sábado, 15 de setembro de 2012

People of The World

de Bruno Alves

O olhar fotográfico de Bruno Alves está para além das palavras
e fora do tempo. Quando ascende um instante, a presença se eterniza e o tempo não apaga.(*)
Potala Lhasa Tibet
Panamá
Quênia
Atibaia  Brasil
Sarawaki
Lhasa Tibet
República Dominicana
Katmandu Nepal
Amapá Brasil
Tibet Lahsa

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Bruno Alves é Economista, Empresário, Repórter Fotográfico de Surf, Culturas, Povos, Viagem e Natureza com fotos publicadas em diversos livros e revistas como a National Geographic, Veja, Mariclaire e Surfer, entre outras. Fundador da revista Fluir.
*  pego de empréstimo  em Quinet, “Um olhar a mais”.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Depois da Vida - Wandâfuru Raifu

por Christian Dunker
Pela densa fumaça aparecem pessoas que se dirigem a um guichê. O prédio antigo parece a reprodução perfeita de um aparato burocrático. Lento, gasto, impessoal; uma repartição, como se diz. O guichê indica uma posição de espera que remeterá a uma divisão em grupos que redundará em uma sala: entrevista.
Nisso fica clara a alegoria. Limbo, purgatório, entreposto transicional de almas. O problema é que o filme é japonês e não há traço de cristandade ou moral religiosa em circulação. Não há inferno ou salvação, apenas o próximo passo para a eternidade. Trata-se de um grupo de funcionários às voltas com uma tarefa. Dezessete casos encaminhados na última semana; vinte e duas novas almas pela frente. Uma divisão mais ou menos ao acaso distribui os candidatos entre quatro escreventes. Para o chefe nada além de manter a interpelação de eficiência.
A atividade consiste em fazer com que cada um dos recém falecidos escolha uma e somente uma lembrança de sua recém encerrada vida. Tal lembrança será, ao final da semana, reproduzida, nas melhores condições possíveis e gravada na forma de um pequeno filme que o portador levará consigo para a eternidade. Tudo o mais será esquecido. Inexoravelmente esquecido.
As instruções são apresentadas a uma diversidade pessoas, individualmente, em uma sala específica da repartição. Nelas desenrolam-se entrevistas com o fito de determinar a cena escolhida, precisar sua datação e reconstruir seus aspectos cênicos e narrativos. Há, como em toda repartição um fluxo: até quarta a escolha, até sábado a filmagem, domingo a exibição, durante a qual cada qual se dissipará rumo ao além. Ao além do além.
Temos então os tipos: um senhor velhíssimo, magro pince-nez, herói da segunda guerra mundial, repleto de lembranças. Uma senhora igualmente de óculos mas gorda, muda, sorriso expressivo, existência solitária, capturada por folhas e plantas, suas íntimas companheiras. Um jovem irrequieto – eu tenho que escolher ? por que fazê-lo ? Outro jovem, tímido, talvez débil. Um empregado de companhia – vida vazia, meticuloso, não se perturba com a tarefa. Uma jovem senhora, orquídea gigante na lapela, muitas histórias de amor, esperanças e decepções centralizam sua existência. Um jovem senhor, paletó sobrando, gravata provavelmente emprestada para o enterro, sexo, e a primeira metade do bolo da existência já parece dividida. Completa a trupe uma quase adolescente, comportada, atenta às impressões que causa, disneylândia e suas orgias alimentares serão o foco do problema.
Alguns personagens parecem surgir depois: um jovem fascinado por aviões, outro pela brisa infantil dos bondes, outra ainda pelo vestido vermelho daquela cena de dança adolescente. Na verdade eles parecem surgir depois pois estão a cargo de um mesmo funcionário, coadjuvante talvez. Ao que parece apenas interessado em chegar à próxima semana. Sabe-se que em vida ele tem uma filha de três anos, que viu pouco, envolveu-se pouco e talvez se arrependa amargamente por isso. Todavia prefere ainda esquecer.
