quarta-feira, 27 de abril de 2011

SÁBADO, POR QUE MESMO ???

por Rodolfo Coelho

Vi um velho
chapéu verde
sentado no muro
do sábado
olhava o sábado
de soslaio
Vi um jovem
chapéu panamá
bebendo o sábado
no ônibus
um velho de boné
será será
sincronicidade
A bailarina
escada abaixo
frango assado
na mão
E o velho verde
me olhar na janela
As rolinhas
vôo rasante
sobre o chão
sobre o sábado.

Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta – Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - ]gnição – Poesia 100 Filtro

sábado, 26 de março de 2011

Sempre ao Seu Lado

por Mauro Celso Lima


O filme começa colocando Hachi como herói. Porque herói?! Verifico no dicionário: Herói: […] 5. Personagem proeminente ou central que, por sua parte admirável em uma ação ou evento notável, é considerada um modelo de nobreza. [...] 10. O que por qualquer motivo, se distingue ou sobressai. Essas duas definições dão uma ideia mais ou menos clara das intenções do diretor quando coloca Hachi como herói. Sim, acreditamos que a intensidade com que aparece o sentimento de amor, lealdade e dedicação de um lado e o de persistência e não aceitação da realidade de outro, é o diferencial que faz do filme uma mistura única de sentimentos antagônicos no seus efeitos, onde leva a quem assiste a admirar e porque não sonhar com alguém que possa nutrir aqueles mesmos sentimentos com a mesma intensidade que o cão nutre pelo seu dono, por eles próprios. Esse é o segredo do filme! Levar a quem assiste a uma pureza de sentimento que chega a negação da realidade que se apresenta, mas o espectador não está consciente disso. Talvez por isso da emoção que brota do coração/ olhos de quem assiste. Pois esse mesmo espectador se depara com o improvável pois, o provável acarretaria dificuldades existenciais ou pra si próprio ou para aquele que nutre tal sentimento.
Mas essa também é a realidade de Hachi. A realidade que quis viver para si. Muitos dirão: “Mas é um cachorro! Como é que pode distinguir entre o que é ou o que não é real?” Pois é!! Isso é uma pergunta que não fazemos só para o animal. Podemos também perguntá-la a um ser humano.
Mas há outros aspectos também que gostaríamos de ressaltar na história que nos parece relevante. Um dos quais é o encontro de Hachi e o Professor Parker Wilson, como se o destino já tivesse determinado um cachorro especial para uma pessoa especial. Esse filme é o segundo que conta a mesma história desses dois personagens que viveram no Japão. O filme nos conta sobre alguém nos EUA que recebe um “presente” do Japão. A nossa sensibilidade não pode deixar de notar um provável convite para a sociedade Americana, e porque não Ocidental, aprender o jeito diferente de ver o mundo tal como o Oriente o enxerga. Quem sabe também não seria para que o ser humano pudesse integrar mais efetivamente no seu dia a dia o amor, a dedicação e a lealdade como sentimentos comuns uns para com os outros.
O apego também é tratado nesse filme de uma maneira muito particular. A cena da bola que Parker joga para Hachi poder pegá-la. Um cachorro comum a pegaria e levaria de volta para o seu dono, no caso de Hachi, como todo cachorro de raça Akita, não agradam seu dono e só fazem algo que tem sentido para eles, assim revela uma personagem do filme. Tal fato humaniza ainda mais o cachorro que está sendo humanizado desde o início do filme (projeções de sentimentos).
É notável também a negação de Parker na aceitação de Hachi em sua vida. Lutar contra algo é sinal de que esse algo já está lá. Não se luta sozinho! Essa negação atribuímos ao bom relacionamento dele com sua esposa que no começo não queria que Hachi ficasse mas rendeu-se a perceber o relacionamento entre os dois. Mais uma vez não dá para negar o que já está acontecendo, apenas ser honestos conosco mesmos e enfrentar a realidade. Mais uma lição bonita que o filme traz para quem assiste.
O cotidiano é tratado com extrema delicadeza no filme. As personagens, cada uma tem uma função específica no dia da outra. O vendedor de bilhetes, o vendedor de cachorro quente, a mulher da mercearia, etc. O E todo dia a mesma coisa e quase os mesmos fatos. Nada melhor de simbolizar esse fato do que um TREM (tem horário para chegar, para permanecer na plataforma e para sair – tudo cronometrado, como se a vida fosse um relógio. O cotidiano, a mesmice só irá ser superada pelo amor, tal como Parker falou para o futuro genro: “Você ama a minha filha? Porque o amor é a única coisa que lhe dará sustento nas adversidades.” Entendemos o cotidiano como sendo uma das adversidades para qualquer relacionamento.
A finitude encontra espaço na repetição do cotidiano. A vida continua na sua aspereza e crueldade mesmo na falta de alguém especial.
A aceitação da realidade como fato também é discutida nas entrelinhas. Deduzida a partir do comportamento do cão. O quanto estamos e ficamos presos a situações, a pessoas a estilos de vida e não percebemos que estamos parados num único e só lugar? O que o comportamento de Hachi também nos revela? Se não sou de um também não sou de mais ninguém... o quanto fazemos isso em nossas vidas? Será que temos algo a aprender com tal filme? Talvez, tentando humanizar o cão novamente, Hachi tenha encontrado um sentido em sua vida: esperar pelo dono!

