parece estar direcionada a satisfazer o desejo da mãe.
Afinal de contas, esta sacrificou seu desejo em seguir a carreira de bailarina profissional em prol da filha. Portanto, nada mais justo em recalcar, reprimir sua sexualidade, suas vontades, sonhos e desejos, para agradar a dedicada mãe. Nina nem se permite pensar em ser ela mesma. Seria uma ingratidão. E ingratidão não faz parte do repertório de uma boa moça, muito menos reivindicar algo para si que seja contrário a vontade da mãe. Que egoísta. Onde já se viu?
Acontece que isso tem um preço e Nina começa a pagar a conta através do próprio corpo. Está nas costas dela a marca da dívida por aceitar ser a suposta completude do Outro. Mas, este pagamento efetuado é somente o mínimo da fatura do cartão de crédito de Nina, que já dá sinais que está estourando o limite.
No balé, ela segue sua rotina obsessiva em chegar a perfeição - e ser reconhecida - pois há uma competição em andamento para ocupar o lugar de primeira bailarina que logo ficará vago.
Quem será escolhida para ser a número 1, a Rainha dos Cisnes ?
Todos fazem os exercício rotineiros, quando – olhando lá de cima – aparece a figura do “poderoso” diretor artístico observando a todos, o que provoca um certo desconforto, uma inquietação em Nina.
Leroy - diretor onipotente - é aquele que decide quem morrerá e quem viverá no Ballet da Cidade de Nova York, sem dúvida.

Seria ele um dos Nomes-do-Pai ???

Aqui, abro um parêntese
Em Lacan, a noção de Pai vai além. Não necessariamente coincide com o pai biológico e sim com aquele que exerce uma função, a Função Paterna. Como Nome-do-Pai (no singular) é o que dá sustentação da ordem simbólica, o representante da Lei Simbólica e o portador da interdição. É o que quebra a relação dual mãe-bebê 'situando-se' como terceiro. Também, o Nome-do-Pai se desdobra em tantos nomes quantos forem os que fazem suplência à sua função.
Fecho parêntese

É, através de seu convite – de Leroy – que entra em cena Lilly, a bailarina que vem de fora, a estranha, a “estrangeira” de São Francisco - California.
Sua presença, sua aparência, seu jeito de ser e de se mostrar causa, em Nina, uma “sensação de familiaridade e estranheza” (Freud), algo que lhe é ao mesmo tempo estranho e familiar. Trata-se do encontro de Nina com seu duplo?

Aqui, abro mais um parêntese
Otto Rank - em 1914 - foi o primeiro a desenvolver a noção do duplo no campo da psicanálise, mas, essa questão já aparece nas artes cênicas e literárias desde a Grécia antiga, passando por Shakespeare, Molière e vários outros. Provavelmente, a mais conhecida seja “O médico e o monstro”. Em 1919, Freud retoma esse tema integrado na noção de “inquietante estranheza”, essa “variedade particular do pavoroso que remonta para além que é desde há muito tempo conhecido, desde há muito tempo familiar”, mas que se tornou pavoroso porque corresponde a algo recalcado por normas sociais moralistas e puritanas que retornou. Portanto, é tudo o que deveria permanecer secreto, escondido, recalcado no inconsciente e que vem à tona se manifestar, até mesmo contra nossa vontade consciente.
Mora em nós um outro que não se esquece da nossa verdade.” Rubem Alves
Fecho parêntese

Nina é perfeita no papel do cisne branco, mas, um fiasco no e do cisne negro.
O diretor insiste para ela se soltar, se libertar da rigidez para que a emoção e o tesão apareça. Com voz imperativa diz: vá se masturbar !
Ela tem ciência que caso não consiga fazer o cisne negro do jeito esperado, Lilly – sua reserva imediata – estará pronta para tomar seu lugar. Para isso não acontecer, resolve experimentar o que diretor mandou fazer. Mal sabia Leroy que, com sua ordem, estaria abrindo a caixa de Pandora. No mínimo, ajudando.
A partir disso, assistimos o que estava represado em Nina romper de forma abrupta as leis morais impostas e internalizadas. Sua sexualidade, suas posições frente a vida, suas verdades e seus demônios, seu lado obscuro, sombrio e sinistro, seus desejos inconscientes emergem avassaladoramente.
Tudo que mamãe adoraria reprovar.
Mas, durante um ensaio, num exercício solo frente ao espelho, ela desdobra-se especularmente. Ela se enxerga duplicada, porém diferente.
Algo está acontecendo em Nina, ou melhor, já aconteceu. Alucinações, delírios persecutórios, despedaçamento do corpo, mimetismo morfológico (penas e membranas de aves surgem nela)...um verdadeiro “pout-pourri” de manifestações psicóticas.
Ah, esses espelhos....protótipos do registro do imaginário.

outro parênteses
A hipótese ligando a paranoia de autopunição e a imagem especular foi introduzido por Lacan com o caso Aimée em 1932, seguido das irmãs Papin em 1933. O paranoico pode se desdobrar especularmente e até falar com seu duplo. Não rara, nesses casos, há uma tendência do paranoico de quebrar espelhos e vidraças quando esses lhe mostram seu duplo, ou melhor, o duplo do seu eu. Esta tese de 1932 antecede o famoso “O Estádio do Espelho”.

É chegado o grande dia da estréia e nada deteria Nina de subir naquele palco.... Muito menos sua mãe Erica, que nunca saiu do lago. Com essas palavras, direcionadas a mãe, Nina mostra toda sua determinação em realizar seu desejo de ser a mais perfeita Rainha dos Cisnes. Quanto vai lhe custar isso?
Veremos a seguir.

Um aparte
Há um provérbio judaico que diz: “Cuidado com o que desejas, pois poderá ser atendido.”

Abrem as cortinas e inicia-se o fim.
O cisne branco se apresenta para o público. Todos tinham a certeza que fazer o cisne branco não seria um problema para Nina...não seria, mas foi. Ela tropeça na fala (na dança) deixando escapar o que estaria advir em si.... o cisne negro.
No intervalo que precede o terceiro ato, Nina vai ao camarim para se transformar em cisne negro, no caso o personagem. Porém, chegando lá ela se depara com seu duplo - no imaginário – e trava uma batalha feroz...Nina vence e pensando que feriu (com a ponta do espelho despedaçado) de morte sua rival Lilly, retorna ao palco vitoriosa como Odine, o negro cisne. Seus olhos cor de sangue, penas brotando em seus braços florindo suas asas negras, dançando como se fizesse sexo selvagem mirando os olhos materno e, por fim, o gozo estampado em sua face. O público enlouquecido (?) com a “performance” bate palmas com vontade. Intervalo...
Nina se dá conta que está ferida e – pior que isso – que foi ela mesma que se feriu, feriu de morte.

Último parenteses
O que houve? Uma colisão das pulsões de Vida e Morte, de Eros e Thanatos? E ou uma auto-punição exigido por um superego cruel e tirânico? Teria sido ela enganada por seu  desejo?

Quarto e último ato: O cisne branco, Odette, com a dor que sente em perder o amado, morre. Uma trágica morte de amor.
Mas, Nina está feliz, reluzente e - mesmo experimentando a aproximação da morte - diz com voz embargada:
- Eu me sinto perfeita. Foi perfeito.
Afinal, ela realizou o seu desejo?