O foco do filme é a relação entre dois funcionários: uma jovem irreverente, de língua ferina e devaneante. Outro igualmente jovem, um pouco mais velho, mas de ar muito mais maduro, diligente, parece afetar-se e envolver-se a uma distância calculada. Sugere densidade e amargura ... indecidida. Recusa-se gentilmente às tentativas de aproximação da jovem. Na verdade seus gestos e aproximações são a única inciativa não francamente profissional dos envolvidos no tal trabalho. Até a banda, ativa na despedida semanal dos lotes humanos, o encarregado de fixar a forma da lua que se apresentará em uma passagem de um dos corredores, o chefe e seu parceiro de jogo, tudo transmite a sensação de monotonia e repetição profissional. A bela, mas triste paisagem outonal, os primeiros rebentos de neve, e fundamentalmente a decrepitude do lugar, em sua austera arquitetura, transmitem uma sensação exata de melancolia bucólica.
Na primeira parte do filme acompanhamos o exercício astucioso da escolha. Suas estratégias de cercamento, delimitação e condensação da experiência. Na atitude distante mas precisa dos entrevistados vai se formando a questão. A parte que melhor representará o todo de uma existência. Situar-se em relação a uma vida concluída, tomar posição, refletir sobre sua singularidade. Avaliar a melhor tática para representá-la; a intensidade aguda de um instante ou o plano extenso de um bom exemplo ? O cotidiano ou sua ruptura ? A espera ou sua realização ?
O filme mostra aqui a diversidade cômica da existência. A dificuldade aparentemente insuperável começa a se desfazer. Surge o valor das pequenas sensações: a asa de um avião cortando lentamente um floco de nuvem, como se fosse algodão doce. O ar matutino pela vidraça de um bonde, a face gelada, a pequena audácia infantil de por se de pé em um lugar improvável. A música e a dança, únicas pela graciosidade do vestido vermelho da protagonista, sua lembrança vaga entre ritmos, acordes e pequenos trechos de letra – memória feita de esquecimento. Finalmente a sensação das folhas caindo sobre os ombros em uma tarde de outono, poderia ser qualquer tarde, poderiam ser quaisquer folhas, mas não eram; alegria quase infantil – a memória da simplicidade.
Estes parecem os casos mais simples. A dificuldade dos entrevistadores é mormente de natureza técnica: o modelo do avião, a tonalidade precisa da folhagem, a forma exata dos brocados do vestido. O filme não os julga menores, acentua a força desta escolha; diria oriental.
Um segundo grupo é formado pelos que direta ou indiretamente são levados pelos sagazes entrevistadores a escolhas mais complexas. São os falsos simples. A garota tendente ao êxtase do entretenimento é levada a reconhecer a obviedade comum de sua escolha. Substitui pelo afago quente do colo materno. Ainda sensação, mas agora aparentemente mais enraizada. O Senhor Sexo troca sua coleção de aventuras licenciosas pela lembrança pontual das flores recebidas na ocasião do casamento da filha. Até aqui tínhamos sensações, como tais solitariamente vividas. Sensações habitadas por uma multidão de sentidos outros, de encontros, de memórias. Agora começam a entrar em cena lembranças envolvendo outros. Com isso lembranças das lembranças dos outros.
Definir afinal o que é uma experiência torna-se então questão central do filme. Onde ela termina, onde ela começa, quais são suas bordas, do que ela é feita ? Temos aqui o terceiro grupo.
Primeiro problema: o soldado aposentado parece querer guardar para si o reconhecimento, não esquecido por seus pares comunais, de seus feitos. Ele não quer guardar os feitos eles mesmos, mas a memória coletiva que estes formaram ao longo de sua existência; sua reprodução enriquecida pela recontagem e transmissão da experiência: narrativa. O filme pula a discussão, mas aqui há problema de conceito: o que ele quer é levar a memória da memória (metamemória), a lembrança de ser lembrado. Isso implicaria uma escolha de uma experiência, como a interpelação exige. Mas até que ponto essa experiência é realmente sua ? Não seria a experiência da comunidade o que ele quer reter ?