Mauro Celso Lima é psicólogo e membro da ABRAPE

terça-feira, 1 de março de 2011

Verão 2011


de
Rodolfo Coelho


Choveu hoje à tarde
A chuva pegou-nos quando saímos
do táxi na Rua Sabará
Tudo estava lento e quieto.

Para onde andará Mubarak
À sombra das pirâmides
ou amealhando seu rico dinheiro
colhido durante 30 anos

Hoje eu vi uma foto da musa
Gisele Bündchen na farmácia
Tá comigo quando não houver mais jeito

Eu estou redescobrindo Fernando Pessoa
O prazer de ler Fernando Pessoa
Seu belo texto
Seu infindável “Eu”

Estive escutando Gil Unplugged
Gil e sua música caudalosa
Faz bem ao espírito e almas inquietas

Ela tem uma tatuagem no braço esquerdo
um sorriso colegial
e um rabo de cavalo
na cabeça é a minha musa itinerante
aqui no Scada Café

Eu estou atirando
prá todos os lados o que
cair é peixe

Biblioteca Mario de Andrade
Já que a preguiça não me deixa
nesta 2ª Feira de Fevereiro
resolvi fazer dela o meu ócio criativo
fazendo dela meu ócio criativo

A imaginação é mais importante
que o conhecimento - Albert Einstein

A geometria das coxas
a volumetria do desejo
eu quero ver
sentir
estar dentro
provar – Ferreira Gullar

Chove São Paulo
Estava na Praça da República
Uma esfiha e uma coca
Rumei para Galeria Metrópole
A chuva inclemente aporrinhava

Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta – Salada Paulista - Poesia 100 Filtro - Táxi e Outros Poemas Inéditos – Ignição 


sábado, 12 de fevereiro de 2011

O Menino do Pijama Listrado

por Teresa Cabral


O filme é repleto de simbolismos, de meias verdades, de luz e sombra. O clima é tenso e o conteúdo denso.
As cenas que retratam a crueldade, a manipulação, o controle, a mentira e outros sentimentos destrutivos, e nem por isso menos humanos, contrastam com os vários momentos de generosidade, de cuidado, de disponibilidade e abertura para a amizade, o encontro com o diferente e a troca.
Pareceu-me impossível não pensar sobre a questão do bem e do mal. Geralmente é mais fácil ver o mal no outro. Mas, esquecemos que o mundo externo é um reflexo do nosso mundo interno. Portanto, se há maldade no mundo, consequentemente deve haver maldade em mim.
Qual a minha responsabilidade e a de cada um de nós em relação ao mal que existe ao nosso redor e no mundo que vivemos? Tema delicado, complexo e polêmico. Mexe em valores, moralidade, ética... Talvez seja melhor deixar para uma outra oportunidade.
Voltando ao filme: Bruno, um menino de 9 anos, olha pela janela de seu quarto e descobre ao longe uma moradia estranha, muito diferente das que está acostumado a ver. Sua curiosidade é atiçada e o local torna-se uma mina a ser explorada.
Muitas personagens nos chamam a atenção: o cozinheiro, que num gesto de cuidado socorre Bruno quando este, cai no quintal. Bruno descobre que o cozinheiro não deve ser um bom médico, afinal, ele descasca batatas! A simplicidade com que a criança entende o mundo. O constrangimento da mãe, ao saber que um nazista cuidou do seu filho. Várias facetas de um mesmo espectro.
A avó sempre muito crítica e consciente do que está acontecendo na Alemanha, com o seu filho, com sua família. Lembra-nos Cassandra da mitologia grega, que fala das suas visões e é desacreditada por todos! Uma mulher de sentimentos?
O pai sempre frio e distante, cumprindo sua missão. Será que realmente acredita que o que está fazendo é o melhor? Ou é o mais conveniente? O que será que passa pelo sentimento e razão de tão imponente e altivo militar?
Para Jung, a função sentimento é valorativa. Com ela fazemos afirmações de avaliações, ela confere o valor . Uma pessoa com função sentimento bem desenvolvida, tem a capacidade de sentir as coisas como boas ou más, feias ou bonitas, justas ou injustas. Pessoas com essa função empobrecida ou mal desenvolvida, não conseguem reagir às situações com julgamento valorativo adequado.
A função sentimento, por vezes tão desvalorizada, é essencial para a superação do mal. Por outro lado, o mal pode ajudar no incremento do desenvolvimento da função sentimento. Se não houvesse mal, não haveria reações de sentimento , o que é um grande paradoxo. Portanto, o mal tem uma função, e com ele temos muito a aprender. Talvez, para nos humanizarmos, o confronto com o mal seja absolutamente necessário.
Novamente, um aspecto polêmico. Especialmente para a cultura judaico cristã, onde ser bom é fundamental e imprescindível. Mas será que o ser humano já tem nível de consciência suficiente para ser totalmente bom e eliminar o mal? Será que um dia o mal será eliminado? Sem o mal, como a função sentimento será desenvolvida? Vários aspectos para refletir.
Então, Bruno conhece Shmuel – o garoto do pijama listrado. Nasce uma grande amizade, onde todas as diferenças culturais e ideológicas não são levadas em conta. Os diálogos são de profunda sensibilidade e ingenuidade. Mesmo quando Bruno nega conhecer seu amigo, o sentimento se faz presente e a culpa vem como uma possibilidade de reparação. A amizade se fortalece, e o desejo de ajudar o amigo sela o destino dos dois.
O nazismo é uma das grandes chagas da humanidade, sem dúvida. Uma grande ferida que ainda hoje, sangra e comove, todas as pessoas com função sentimento minimamente desenvolvida. Porém, continuamos a lidar no dia a dia com índices elevados de miséria, regimes políticos ditatoriais que desrespeitam a dignidade humana, preconceitos de todos os tipos, capitalismo selvagem. Descaso dos mais variados matizes, parecem debochar da dor e o sofrimento humano, ou melhor, dos seres vivos. Os animais, e a natureza também não são poupados.

Teresa Cristina Cabral é psicóloga e supervisora clínica de orientação junguiana.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Um caminhar no entre

de Henrique Senhorini

Caminhar no pontal de Corumbau, em direção à África,
é viver uma experiência única, singular
Algo como, penso que seria, um caminhar entre
o Consciente e o Inconsciente

...entre as bordas do Real, 
do Simbólico e do Imaginário

...entre a fantasia, o delírio e a realidade
...entre a razão e a des-razão
...entre a lei do desejo e a lei moral

Algo como caminhar na terceira margem do rio
entre o questionamento e a resposta pronta
entre o oito e o oitenta
entre os ditos e não ditos
entre-ditos e inter-ditos
entre os bem-ditos e os mal-ditos
entre o tu deves e o tu não deves
entre o infortúnio e a fortuna
entre o horror e a sublimação
entre o de-mais e o de-menos
entre o sentido e o sem-sentido
entre o lógico e o i-lógico
entre o mundo e o i-mundo
entre a falta e o nada
entre o ato controlado e o ato falho
entre o dizer bem e a arte de bem dizer
É no entre o céu e o inferno que se encontra o paraíso?

Nota: na língua pataxó, Corumbau significa algo como “longe de tudo”.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

24 de Dezembro

por Rodolfo Coelho


Agora parece que posso pensar. Ser senhor dos
meus domínios, das minhas posses.