Segundo problema: a jovem senhora parece fixada a longos enredos amorosos feitos de mentiras. Não apenas ilusões, mas falsas memórias. Memórias de fatos não acontecidos são ainda memórias ? Aqui o filme toma uma solução. A mentira se revela no diálogo com o entrevistador. Diante da indecisão revelada pela consulente o entrevistador exorbita a natureza de suas próprias experiências amorosas. Diante do espanto que este desperta nela se vê obrigado a admitir a mentira. Na verdade apenas uma brincadeira para tranqüilizá-la mostrando a dificuldade da tarefa na qual se encontrava. No entanto esta “mentira inconseqüente” e imediatamente revelada, desencadeia na jovem senhora a possibilidade de reconhecer a sua própria mentira. Uma vida de espera em torno do amante que jamais abandonará a esposa. Uma vida cuja verdade é a própria mentira. Mentira eficaz, ilusão verdadeira, irrealizado fundante de uma existência. Seria isso ainda uma experiência ?
Terceiro problema, aparentemente menor, ou muito repisado. O jovem de aspecto débil não parece compreender as implicações e a natureza do problema que se lhe oferece. O que é exatamente escolher quando a consciência do ato de escolha não é clara ? Tema antigo que parece aterrisar no filme apenas porque não poderia ficar de fora. Nem se sabe ao final qual é a sua cena escolhida.
O quarto problema emerge em torno do caráter trágico do que se está a examinar. Dois personagens que não chegam ao ato de concluir. O empregado de escritório parece não localizar nenhuma relevância em sua existência. Casamento arranjado, vida monótona, sem aventuras, interrupções, problemas ou filhos. Solidão a dois. Devoção apática ao trabalho. Nada digno de reter para sempre. A eternidade de uma mesma experiência já parecia ser a tônica de sua condição terrena – por que reproduzi-la em uma eternidade em segunda potência ? Este sim é um caso grave. Mobilizam-se fitas de vídeo. O making-off de uma vida. Ano a ano estão fichados os acontecimentos de sua vida. Um catálogo amorfo de mesmidades. O caso intriga o entrevistador. Este acompanha o exame das fitas. Horas extras de trabalho.
Forma-se então o círculo dos marginais. Ambos sentados no banco do jardim. O super funcionário e o jovem decidido pela não decisão. Ele não irá escolher. Isso lhe parece a melhor forma de assumir a verdadeira responsabilidade sobre uma vida. Aporia sartreana ? A existência: não condensá-la, reparti-la, privilegiá-la. Nada perder, essa é a condição que ele se impõe – é claro pela voz de um adolescente.
É neste ponto de conciliação entre a indecisão indecidida de um e a indecisão decidida de outro que o filme abre-se para a sua segunda parte. Nela surgirá uma resposta interessantíssima sobre a natureza da experiência.
Ao ouvir o a aforisma do jovem o funcionário deixa-se tocar por uma questão. Algo realmente o interroga mudando seu eixo de preocupações antes centrado em qual experiência eleger. Agora ele parece preocupar-se com as implicações e responsabilidades da escolha para si e para os outros. Dirige-se então ao seu “ajudante”. Pergunta-lhe se de fato há uma responsabilidade assumida ao não escolher. Rompendo o protocolo o entrevistador revela que aqueles que não escolhem são destinados ao trabalho que ele mesmo realiza: ajudar outros a encontrar suas experiências. Ele mesmo, anteriormente, já havia revelado ser um ex-marinheiro, nascido em 1925, que lutara nas Filipinas e morrera em Tóquio, em meio a uma indecisão amorosa. Assim como em vida ele não pudera escolha após a morte. Em nenhum momento este funcionário parece lamentar seu destino. Como os anjos de Asas do Desejo de Wim Wenders, ele cumpre seu papel, da melhor forma possível, sem se envolver, mas ao mesmo tempo em próxima melancolia. Ele, bem como toda equipe, também não lamenta a indecisão dos dois. De fato os funcionários desta alfândega de espíritos não julgam, apenas trabalham.
Aqui percebe-se como o filme constrói até este momento uma curiosa sincronia: o funcionário com o ex-marinheiro; o jovem rebelde com a jovem rebelde. Cada qual parece cuidar de casos complementares: amor para uma, sexo para o outro; um exilado para cada um, um caso semi-problemático para cada lado.