As vezes a gente perde a capacidade de raciocinar e tudo fica perdido no país do nada.
Acordei tarde, perto do meio dia,
numa lassidão terrível.
Almocei as panquecas que a sogra preparou, tomei Fanta Uva pensando na lata de vinho.
A sala em desarrumação parecendo o inferno.
Fugi by táxi.
Caí na Av. Paulista, uma entrada no templo
de consumo o shopping me fez bem. Uma agenda
na Nobel me fez melhor. Aqui estou a escrevinhar o bom
e o pequeno, o avesso e o reverso, esperando que
no frigir dos ovos a emoção permaneça.


Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta – Salada Paulista - Poesia 100 Filtro - Táxi e Outros Poemas Inéditos – Ignição 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Departures - A Partida

por Karin de Paula


Havia uma única folha em branco, ou seja, o bastante, o suficiente.
A última folha é a próxima, a do próximo, e depois ainda, do próximo.
Não qualquer próximo, mas um disposto à contaminação, aquele que resulta se fazer o do bastão da transmissão.
Mas qual o chamado nesta direção, já que na perspectiva de transmissão é condição não capitular ao apelo identificatório?
Haverá algo de Belo ou de Bem no Real? Talvez uma beleza particular – mas qual não o é? –, para a qual há de se estar preparado...
Tal não foi, muito provavelmente, o caso em A Partida... Pegos desprevenidos pela sétima arte, os chocados mesmo, quase horrorizados pela crueza do corpo inanimado colocado em cena, teriam visto surgir deste corpo morto, de modo súbito, um movimento com potência de transmissão de vida, animado por outros, os ainda vivos: os que ficaram e os que ainda não partiram e poderão insistir no projeto humano...
A vida é um desvio, disse um dia Freud. É fato que isso não implica a vida ser um atalho, mas um (há)talho no Real. Este é um compromisso que merece ser assumido... E no fim, a Partida.
Duro, dura, do que não dura e, por vezes, assusta. Subitamente, um último sentido, post mortem, depois do último suspiro. Não além do limite, mas, sim, a partir dele: a Partida.
A passagem pela porta/portão... E o botão! Então as chamas... Quem chama? Quem chamas?
Não estar mais aqui e ser disso que se trata. Justamente: tratamento do corpo que parte e chegará a outro lado, a (há?) outro termo... Haverá algo disso? Haverá algo nisso?
Não, não me parece reparação, mas a vida que, ao morrer e deixar registros, inscreve a perspectiva de transmissão da vida, do porvir, da continuidade na descontinuidade, aquilo que o imperativo do gozo de Lacan (1963), em Kant com Sade, acusa ao visar eliminar: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei este direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar.”
Ou ainda, com o que Baudrillard (2000) nos faz notar ao cogitar o intento de um crime perfeito: “O que está em causa no crime perfeito perpetrado contra o mundo, contra o tempo, contra o corpo, é esta espécie de dissolução pela verificação objetiva das coisas, pela identificação. Isso equivale a eliminar mais uma vez, como já dissemos, a morte. Pois não se trata mais de morte e sim de extermínio. Literalmente, exterminar significa privar alguma coisa de seu fim, privá-la de seu próprio termo. Significa eliminar a dualidade, o antagonismo vida e morte, reduzir tudo a uma espécie de princípio único – poderíamos mesmo dizer de  “pensamento único” – do mundo, que se traduziria em todas as nossas tecnologias – hoje, sobretudo em nossas tecnologias do virtual.”
Para sermos justos com o próprio Baudrillard, é claro que extermínio como tentativa de privar algo de sua finitude, de seu termo, não é criação das tecnologias do virtual, mas de uma certa relação com estas, já que o caráter virtual em si é ingrediente necessário nas relações humanas com o mundo. É sobre este modo de relação, aquele que visaria eliminar a morte da cena, que incide tal armadilha ao novo.
Segundo Ryszard Kapuscinski , em Shah of Shahs, foi por isso mesmo que os rituais fúnebres iranianos foram cruciais para pôr em andamento a revolução de 1979, ou seja, para pôr em andamento uma tentativa de encontrar um novo termo para as coisas, pôr a vida do país em outro andamento. Por esta capacidade advinda da sua antenação com a vida, tais rituais foram proibidos pelo governo há algumas semanas, ao longo aos protestos que, naquele país, se seguiram ao logro das últimas eleições. Ou seja, em tempos de
turbulência, mostrou-se (ditatorialmente) importante impedir a ritualização da morte (das mortes), pois que era preciso evitar que algo de novo pudesse surgir a partir daí.
Ainda nesta toada, temos as lágrimas. Como nos ensina o Midrash, segundo Yossef Rozin, é preciso observar as lágrimas. Se o choro é manifestação de certos humores egóicos, a lágrima, diferentemente, é o que escapa ao choro através do corpo. As lágrimas não se sacrificam, elas se dão; não praticamos as lágrimas, elas que nos surpreendem. Ainda segundo ele, as lágrimas não são por nada, mas para nada. As lágrimas não são o choro: muito embora toda lágrima seja choro, nem todo choro é lágrima. No mesmo Midrash, a evocação mais alta afirma que D’us viu que o povo não chorou, mas verteu lágrimas. Por isso o recipiente de água salgada faz parte do prato do seder em Pessah, festa na qual o tema central é também o de uma partida, de uma passagem!
No filme em questão, há choros e lágrimas e, curiosamente, tais eventos são passíveis de serem discernidos ao longo das cenas. Inspirados no mencionado Midrash, poderíamos, então, pensar que se o choro apela à reparação (egóica), as lágrimas apelariam à transmissão, ao que passa e segue adiante?
Em A Partida, na passagem que enlaça os que partiram da vida e os que partirão para a vida, os que seguirão, ironicamente, a pergunta que não se cala é sobre qual maquiagem se aplicará ao corpo morto: a de homem ou a de mulher? Que pergunta enigmática!!! Estamos todos num corpo, e nele estamos sós: nem o gênero nos salva, embora nos permita a pergunta, o que não é pouca coisa...
Chegamos assim ao início da “Partida”. E aí o condescendente mundo do amor, da compreensão, por que não dizer, do choro e da reparação; também da decepção, dos instrumentos musicais insuficientes, dos modos de viver a vida dos vivos...
Mas este foi o início... O polvo – o ex-futuro jantar caro –, na tentativa feita de salvá-lo, morreu; em todos os sentidos: MORREU.
A mídia, o anúncio, o aceite. Aceitou a morte sem saber? E como não seria assim?
A morte da mãe em questão, mesmo sem desconfiar.
Tantas outras mulheres se beneficiaram da partida bem encaminhada.
O luto da mãe: possível? Impossível? Freudianamente possível E impossível? Frente à putrefação surge a casa de banhos e, neste contexto, o dos banhos, as memórias, a persistência, a insistência, porém, uma outra limpeza, precedente à preparação derradeira para a “Partida”.
Mais uma vez, subitamente, tudo aquilo que pareceu fazer sentido: os corpos, as mortes, as cerimônias, as despedidas, o ofício... Uma função.
Função de transmissão? É o que nos resta? É o que nos cabe? Se for, não será pouca coisa.
Com Rabbi Yossef Rozin (2006): “Quem procura a verdade deve estar pronto ao incompreensível, pois ela é difícil de se encontrar e, quando nós a encontramos, é desconcertante“
Não sei...
E isso é tudo? Certamente que não! Se não fosse assim, não se encontraría o pai, a pedra, o que fica, posto que já havia ficado a chama, mesmo sem sabê-lo , dando àquele um lugar ordenado por alhures, por pertencer a uma ordem simbólica e, por esta via ser transmitido...
A possibilidade de seguir com o tema da morte é ambivalente.
Se pararmos, Isso pára? A questão é que não, não pára. Ao contrário, segue. Não há reparação nesta pauta, mas inclusão do irreparável, a saber, do fim, da morte, dos limites. A reparação frente a essa perspectiva é nada mais que a insistência de nosso narcisismo que quer continuar crendo que é possível corrigir tal condição de finitude.
Outra ironia é que incluir a morte não implica estar preparado para ela, posto que ela nos pegará sempre de surpresa. Esta é a delicadeza do que este filme promove: um encontro com algo importante e difícil de incluir, sob a ordem do que não se inscreve ou se reduz à ordem da reparação e, embora se mantendo em sua condição de puro impacto, não é traumatizante, mas sublime (cf. Schiller) . Há aí uma beleza estonteante que, como as lágrimas, saltam do corpo que restou da e na experiência humana. Como isso é possível?
A morte é parte da/na vida, e para isso não há correção: com Freud, com Lacan, com Baudrillard, comigo e com você. Parafraseando Godard, é Nossa Música, o som da possibilidade de ver a nossa condição triunfar por ser mortal e por isso mesmo passível de simbolização e transmissão... Transmissão cujo vetor ruma para as próximas gerações.
Não, não é pouca coisa.