Ocorre que a jovem rebelde ama o ex-marinheiro. Tal qual psicóloga incapaz de levar adiante os problemas não resolvidos em si, nos seus pacientes, ela de fato fracassa em levar o seu caso do jovem rebelde a uma decisão outra. A decisão indecidida deste afeta o funcionário. A questão emergente no funcionário afeta o ex-marinheiro. A afetação do ex-marinheiro se reverte na condição para que o funcionário possa enfim escolher: uma singela cena de outono no parque. Sua esposa e ele conversam sobre uma promessa nunca realizada: ir ao cinema, uma vez que seja. É o desencontro de uma vida. O mesmo banco da velhinha que vê as folhas cair sob seus ombros. O mesmo banco no qual o jovem colocara a questão da responsabilidade.
Mas a afetação revertida sobre o funcionário, que lhe permite enfim decidir, tem um outro efeito. Logo após a assistência das cenas gravadas, o ex-marinheiro chega ao quarto e encontra uma carta no interior das fitas de vídeo inúteis. A carta revela que o funcionário havia se casado com a antiga pretendente do ex-marinheiro. Suas dificuldades de escolha prendiam-se à impossibilidade de lidar com isso junto à seu ajudante.
Esta revelação resignifica a própria posição do ex-marinheiro. Se o funcionário não havia lhe contado sobre a esposa é porque e, necessariamente porque, seu envolvimento era significativo. Mas o transtorno causado sobre si reverte, como a lógica da situação prescreve, sobre a sua jovem enamorada colega de trabalho. Esta vasculha os arquivos à procura da fita deixada pela ex-esposa do funcionário e ex-pretentente do ex-marinheiro. Assiste-se então à incrível cena onde o ex-marinheiro posta-se sentado, num banco de jardim, em um outono, durante a segunda guerra mundial. Silenciosos. Ele tenso e cabisbaixo, indeciso. Ela quase alegre, como na cena com seu marido.
Portanto ela escolhera o ex-marinheiro, o que se mostra congruente com o vacuidade de seu futuro casamento. O casamento era um ato de fidelidade a esta experiência irrealizada do futuro possível de um amor. Ao compreender isso o funcionário compreendeu a importância de si mesmo, em uma história da qual não era o protagonista. Mas, magicamente, ao se reconhecer parte de outra história ele teve acesso à sua história, podendo, em decorrência, escolher.
Da mesma forma, ao constatar a sua dupla importância, para ambos, o ex- marinheiro pode finalmente escolher. Mas sua escolha decorreu do ato de amor de sua amiga, que ao ajudá-lo perdeu-o para sempre.
Ele escolheu - é claro: a mesma cena outonal, no mesmo banco, com a sua pretendente de meio século atrás. A palavra que faltou naquele dia se tornou possível pela escolha. Mas, adendo genial, no fim da cena a câmera se volta e mostra a equipe de filmagem, que filma a si mesma, deixando assim a memória de seu grupo de trabalho no além. A memória daquela que o amava, mas também do ponto de onde foi possível se apropriar de uma experiência a ponto de constituí-la como tal.
A espera por mais de meio século toma parte necessária na única conclusão possível. Conclusão possível pelo olhar do outro. Pelo reconhecimento da exterioridade íntima e radical da experiência humana.

Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor dos livros: “Lacan e a Clínica da Interpretação” (ed. Hacker, 1996), “O Cálculo Neurótico do Gozo” (ed. Escuta, 2002) e do recém-publicado “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).

domingo, 2 de setembro de 2012

Santa Tarde de Sábado


de Rodolfo Coelho

Sábado de todas as guerras
Todos os pecados
Todas as insanidades
Todos os crimes
Sábado de todos os santos
Sábado de todas as rezas
de todos os desabamentos
de todos os lamentos
Sábado de todos os uivos
de todos os sangramentos
de todas as virtudes santas
Sábado de todas as belezas
de todas as pernas e coxas
de todo o tesão.


Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  - ]gnição – 
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - Poesia 100 Filtro