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Paris 7, professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros $em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo e Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta. 


Divã

por Henrique Senhorini

Cena inicial mostra Mercedes apreciando (e fantasiando) a abertura de uma exposição de artes plásticas - pinturas - mas, do lado de fora.
Um indício do desejo?
Vai a procura de um psicanalista por causa de um incomodo. Um incomodo que ela não sabe descrever, distinguir, nomear.
A partir da aí, dá para perceber que tem uma intenção para que o filme se desenvolva seguindo um modelo de uma experiência analítica.......
Os tempos operativos - não cronológicos, mas lógicos de Lacan - de uma psicanálise:
-instante de ver
-tempo de compreender
-momento de concluir
O interessante e legal do filme é que podemos identificá-los no desenrolar da película...E tendo esse modelo como baliza, o filme segue.
Primeiro, as entrevistas preliminares com enfase na regra fundamental....”fale o que lhe vier a mente”...A metáfora da laranja inteira...da ilusão de completude... Ela inicia uma fase mais reflexiva, introspectiva.... e faz a passagem para o divã, que funda, inaugura o processo realmente dito de análise..
Mercedes aprende que é ela que tem que se questionar para elaborar e é isso mesmo.... o paciente entra para a sessão perguntando e sai se questionando. Aponta para o seu casamento como o responsável pelo seu mal-estar. Tem desejos....tem demandas amorosas....pedidos de reconhecimento que se apresentam como apelos de necessidade. Precisa se sentir amada, notada, desejada sexualmente. Como na canção: "desejo, necessidade, vontade.." Coisas distintas que se confundem, se misturam.
Se reconhece como humana passível de falhas....autoritária, péssima na cozinha, etc....
Durante o processo, o recalcado dá sinais que nunca havia morrido, que nunca morre...a masturbação de Mercedes é um dos seus tubos vitais... o Imaginário dá o ar da graça na realização do desejo. Dá permissão para que esses desejos comecem a circular fora do limites da imaginação.
Descobre através do affair que “o pulso ainda pulsa”...
Com o fim desse affair, mais luto, mais incomodo. Mas, provavelmente provocado não tanto pela perda do dito cujo em si, mas, pela perda da sensação de estar viva.
Decide fazer uma aposta na escolha que lhe parece ser a mais divertida, prazerosa, mais viva....mais próxima do que acredita ser o seu desejo.
Aproveita o extra-caso do esposo para compor - re-compor a força em sua decisão.
Ela não acusa mais os outros por suas crises de infelicidade. Assume as responsabilidades de seus atos, de suas escolhas. E re-afirma sua aposta depositando mais fichas, pois agora tem a sensação de estar com um jogo melhor nas mãos, ou melhor, nos pés - no chão....
Não espera nada mais que sexo e diversão e balada....bem ao ritmo dos Titãs....”diversão é solução sim, diversão é solução para mim”. Atuações?
Mas, para além dos casos e dos previstos, os acasos e imprevistos se mostram com a imprevisível morte pré-vista da amiga.
A finitude mostra sua cara.
É hora do Luto com ELE maiúsculo. É hora das re-significações em sua história (um exemplo é o do marido que passa de um vestidinho qualquer para um Armani) e re-orientações do desejo...Aproximá-o da realidade, do princípio da realidade. Um trabalho de alinhamento e redirecionamento, pois a falta não será preenchida... Percebe que a nossa laranja não tem tampa, ou não tem fundo, ou não tem miolo.
Aprender a viver e bem com ela – a falta - torna-se a sua bússola...”cada um tem que lidar com suas irrealizações”.
A vida é falta de definições”, conclui. E fazendo uso desse mote como guia, permite a entrada do ar-da-graça em sua vida. Instante de ver, tempo de compreender, momento de concluir.
Vernissage !!
Diferente da cena inicial, agora é a vernissage da Mercedes. Realização do desejo?
Fim de análise?  Fim do filme.

Interessante pensar que “vernissage”... pode se traduzir como... passar verniz, envernizar. Lembrando que o verniz dá brilho e, ao mesmo tempo, protege.

RECALQUE – ...um processo psíquico, uma operação – mtas vezes citada por Freud como um mecanismo de defesa – no qual o sujeito procura repelir, ou manter no inconsciente, representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão.

RETORNO DO RECALCADO – ocorrências de acontecimentos atuais que evoquem o material recalcado.
(Fonte rápida: Laplanche e Pontalis)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A Dama da Lotação

por Rodolfo Coelho


Uma visão mais concreta do poeta urbano.

Solange...
Solange começou a trair Carlinhos quando pegou a carteira de cigarros e
fumou um "Parliament".
Tragada lenta e demorada. Depois pegou um Copacabana-Pavuna
e deu pra toda Rio de Janeiro, até o sogro comeu.
O marido, a besta do Carlinhos se enterrou em vida num apê em Cosme Velho. E o Caetano repetindo: “Eu não sou cachorro não, a gente não sabe onde põe o desejo...”
Solange foi ao psicanalista por indicação do Assunção, que também comeu, mas não adiantou picas, ou muito pouco.
Mesmo com o marido enterrado em casa, Sônia Braga transa com Paulo Vilaça em pleno Arpoador. E não juntou gente. As cenas iniciais com ônibus são bacanas. É o prenúncio da loucura que só Nelson Rodrigues sabe mostar.
E não é por acaso que é numa garagem de ônibus que Solange tem um pesadelo. Lotação no Rio é ônibus em São Paulo?
E trocador é cobrador?

Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta – Táxi e Outros Poemas Inéditos –
Salada Paulista - Ignição – Poesia 100 Filtro

sábado, 13 de novembro de 2010

O Menino do Pijama Listrado

Comentários sobre o filme de
Henrique Senhorini - 08/11/2010

Hipóteses que suscitaram com o filme:

- Vale a pena viver para si e não para o pai (Outro)?
- Vale a pena se oferecer ao sacrifício pelo pai (Outro)?
ou seria......
- Vale a pena não viver só para o ideal ?
- Vale a pena se oferecer ao sacrifício pelo ideal ?

Articulando com a teoria
eu(ego) ideal - ideal do eu(ego)

Bruno é tomado de assalto após o contato com a realidade nua e crua (do nazismo) que, como conseqüência, desencadeia um enorme conflito dentro de si, entre o que a norma social vigente - nazismo - lhe impõe e o que seu coração - cristão* - enxerga, (coração esse, abastecido e orientado pelo olhar da mãe e principalmente pelo olhar da avó).
* Porque coração cristão? Porque a cena da irmã orando no trem a caminho de Auschwistz indica a formação religiosa da família.

Podemos dizer, sempre como hipótese, que esse conflito cria uma tensão, um embate com fim trágico entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, entre a Mãe e o Pai, entre a avó paterna e Hitler, entre o ego (mais amado do que temido) e superego (tirano e cruel). E - como solução desse conflito intrapsíquico, intrasubjetivo - ocorre uma espécie de substituição de Ideal do Ego....enquanto um é deposto (para ilustrar, da até para pensar que o ideal sofreu um processo de impeachment*) o outro é eleito em seu lugar.
* Processo de impeachment é um processo de acusação por alta traição do detentor do poder, do mandatário.

.....nos momentos finais, Bruno (na cena dentro do campo de concentração) percebe que não vale a pena viver por seu Ideal - representado pelo figura de seu pai, até então idealizado como soldado, comandante importante, justo, fazedor de medidas supremas e sublimes em prol da grande nação alemã - concomitante a descoberta que vale a pena, sim, morrer por um outro ideal (que é o mesmo de Smuel, representado pelo seu pai do qual se orgulha),.... e decide acompanhar seu amigo a procura desse pai (do Smuel), mesmo que isso o leve a morte..... Estaria aí uma tentativa de re-com-por (o Pai?),
de re-com-por o ideal do ego através da figura desse pai do Smuel?
... Afinal, é disso, só isso ou mais além disso que se trata?

Após essa pequena reflexão, novas hipóteses vem agregar:
Estaria aí, no cerne desse filme, a questão sobre a escolha entre o bem e o mal?
Entre Deus e o diabo?

Algumas referências bibliográficas em Freud:
(1914) Sobre o Narcisismo: uma introdução ; (1923) O ego e o id ; (1921) Psicologia de grupo e análise do ego
(1932) Novas conferências introdutórias sobre psicanálise

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Meu nome não é Johnny

comentários de Henrique Senhorini.


Cenas que chamaram a atenção da minha escuta analítica:
Quando criança:
- o Pai, com a mãe na cozinha, demonstra irritação relação ao recado que a diretora da escola fez do seu filho: “o que foi que essa senhora disse agora?”
- diretora do colégio disse que o menino: “faz bem os deveres de casa, mas...é um líder incontestável de fuzarcas monumentais”
- rojão na sala na hora do futebol; pai releva.

- Mãe abandona o lar - por conseqüência o filho - por não suportar o fracasso (entrega a morte) do pai.

Quando adolescente:
- fala de João na cena com o pai:  ... “como vou fazer para ficar mais rico que você(?)”
- experiência com a maconha - caso típico dos adolescentes como demonstração de pertencimento ao grupo dos “descolados”.
- pai recebe notícia que tem câncer (ou algo semelhante) e decidi não lutar/resistir, ou melhor, decidi se entregar para a morte passivamente.
- separação dos pais - abandono do lar pela mãe por não suportar as circunstâncias.
- Pai - num lampejo filosófico - diz pro filho: “...o tempo é uma raposa, quando você ver, já levou tudo.”
- Cléo Pires, diz na cena do primeiro encontro: “....você sabe que o mundo pode acabar amanhã?”
E o quando ela pergunta p/ João sobre o seu pai, esse responde: “ ...meu pai é tipo um vizinho”
- Numa das muitas festas, enquanto o pai morria no andar de cima, João se “matava” de pó no andar de baixo.
- no Tribunal perante a juíza - representante da Lei, João se declara como o único responsável e diz: “Eu nunca soube o que é dentro e o que é fora da lei. ”
- Comentário da juíza nos créditos: “ João Guilherme é a prova viva de que é viável recuperar as pessoas.”

Articulando com a teoria:
Em Nome-do-Pai
Questões relacionadas:
- identificação com o pai....estrutura-se querendo ultrapassar esse grande Pai (ideal?)
- pedidos de limites ao pai (que não são atendidos)
- falhas da função paterna, falhas na inscrição simbólica da castração - a que dá limites, mas, ao mesmo tempo, protege o sujeito .
- entrada na cocaína como apelo ao pai? - apelo a função paterna? Ou como versão do pai? uma Père-version, perversão? Uma coisa exclui a outra?
- a droga entra como instrumento de transgressão com a função de fazer existir a Lei....
- a droga não está ligada a uma estrutura... entrando, também, com a função de esconder o sintoma...(necessidade de ser querido/de ser notado/ de ser o astro provedor?)..., de tamponar a falta - no caso dele, maior ainda: sem pai/sem mãe - ...e de tornar suportável o insuportável....pai fraco, esperando a morte chegar
- não se preocupa em apagar os rastros....pelo contrário, deixa várias pistas (como joãozinho e maria) para ser pego....
- Perante a Lei, lembra “Crime e Castigo”...necessidade de pagar a dívida
simbólica (uma questão: dívida dele ou herança do pai?)
- submete-se a castração, se re-encontra, re-estrutura-se no entorno do significante Nome-do-Pai/Lei inserindo-se e inscrevendo-se na castração simbólica, que, por sua vez, possibilita uma desconstrução seguida de uma re-construção, reinventando-se, tornando-se um músico, compositor...artista...

- Aproveitando o comentário da juíza nos créditos do filme, podemos dizer que João Guilherme é prova viva de que é possível  transformar um sofrimento brutal numa dor bem suportável, quase banal ?

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Um encontro com Freud na Bienal de São Paulo

S U B L I M A Ç Ã O
...nas obras de Gil Vicente, deparei-me com a mais perfeita tradução do conceito freudiano. 
de Henrique Senhorini


Através dessas obras, enxerguei e compreendi - com o impacto de suas forças - o poder da arte da graça e da graça da arte... de como é possível transformar em pequenos assassinatos simbólicos, algo que poderia ser trágico, caso fosse atuado...

Trata-se de uma versão da transformação da angústia do real em angústia do desejo?
Dos excessos pulsionais - agressivos e destrutivos - em satisfações, simbólicas derivantes possíveis?